PIETÁ (Texto de Dilson Cunha)
A semelhança entre o Cristo Morto, de Holbein, e o índio Yanomami não é mera coincidência. Ambos estão despidos de suas humanidades bem como de suas divindades. Ambos trazem no semblante a dor do abandono. Ambos, cadavéricos e rígidos, estão carregados de sofrimento e putrefação. Ambos, insepultos.
Diante do Cristo Morto de Holbein, Dostoiévski, estático por cerca de quinze minutos, emudeceu e teve sintomas de epilepsia sem ser epilético. Como ficar indiferente? Como ignorá-lo?
Diante do índio moribundo estamos nós, e não há como fugirmos dele, fingirmos que não o vimos. Vimos! E em carne e osso. Pouca carne, muito osso. Carregado de muitas e indizíveis dores.
Ah, sim, ouso parafrasear o profeta Isaías:
“[…] não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum”.
Aí você me dirá: é sobre Cristo que Isaías está falando.
Daí eu lhe direi: sim, eu também. Porque quem não viu Jesus nesse Yanomami não o verá em nenhum outro lugar.
(Dilson Cunha)
Os Bispos do Regional Norte1 da
CNBB mostram indignação e profunda solidariedade ao Povo Yanomami
Os Bispos do Regional Norte1 da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil lançaram neste 21 de janeiro uma nota
de indignação e solidariedade diante da situação que vive o Povo Yanomami. Os
Bispos se mostram “estarrecidos e profundamente indignados, estamos
vendo as imagens dos corpos esqueléticos de crianças e adultos do Povo Yanomami
no Estado de Roraima, resultado das ações genocidas e ecocidas do Governo
Federal anterior, que liberou as terras indígenas já homologadas para o garimpo
ilegal e a extração de madeira, que destroem a floresta, contaminam as águas e
os rios, geram doenças, fome e morte. Mais de 570 crianças já perderam a vida”.
A Terra Indígena Yanomami (TIY) é a
mais extensa terra indígena no Brasil com cerca de 9 milhões de hectares, sendo
habitada por cerca de 28.000 indígenas Yanomami, falantes de 6 línguas
distintas e divididos em mais de 300 comunidades além de grupos
indígenas em isolamento.
O garimpo ilegal, com uma presença
estimada de cerca de 20.000 garimpeiros, associados a organizações
criminosas que configuram o chamado “narco-garimpo”, envolvidos em
tráfico de drogas, de armas e lavagem de dinheiro, que contam com
a cumplicidade de funcionários públicos e o apoio de uma parcela das
elites locais, empresários e políticos, mantêm uma relação com a floresta
marcada pelo extrativismo predatório.
Trata-se de uma atividade que afeta a
273 aldeias yanomami, uma situação ainda mais agravada pelo desmonte das
ações de saúde junto às comunidades Yanomami. As consequências do garimpo
ilegal na Terra Indígena Yanomami é a devastação ambiental, a
destruição das comunidades indígenas, o desequilíbrio da economia indígena que
permite sua sobrevivência, o agravamento da situação sanitária, até o ponto
de que comunidades que vivem no meio da floresta amazônica, estão sem
atendimento de saúde, são milhares de indígenas abandonados sem qualquer
assistência num momento de explosão exponencial de doenças provocadas também
pela presença dos garimpos, uma situação que atinge sobretudo às crianças e às
pessoas idosas, que sucumbem por doenças que tem tratamento.
Diante de uma situação de colapso
sanitário, o atual governo brasileiro declarou no dia 20 de janeiro de 2023
a emergência em saúde pública no território Yanomami. O
Governo Federal montou uma força-tarefa para avaliar a tragédia na Terra
Indígena Yanomami, visitando as regiões mais afetadas para montar um plano de
ação e tentar evitar mais mortes.
