quinta-feira, 26 de julho de 2012

AMIGOS DE CARLOS DE FOUCAULD



Texto enviado pela Margareth – Carta nº 5

15 de setembro de 2011

Carlos de Foucauld, um homem habitado pela solidão

Nos dias de hoje, a solidão é vista como um flagelo, uma das mais terríveis catástrofes pelas quais podemos passar; e são feitas propostas de todo tipo para evitá-la, por exemplo, as festas, a TV. A solidão não é vista como um bem: as lojas indicam mil receitas para fugir dela. A verdade é que não queremos saber dela.


Há alguns poetas, como Rilka, ou um tal “psy” como Françoise Dolto que a elogiam. Mas são raros. Um cantor atual prefere lançar: “A solidão, isto não existe”.

Na Idade Média, os católicos em suas orações públicas, imploravam a Deus para que os livrasse de três calamidades: da peste, da fome e da guerra. Hoje, nossos contemporâneos, em seus cadernos de queixas e desabafos, colocariam sem dúvida, na cabeça de nossos males está a solidão. Uma associação caritativa fundada no século XIX tendo como padroeiro São Vicente de Paula que, dois séculos antes, consagrou-se às misérias de seu tempo, fez campanha para que no ano de 2011 a luta contra a solidão fosse declarada oficialmente pela República, “grande causa nacional”(como foram nos anos precedentes a AIDS, as paralisias, o câncer.) A Sociedade de São Vicente de Paula, dirigindo umas vinte associações, combate então este ano as solidões como sendo um dos maiores males de nosso tempo.

Nesse ponto Carlos de Foucauld se revela indo contra a corrente dessa fuga moderna diante da solidão, à contra corrente desse combate contra a solidão. E assim foi durante toda sua vida. Para ele a solidão é antes de tudo um valor positivo, ele a ama e a cultiva.

Quatro anos antes de sua morte, em janeiro de 1912, escreveu para sua prima que o conhece bem desde a infância: “como é agradável a solidão, esse sentimento eu o experimentei em todas as idades”. E precisa: “mesmo sem ser cristão, eu sempre apreciei a solidão.” Trata-se então de uma característica de sua personalidade; se vai exaltar, mais tarde, a solidão positiva com Deus vivida na oração, não se deve reduzir seu sentido da solidão à sua fé: ele diz muito bem como esse sentimento agradável existia em seu ser ainda quando era agnóstico e vivia fora da fé cristã.


De onde lhe vem esse sentido? De onde lhe vem esse gosto pela solidão e mesmo desse sentimento “agradável” que a solidão lhe produz ?


No dia 15 de setembro de 1864 Carlos de Foucauld tem seis anos. Esta criança fica órfã: a mãe faleceu seis meses antes e o pai um mês mais cedo. Uma criança poderia conhecer sofrimento tão grande e tão grande solidão? Ficaria ele fechado em si mesmo? Além disso, quando fez 12 anos, começa a guerra e deve partir para o exílio despedindo-se de sua Alsácia natal. Esse estado de coisas e o desenraizamento provocarão alguma influência dolorosa em sua vida?

Ele vai, graças entre outras à afeição de um avô bom e inteligente, viver o que hoje chamaríamos de “anulação”, recusando de se deixar abater, de fechar-se em uma solidão destrutiva, vai meter-se em atividades e projetos, procurando ainda adolescente, largos horizontes – ele pensa mesmo em ser marinheiro - abre-se ao mundo através de um grande interesse pela natureza e através de imensas leituras múltiplas e variadas: em sua carta de 1912 para sua prima, conta onde se situava principalmente seu sentido da solidão: de um lado, “diante da bela natureza” e de outro lado “com livros”. Um médico militar, que era protestante, passando três dias em Tamanrasset foi convidado por Carlos de Foucauld para passar com ele a festa do Natal; o dr Robert Hérisson contou mais tarde sobre esse encontro e as confidências que C.F. lhe fez nessa noite sobre sua infância: “Fiquei órfão muito jovem ainda e fui criado pelo meu avô o coronel de Morlet. Fizemos muitas vezes passeios nas florestas da Saverna na Alsácia. A solidão desses lugares me agradava. Levava-me ao recolhimento pela sua paz e silêncio. Escutávamos apenas alguns cantos de pássaros e barulho de insetos. Encontrava-me muito bem nesse quadro.”

A solidão é como seu meio natural; vemos isto através da maneira como descreve as paisagens em seu livro sobre a exploração feita no Marrocos quando não tinha fé ainda, como em suas cartas mais tarde quando está no Hoggar e fica extasiado com a beleza do Assekrem. Quanto aos livros, sua pequena casa de Tamanrasset estava cheia. Teve uma alegria profunda em fazer o trabalho imenso, muito solitário, sobre a língua e costumes dos Tuaregues.

