JOÃO CARA: 90 ANOS DEDICADOS AO SENHOR
(Do boletim da Fraternidade Leiga 156, junho 2014. Transcrito do novo blog da Fraternidade Leiga https://charlesdefoucauldbrasil.blogspot.com/ ).
OS ANJOS DA TRINDADE
Benedito Prezia, Fraternidade de São Paulo - grupo Centro
Se houve algumas limitações do espaço físico na Assembleia Nacional de 2014, devido, sobretudo, ao calor de Salvador, acredito que as experiências vivenciais que tivemos, superaram-nas enormemente.
Por isso gostaria de compartilhar com os irmãos algo que senti naqueles dias, sobretudo na visita à Igreja da Trindade.
Por isso gostaria de compartilhar com os irmãos algo que senti naqueles dias, sobretudo na visita à Igreja da Trindade.
Uma das grandes graças de nossa Assembleia foi a presença de Henrique, o peregrino, como nosso palestrante. Falou-nos dos encontros com Deus que ocorrem em nossa vida. Falou-nos longamente de Gabriel, um morador de rua, que foi viver numa igreja abandonada, na ilha de Itaparica, tornando-se um novo mensageiro de Deus. Foi chamado de Santo Anjo da Divina Luz.
No final de suas palestras recebemos duas estampas: uma, com a foto de Gabriel, com suas mensagens; outra, com a reprodução do famoso ícone dos três anjos que visitaram Abraão, mas redesenhado num contexto nordestino. Ambas as imagens foram de muito significado para todos. A foto de Gabriel nos recordará sempre como Deus fala pela boca dos “pequeninos”.
Dele é a frase: “Aqui oro por toda a humanidade sofrida”. E essa imagem bíblica dos anjos, no sertão do Nordeste, que está na Igreja da Trindade, foi uma preparação para entrarmos no clima da visita que ocorreu no dia seguinte. Se no relato bíblico, os anjos comunicaram a Abraão o nascimento de um filho, na visita que fizemos à igreja da Trindade, pudemos ver um local onde os excluídos de nossa sociedade, da zona do porto, da região do meretrício tornaram-se os “escolhidos de Deus”.
Que grata surpresa quando ali chegamos, ao sermos recebidos por aqueles “anjos”. Os antigos moradores de rua, com suas neuroses e transtornos mentais parecem que aos poucos vão encontrando uma nova vida. Muitos nos acolheram com um grande sorriso, perguntando nossos nomes... Outros seguiam no seu mundo, meio ausentes...
Logo fomos conduzidos à nave da igreja, onde o “arcanjo” João Cara, da Fraternidade dos Irmãos do Evangelho, nos fez sentar no chão para uma pequena apresentação. Um pouco mais magro, com o cajado de pastor, mas com voz forte, nos falou sobre o que foi aquele “milagre” da recuperação da igreja abandonada.
Esse templo era o retrato da situação em que viviam os moradores de rua daquela grande cidade, não muito diferente do que se vê nos grandes centros urbanos do Brasil. Aquela área do porto tinha um ambiente semelhante às áreas degradadas de muitas cidades brasileiras: dependentes químicos, moradores de rua, prostitutas... e pequenos assaltantes. O abandono da igreja era a imagem do abandono dos “verdadeiros templos” ocupados pelo Espírito Santo, mas que estavam jogados na sarjeta...
Até que um grupo resolveu mudar aquele local. Henrique, o peregrino, o Irmão João Cara e mais alguns voluntários decidiram recuperar a igreja, transformando-a em local de acolhida para os pobres. Decisão tomada, foram ao cardeal dom Geraldo Majela solicitar a autorização para ocupar a velha igreja. Num mutirão de limpeza, retiraram mais de 300 sacos de lixo! Não foi fácil negociar a saída dos viciados e de pessoas que usavam a igreja para “encontros amorosos”...
Aos poucos o santuário tornou-se um novo espaço de convivência para os moradores de rua. A pedido desse grupo, João, que morava sozinho na sua Fraternidade, em outro bairro de Salvador, decidiu mudar-se para lá. Solicitou a autorização de seus superiores, sendo-lhe construída uma casinha entre algumas árvores que existem ao lado da igreja. E assim passou a ter sua nova Fraternidade... junto com o povo em situação de rua.
O grupo tem uma dinâmica própria, fazendo a sopa todos os dias, a partir de restos de verdura recolhidos numa grande feira, que fica próxima à igreja. E às 5ª. feiras, no final da tarde, é celebrada a eucaristia durante o “sopão”. A missa não é antes e nem depois, mas durante o “sopão”, recuperando o que fez Jesus na última ceia e o que faziam os apóstolos no início do cristianismo.