Os Bispos do Regional Norte1 tem
manifestado sua “profunda solidariedade ao Povo Yanomami, às famílias que
perderam seus filhos e adultos, aos tuxauas e lideranças”. Junto com isso,
eles dizem se colocar “ao lado dos missionários e missionárias da Igreja de
Roraima e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que há tempo vem
denunciando a invasão do território yanomami e suas trágicas consequências”.
O Regional Norte1 da CNBB apoia “as
decisões corajosas do Presidente da República e vários ministros, ministras e
assessores que visitaram a região, tomando as medidas necessárias e
urgentes para expulsar os invasores e salvar muitas vidas de pessoas à beira da
morte”, segundo a nota.
Citando as palavras da Querida
Amazônia, a exortação pós-sinodal do Sínodo para a Amazônia, onde eles
participaram como padres sinodais, a nota diz que “estamos diante de mais uma
situação em que se repete o que foi denunciado pelo Papa Francisco na
Querida Amazônia: ‘os povos nativos viram muitas vezes, impotentes, a
destruição do ambiente natural que lhes permitia alimentar-se, curar-se,
sobreviver e conservar um estilo de vida e uma cultura que lhes dava identidade
e sentido’ (QA 13)”.
Movidos pela esperança, os Bispos
suplicam “a Deus Pai, Defensor dos pobres e oprimidos, que proteja o Povo
Yanomami a todas as pessoas que lutam para defender seus direitos”.
Igualmente, eles pedem a intercessão pelos Yanomami de “Maria, Mãe da Amazônia e
Mãe dos Povos Indígenas”.
D.Edson Damian em visita a Sta. Isabel do Rio Negro, Amazonas, com indígenas Yanomami-rio Marauiá, 2020
Quadro presenteado ao Papa Francisco.
Diocese de Roraima, sempre companheira e defensora do Povo Yanomami
A dor do Povo Yanomami vem dilacerando a vida de um dos povos mais numerosos e sofridos da Amazônia brasileira.
Padre Luis Miguel Modino, assessor de comunicação CNBB Norte1
As cenas reveladas nos últimos dias são um episódio a mais de uma série de fatos que mostram as consequências dos abusos cometidos nos últimos séculos contra os povos originários no Brasil.
Na história do Povo Yanomami, uma de suas grandes defensoras nas últimas décadas tem sido a Igreja católica, especialmente através dos missionários e missionárias da Consolata, que desde 1965 assumiram a missão Catrimani, um exemplo daquilo que hoje, especialmente depois do Sínodo para a Amazônia é conhecido como evangelização intercultural. Do mesmo modo, os Yanomami que vivem na diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, têm contado com o apoio e defesa dos salesianos e salesianas.
Na missão Catrimani, um bem e um dom para a Igreja de Roraima, se fez realidade um modelo de missão fundado sobre o respeito e o diálogo resultando em ações concretas em defesa da vida, da cultura, do território e da floresta, a Casa Comum. Uma missão fundamentada no silêncio e no diálogo gerando laços de amizade e alianças na ótica do bem viver. Uma missão que ao completar 20 anos levou o então bispo, dom Aldo Mongiano, a dizer que “É privilégio ter os Yanomami”.
A defesa do Povo Yanomami tem sido uma prioridade para os últimos Bispos da Diocese de Roraima, levando essa Igreja local a se posicionar. Dom Roque Paloschi, Bispo da Diocese de Roraima de 2005 a 2015, afirmou na introdução ao Livro “O Encontro”, que relata memórias da Missão Catrimani, que “encontrar e conhecer os Yanomami têm sido um caminho extraordinário, um bem e privilégio para a Igreja de Roraima”.
Uma missão que “é o antídoto contra as violências que os Yanomami sofriam na época e ainda sofrem”. Um modo de anunciar o Evangelho que tinha como fundamento “a ideia de que os índios não precisam ser modificados”, segundo dom Roque, que insistia em que “as sociedades ameríndias, assim como qualquer outra sociedade, devem ser compreendidas e respeitadas nas suas diferenças”. De fato, dom Servilio Conti, bispo na época, buscou com a missão Catrimani, “conhecer aquele povo, amá-lo e com ele viver”.