Ao mesmo tempo, ao lado desse primeiro amor pela solidão, adquire uma qualidade da qual se fala muito pouco, mas que aparece cada vez mais hoje como essencial, uma qualidade que deveria ser inculcada desde a primeira infância: o que o grande psicólogo Winnicott chamou de “a capacidade de estar sozinho”, uma real autonomia da própria existência (um livro acaba de tratar (o que é ao contrário “a doença que é a incapacidade de estar só.”) Saber estar sozinho diante de si mesmo, ousar estar sozinho: eis aí algo adquirido incomparável, que preserva com segurança na idade adulta de todo tipo de dependência ou adições e que dá uma base sólida a uma vida. Esta solidão positiva, criativa, esta “capacidade de estar a sós” vai acompanhar CF durante toda sua existência.

O que lhe proporcionaria esta base de solidão adquirida, essa capacidade de estar sozinho?

Essencialmente dois dinamismos.

O primeiro é uma verdadeira independência do espírito. Este homem, como cada um de nós, passa por vários acontecimentos, mas não se deixa jamais levar passivamente por eles; procura sempre como ultrapassar cada um deles, não deixa de ser marcado pela situação que viveu na infância: mesmo se nunca fala de seu pai e pouco de sua mãe, a falta deles estará sempre presente com essa marca seguida de sobressaltos sucessivos que teve durante toda sua vida, muito além de toda melancolia que viveu. Isso lhe deu essa marca impressionante de uma personalidade livre, manifestando uma extrema capacidade de não se fechar, de ultrapassar qualquer dificuldade para daí dar um novo passo adiante.


Em nenhum momento fica dependente não somente de um acontecimento, mas dos que estão por perto, mesmo os mais próximos; se vai tomar conselho, é primeiro perto dos mais conhecidos, o PE. Huvelin, Marie de Bondy, seu pai e mãe espirituais, ou ainda superiores eclesiásticos. Permanece livre, não hesita em apresentar um pensamento diferente quando seu julgamento assim decide.

Falou muito, como religioso de “obediência” e sempre quis aplicar-se esses princípios. Mas esta vontade de obedecer não significava para nada alienar sua consciência, ao contrário. Ordenado trapista, obedece a seus superiores, mas conserva seu ponto de vista, sabendo reconhecer que não se encontra bem em tal proposta e fazendo tudo para dar a conhecer sua verdadeira vocação. E faz a mudança saindo de seu estado monástico como saiu da vida militar: colocando-se fora desse quadro, tornando-se um tipo de eremita fora do comum, doméstico de um convento de religiosas em Nazaré, conservando o que deseja, procurando como começar a viver seu próprio caminho.

Ao mesmo tempo que este espírito decisivo o transforma em verdadeiro homem livre, a base que é sua capacidade de solidão lhe permite, como segundo dinamismo, sair de sua visão, de suas idéias e abrir-se à predisposição de acolher o outro. No momento em que foi ordenado padre, muda completamente de margem: renuncia, como era seu projeto, ir à Terra Santa para fundar aí fraternidades de eremitas enclausurados e responde com força ao apelo interior daqueles que conheceu muito bem, pessoas sem fé, no Marrocos: muçulmanos e judeus estrangeiros a Jesus; é para estes outros que decide ir.

E para todos os outros, rapidamente, no Saara, fazendo evangelicamente a equivalência entre Jesus e os últimos, (os doentes,escravos, presos, os mais pobres), ele se consagra a eles; e como sinal de não exclusivismo mas sinal de verdadeiro universalismo, ele estabelece laço de amizade com todos, oficiais da ocupação colonial como chefes das tribos do Saara, soldados de todo tipo como também gente do lugar de todo tipo. 

A boa solidão cria laços humanos sem fronteiras: desse homem, falam dele por todo o Saara: “Por onde passa, faz amigos”. Nessa época está vivendo uma verdadeira alegria de viver, uma alegria comunicativa; não para de ir adiante, como explorador que ele é no mais profundo de seu ser (os exploradores de seu tempo eram chamados de pessoas que abrem caminhos), um homem que abre caminhos novos.

Carlos de Foucauld escolheu realmente a solidão como elemento essencial de sua vida. Em todos os momentos. No princípio esta solidão o conduziu para a condição de monge-trapista na Síria durante sete anos (1890-1897) depois eremita, três anos em Nazaré. A partir de 1901 sua solidão criativa o conduz ao Saara onde ficará quinze anos, não menos monge ou eremita mas “missionário isolado” como ele se definia quatro meses antes de sua morte.

