Pe. Henrique Geraldo Martinho Gereon
HOMILIA
Caros irmãos e irmãs
Caro irmão Dom Juarez
Caros irmãos sacerdotes
Hoje se completam 50 anos que fui ordenado presbítero, junto com 15 confrades. Naquele tempo redigimos um convite coletivo, no qual colocamos a palavra de São Paulo: “Tendo recebido este ministério por pura misericórdia, não perdemos a coragem” (2 Cor. 4,2). Nós pertencíamos àquela geração que, mesmo antes da abertura do concílio vaticano segundo, já convocado naquela época, percebia o que ia acontecer e o que inevitavelmente deveria marcar o caminho da igreja. Inevitavelmente esse caminho também deveria ser o nosso. Estava andando no ar o que este concílio teria que expressar. Há muito tempo já o esperávamos. Não nos faltava coragem para entrar neste caminho, apesar das recomendações para uma submissão bem comportada aos caminhos bitolados há séculos.
Essa mesma palavra de São Paulo aos Coríntios, que naquele tempo nos animou, pode novamente animar-nos, depois de 50 anos, na reflexão sobre este longo tempo. Ela transmite duas idéias centrais para o caminho da comunidade cristã: ”Misericórdia” e “Coragem”.
Em primeiro lugar: a misericórdia de Deus. Ela nos fez filhos de Deus, ela é graça não merecida – sempre supera a nossa fraqueza, que esforço nenhum não dá jeito de vencer. Quanto mais caminhamos, mais evidente fica: a percepção dolorosa da própria fraqueza pela misericórdia de Deus se torna um convite para a fidelidade. Perseverar apesar da fraqueza, “esperando contra toda esperança” (Rom. 4,18), é nessa experiência que se explica toda a dimensão larga da atuação sacerdotal: trata-se de uma só coisa: anunciar a misericórdia de Deus aos irmãos e irmãs, com os quais caminhamos juntos.
Esse anúncio desafia-nos primeiro a praticar a misericórdia entre nós mesmos. A nossa tarefa não é apenas exigir justiça e insistir na disciplina, tanto na doutrina como no comportamento. Antes teríamos de manter-nos dispostos para deixar sempre a última palavra para a misericórdia, construir paz e abrir portas que nós mesmos atravancamos. Eu confesso que precisei muito tempo para reconhecer isso. Mas cada vez mais criei coragem neste caminho. A preocupação de não ser suficientemente correto cedeu cada vez mais à liberdade corajosa para repensar tudo à luz da misericórdia. “Não perdemos a coragem” – assim São Paulo confessa. Eu queria confirmar isso ao apóstolo neste dia.
Essa coragem não poderia ser arrogância vaidosa. Antes ela se alimenta da misericórdia. Pois é preciso ter coragem para transformar a sensibilidade de perceber a necessidade desamparada no gesto concreto. Para que o tremor do coração compadecido se torne a força do braço e a mão segura, é preciso ter a coragem para a partida, com o propósito de levantar o que caiu, e reavivar o que foi destruído e de trazer de volta o que se perdeu. Se a atuação do presbítero dentro do povo de Deus não reunir coragem e misericórdia, ela corre perigo de tornar-se rotina, privilégio e ânsia pela aposentadoria. Dessa maneira, porém, apaga-se o reconhecimento de que a misericórdia corajosa de Deus o levou até Nazaré.2
Em Nazaré a vida humana de Deus começou, até chegar à morte e ressurreição. Ali ele tornou-se inexplicavelmente pequeno, ordinário, vulnerável, rejeitado, mas por isso mesmo capaz de ter misericórdia, aquela que tudo transforma. Jesus ressuscitado manda os seus discípulos voltar para a Galileia, lá, onde tudo começou, lá, onde a misericórdia e a coragem tornaram-se tão radicais que a transformação que ninguém imaginava ser possível começou a acontecer. A vida em Nazaré é o modelo para o presbítero diocesano e para todos os cristãos. A experiência de Nazaré é indispensável para uma igreja que quer ser pobre, transparente, samaritana e missionária, mas principalmente solidária com os pobres – e só por isso capaz de ser santa. Sempre fiquei feliz de ter sido ordenado no dia que comemora a chegada do casal pobre de Nazaré no templo de Jerusalém com a criancinha de apenas 40 dias. Primeiro nos braços da mãe, depois com os seus próprios pés, ela “desce para Nazaré” querendo ser “semelhante em tudo aos seus irmãos para se tornar sumo sacerdote misericordioso”. A única credencial necessária para os que o acompanham neste caminho é eu sejam compassivos e dignos de confiança, ou seja: “ter compaixão dos que estão na ignorância e no erro, porque eles mesmos estão cercados de fraqueza”.
Peço agora, meus caros irmãos e irmãs, a sua permissão para um testemunho muito pessoal.
Quando eu tinha 2 anos de idade, começou a segunda guerra mundial. Durante seis anos a minha família fugiu dos bombardeios. Moramos em oito lugares procurando segurança e partindo sempre de novo. Terminada a guerra, com o nosso país totalmente destruído, morávamos numa pequena vila perto da grande cidade de Hamburgo. Meus pais queriam mudar para Hamburgo como os nordestinos mudam para São Paulo. Não era permitido. As novas casas, construídas naquela cidade, arrasada pela guerra, eram só para os que moraram nela e os que tinham perdido as suas casas pelos bombardeios.
A minha mãe tinha um tio em Hamburgo: era professor na escola de uma paróquia e morava na casa paroquial. O pároco da paróquia permitiu que nos mudássemos para a sua casa. Ele só tinha um quarto para nós, uma família de seis pessoas. De repente éramos moradores daquela cidade e depois de um meio ano, conseguimos uma nova casa.