O convívio com os yanomami ajudou a Igreja de Roraima a descobrir que é “necessário entender, aprender a ver o mundo com os olhos do outro”, afirmou o Presidente do Conselho Indigenista Missionário. Segundo ele, “os missionários fundiram e, de certa forma, subordinaram os destinos da missão ao destino dos Yanomami, colocaram-se ao lado dos Yanomami e a serviço de um projeto de vida voltado à dignidade e autodeterminação desse povo”, um caminho nem sempre fácil, que os levou a serem expulsos em 1987 por 18 meses.
Já em 2017, quando foi publicado o livro, dom Roque Paloschi denunciava a ameaça do garimpo na Terra Yanomami: “atualmente, as invasões e depredações das suas terras continuam, com a constante presença de garimpeiros e a pesca predatória. Os indígenas denunciam, mas permanece a impunidade”. Ele fazia um apelo para as parcerias e as redes para “a luta contra os ‘dragões mortíferos’ da vida”.
Na mesma linha se manifestou o último bispo da diocese de Roraima, atual arcebispo de Cuiabá, dom Mário Antônio da Silva, em 23 de abril de 2022, destacando que na história da Igreja de Roraima, “a causa da vida dos povos indígenas foi assumida como anúncio da dignidade humana e, por vezes, com denúncia daquilo que negava o Evangelho e os direitos humanos”.
O 2º Vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil denunciava que “nos últimos 3 anos, o dragão devorador da mineração tomou força novamente e avança com toda ferocidade e poder das organizações criminosas sobre a Terra Yanomami”, lembrando os constantes ataques, crimes e mortes provocadas pelo garimpo. Algo que denunciava como “uma vergonha para nosso país e fazem o nosso coração sentir o sofrimento e a morte que os Yanomami e a natureza estão vivendo”.
Dom Mário Antônio denunciou “a omissão e a responsabilidade do Governo Federal, que ao invés de cumprir seu papel constitucional na defesa dos povos indígenas e de suas terras, patrimônio da União, incentiva as invasões e coloca na pauta do Congresso Nacional o projeto de lei, que legaliza a mineração em terras indígenas”, enumerando as graves consequências disso. Diante dessa realidade, ele convidou a se unir na defesa e na garantia da vida e do território do povo Yanomami, a não compactuar com a mineração nas terras indígenas, a defender e cuidar da casa comum.
O atual administrador diocesano, padre Lúcio Nicoletto, denunciou essa realidade na Visita ad Limina do Regional Norte1 da CNBB ao Papa Francisco em junho de 2022, lhe entregando uma tela de um artista local onde aparecia o garimpo avançando e destruindo o Corpo do Yanomami, querendo assim denunciar as consequências do avanço do garimpo na Terra Yanomami. Essa foi mais uma denúncia de tantas realizadas nas últimas décadas, especialmente nos últimos anos, pela Igreja de Roraima, levando ao Santo Padre uma expressão do drama dos yanomami em relação à destruição da sua vida.
Uma Igreja que no dia 21 de janeiro de 2023 expressou “a nossa solidariedade ao Povo Yanomami e o nosso repúdio ao genocídio, envolvendo pelo menos 570 crianças, devido ao caos instalado nos últimos anos quanto à desassistência na saúde indígena, alto índice de malária, desnutrição e contaminação por mercúrio, provocados pelo garimpo ilegal na Terra Indígena no período do (des)governo anterior e sua necropolítica”. Dizendo apoiar as medidas do governo federal, esperam “medidas que venham solucionar esta situação, como a retirada do garimpo daquelas terras, sempre na defesa e promoção da vida”. Mais um exemplo de uma profecia iniciada muito tempos atrás e que a Igreja de Roraima não quer deixar morrer.