As duas situações não são para nada contraditórias. C. Millot, em um livro “Oh solidão” (Gallimard, 2011), onde não se trata nunca de fé cristã, mas unicamente de antropologia, faz esta observação (p. 112) que se aplica bem a CF no que faz a unidade de sua vida: “A escolha da solidão sempre teve dois aspectos: o da célula ou do deserto. Estando fechado em um pequeno espaço no interior do espaço comum, onde ele ajuda a proteger o ambiente ou a paisagem dos grandes espaços inabitados: desertos, florestas, vastas planícies, oceanos, montanhas. Sem dúvida existe um segredo de equivalência entre a clausura e a abertura ilimitada”.


A dialética espaço de solidão fechado / espaço de solidão aberto, sempre esteve presente na vida de CF, um e outro juntos, mesmo no Hoggar onde se vê de um lado Tamanrasset com visitas incessantes de seus vizinhos tuaregues e o recolhimento voluntário para o trabalho lingüístico e a oração, e de outro lado o Assekrem onde ele se consagra ao dicionário e aos nômades que vivem por perto. Mas permanece, no fundo, como um instinto no estado bruto, que determina fundamentalmente sua vida, toda sua vida, até mesmo sua vida de fé; “estar a sós”.


Citamos as confidências que Foucauld fez ao Dr Hérisson no Natal de 1909; ele contou as lembranças da infância de Foucauld e seu gosto pela solidão, entre outras as florestas: é preciso dizer que seu pai foi inspetor das Águas e Florestas (lembrar também que Foucauld do Hoggar que, a seu primo Luis, do qual conheceu a propriedade cheia de árvores, escrevia que devia ser feliz: “em Tamarasset não há nenhuma árvore em um trecho de uns 15 kilômetros”. O doutor Hérisson depois de de ter conversado com CF sobre sua infância, trouxe uma última palavra de seu hóspede que concluiu a seu interlocutor: “Está vendo. Eu sempre fui um selvagem”.


“Selvagem é etimologicamente o homem da floresta, os que aí nascem e vivem. O grande dicionário Larousse do século XIX dá assim um primeiro sentido, animal de “selvagem”: Quem não está cativado por outra coisa e fala primeiro de “cavalo selvagem” ou de “pato selvagem”. E continua: falando do homem que vive na floresta, sem habitação fixa, sem leis e sem gozar de nenhuma vantagem da civilização; citando aliás Buffon: “O homem selvagem é, entre todos os animais, o mais singular”. Em fim: por analogia, quem sente prazer em viver sozinho, citando A. Dumas: eu sempre fui selvagem e buscando a solidão”.


Selvagem, Carlos de Foucauld? Sim, por aí ele se define bem exatamente. Gosta dos espaços de solidão, gosta de estar sozinho, não gosta de ser obrigado a nada, não gosta de entrar em certos quadros, gosta de decidir ele mesmo. Que reconhecimento, o que escreve aos 19 anos a seu grande amigo Gabriel Tourdes, comentando com ele como estará dentro de 10 anos: “vou começar minha vida de moço velho, sozinho, no interior, em alguma casinha pequena: é tão bom ser livre e viver tranquilamente”. Bilan, 10 anos mais tarde: ele fez, solitariamente, uma longa exploração no Marrocos, sonha em continuar outros projetos para “abrir caminhos” mais longe, recusa propostas de casamento que os seus – o padre Huvelin – lhe fazem. 


E nos 30 anos que vão da conversão em 1886 até sua morte, mostrará não tanto desprezo pelas instituições, mas um gosto pronunciado, em tudo, de caminhar fora de caminhos já feitos, o que é uma extrema “capacidade de estar a sós”. Convém insistir, por aí mesmo, sobre seu grande poder de invenção através dessa solidão instauradora que é a sua, como os sábios e todos os descobridores. É assim que, na solidão do Saara, fundou o que era e é revolucionário, uma associação de batizados, a “UNIÃO”: os membros desse grupo, ele os destinou quer sejam padres ou leigos a ir como ”abridores de novos caminhos evangélicos”, isolados, sós, na frente, bem longe, lá onde Jesus é ignorado, lá onde não há nenhuma inserção cristã.


Assumir sua solidão, a boa solidão que torna a pessoa adulta, que ajuda, que não nos corta das relações com o outro, mas ao contrário nos abre aos outros. Cultivar esta solidão viva que nos faz voltar para as solidões destrutoras onde outros, em volta de nós, estão caídos. Tal foi o caminho de Carlos de Foucauld, tão apoiado ao estar a sós com ele mesmo e com seu Deus, tão aberto, acolhedor e fraterno para com todos os que encontrava em seu caminho.


L.A.C.F.