A próxima barreira era encontrar uma escola para mim e os outros três irmãos. Começando comigo a minha mãe rodou em todos os bairros daquela grande cidade: ou não encontrou escolas ou não encontrou vagas, a cidade estava recomeçando praticamente no zero. Desesperada ela foi para um colégio de padres Jesuítas: uma escola onde só estudava quem tivesse feito testes e exames de admissão. Nada disso esse menino dela do interior tinha feito. Minha mãe chorou nos pés do padre diretor. Ele se compadeceu e disse: Vou aceitar o menino por três meses. Se ele conseguir acompanhar o currículo, pode ficar. E lá vou eu para uma escola que eu não tinha o direito de frequentar.
Mas tinha oura barreira: os alunos da minha classe já estavam estudando latim no segundo ano, e eu: nada ainda. Aí apareceu o terceiro padre: o pároco da paróquia onde morávamos. Ele me deu aulas particulares para recuperar o meu atraso. Depois de três meses de teste fui aprovado.
Sempre lembro e hoje confesso: se estes três padres não tivessem ajudado a essa nossa família de pobres refugiados, neste exato momento, eu nunca teria sido padre.
Mas ainda tenho outro motivo para lhes contar a minha história. Quatro meses atrás, eu estive na casa de uma família do interior: Um casal com cinco crianças, três delas numa escola da região, 3 km distante da residência. O pai se queixava: Frequentemente os filhos voltam da escola sem ter tido aulas, sem aviso ou justificativa, caminhando 6 km de ida e volta. O pai lembrava a sua infância: ficou sem estudar porque não aguentou viajar 9 km cada dia. De repente vi as lágrimas nos olhos deste pai que dizia: “Será que os meus filhos vão ficar iguais a mim que nunca estudei nada?
Neste momento me lembrei das lágrimas da minha mãe procurando uma escola para mim, e dos três padres compadecidos que nos socorreram. E agora, 66 anos depois, eu sou padre e vejo um pai 3 chorar por seus filhos. O que é que vou fazer?
Não tenho colégio nem casa para receber uma família. O que posso fazer mesmo é ser a voz dos quem não tem voz nem vez. Em nome do meu povo que é obrigado a se calar eu faço aqui apenas umas perguntas:
- Por que não conseguimos pelo menos alfabetizar completamente as crianças?
- Por que não proporcionamos às crianças e aos jovens o total de dias letivos anuais que a lei exige, deixando faltar por ano mais de 50 dias?
- Por que não colocamos nas salas de aula professores com qualificação profissional elevada, mas pessoas quase leigas obedecendo critérios politiqueiros?
- Por que 13.000 vagas de emprego em São Paulo ficam sem preencher pela razão de aparecer apenas pessoas não qualificadas que vão turbinando os seus currículos com diplomas de cursinhos à distância?
- Por que os nossos jovens declaram não ter perspectivas para obter uma vida digna e bem realizada?
Quem vai nos dar respostas satisfatórias que não justificam apenas, mas se tornam propostas capazes de abrir novos caminhos?
Eu vi as lágrimas da minha mãe e as lágrimas daquele pai no nosso interior. Por isso é que eu falo.
Eu sou padre para isso.
O meu testemunho pessoal ainda tem outro detalhe:
Durante longos anos eu era pároco numa área muito grande, com muitas cidades e comunidades. Aqui neste povoado no começo do mundo, que hoje é cidade e paróquia, o padre celebrava uma vez por ano. Tive vários cargos na diocese. Durante décadas dividi o meu tempo entre a paróquia e a diocese. Cheguei a me perguntar: Como se explica a fé tão forte deste povo? Não podem ser estes poucos encontros com o padre, muitas vezes ainda nervoso no meio das celebrações tumultuadas.
Eu cheguei a acreditar fortemente na força e luz do Espírito Santo. Só ele podia suscitar e manter uma força tão elevada de fé na presença de Deus neste seu povo. Com toda a agitação guardei a tranquilidade interior. O povo já caminhava antes de mim e continua caminhando depois de mim, e Deus está com ele com o seu Santo Espírito. Nunca o padre vai primeiro. Ele vai no meio do povo, aprende do povo, é carregado pelo povo. E a advertência de Jesus sempre nos deve deixar desconfiados: Os irmãos publicanos e as irmãs prostitutas entram na casa do Pai na frente de muitos de nós que achamos que sejamos nós os que mais merecem. Porque o Reino de Deus sempre é misericórdia, jamais mérito.
Termino o meu testemunho pessoal com um pequeno episódio. Muitos anos atrás celebrei uma missa numa casa no interior, por ocasião de uma tragédia horrível que abateu aquela família. Ao me despedir, o dono da casa agradeceu e disse: “Parece que Jesus estava aqui hoje”. Esse foi o dia mais feliz da minha vida sacerdotal. Se eu servir para isso, fiz tudo, não quero outra coisa. Lembro a palavra de Dom Helder: “Queria ser uma simples poça d’água, só para refletir o céu”.
Todo mundo me deseja muitos anos ainda para continuar a missão. Agradeço a todos estes votos carinhosos. Vou me apegar com a palavra de Deus no livro do Eclesiástico:
“Permanece firme na tua tarefa, ocupa-te bem dela
e envelhece na tua profissão” (Eclo. 11,21).
E o profeta Isaías me anima:
“Até os jovens se afadigam e cansam e mesmo os guerreiros às vezes tropeçam. Mas os que esperam no Senhor renovam suas forças, criam asas como águia, correm e não afadigam; andam, andam e nunca se cansam” (Is. 40,30-31).
Assim seja.