E nessa visita, nosso grupo, atento, ouviu João Cara explicar a dinâmica desse centro de convivência. A semente está dando frutos, sendo uma referência de trabalho social com essas pessoas, procurando devolver-lhes a dignidade, sem paternalismo ou assistencialismo. No último dia daquele ano, convidaram o cardeal dom Geraldo Majela para celebrar uma missa.
Foi algo inexprimível, que certamente marcou a vida do cardeal, pois a partir daí, todo final de ano ele passou a visitar a comunidade, celebrando aí o “réveillon”, de forma bem diferente dos demais locais de Salvador.
Aquela igreja não é um templo igual aos outros. Com exceção do belo quadro dos anjos visitando Abraão, que está na frente, sobre uma espécie de altar, o local não tem mais o ar de templo, tornando-se um grande espaço comunitário. Em cada nave lateral, dormem separadamente os homens e as mulheres que fizeram dali sua casa. Ali mesmo guardam seus pertences, o que deixa o local parecendo uma grande oficina, como devia ser a casa de Jesus, em Nazaré.
Acredito que o Senhor está contente de ver sua casa ocupada pelos “eleitos do Pai”, bem diferente das outras igrejas do centro histórico de Salvador, que mais parecem museus do que “casa de oração”. Naquelas outras igrejas históricas tínhamos que pagar a entrada para apreciar as obras de arte. Nessa, fomos acolhidos fraternalmente para conhecer essas novas obras de “arte viva”, oriundas das sarjetas e das marquises.
Visitamos em seguida o pequeno bosque, onde foi construída uma capelinha, muito convidativa à oração. Ao lado há também duas “celas”, próprias para os que desejam fazer um dia de retiro. No canto está a casinha onde João morava. Infelizmente teve que deixar o local, depois do atentado que sofreu no Natal de 2011. Foi graças aos “anjos da Trindade” que não morreu, pois um deles ouviu seu gemido, depois que um louco pulou o muro, entrando na casinha para roubar. Sem encontrar nada de valor, furioso, espancou João na cabeça, que teve o queixo perfurado por um estilete. Ficou estendido no chão das 21h às 4h da manhã. Por um milagre sobreviveu a esse atentado.
Levado para o hospital próximo e, depois de permanecer alguns dias na UTI, foi operado. Uma nova cirurgia fez na Itália, onde moram seus parentes. Já recuperado, pediu aos Irmãos da Fraternidade Geral para voltar à “sua Fraternidade”.
Assim está lá, recuperado, junto com seus “irmãos”. No final da visita, comentou comigo: “Está vendo por que não quis ficar na Itália? Aqui está minha vida”. De fato, aquele ambiente e os desafios do dia a dia dão muita energia a esse “Anjo” com mais de 80 anos...
Que Deus o conserve, ele e todos que trabalham na Igreja da Trindade e que continuem sendo os “anjos” na cidade de São Salvador.
(Texto transcrito do Boletim da Fraternidade Leiga, n. 156, junho de 2014, p. 8-10).
MINHA TRAJETÓRIA JUNTO A JOÃO CARA
José Airton Otávio, Fraternidade de Teresina
Em 1980 fui fazer um curso no ISPAC (Instituto Superior de Pastoral e Catequese), em Salvador. Em um dos módulos do curso veio João Cara, acompanhado de três candidatos da congregação dos Irmãos do Evangelho: padre Edson Damian (atualmente bispo no Amazonas), Teófilo e outro padre do qual não recordo o nome.
Os três, no final do noviciado, não permaneceram, voltando para a diocese de origem, Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
Depois que retornei a Teresina, continuei comunicando-me com o João Cara através de cartas, para dizer que gostaria de conhecer o caminho dos Irmãos do Evangelho. E por quatro anos, nas férias do meu trabalho, passava uma semana na Fraternidade.
Esse tempo com o João foi de muito aprendizado, sobretudo, para ter um outro olhar sobre o ser cristão, católico, numa realidade bem sincrética, pobre e de muita luta comunitária, como era a realidade de Salvador.
Em 1985 fui morar na capital baiana para ser acompanhado por João, que era responsável dos candidatos à Fraternidade. Naquela época havia dois lugares para se fazer uma experiência de vida religiosa: João Pessoa, com os Irmãos de Jesus, e Salvador, com João.
Em 1989 havia ido a João Pessoa, onde conheci os irmãos Chico e Guido. Mas João disse que por causa da minha saúde – uma cirurgia no coração e problema da coluna – era melhor fazer essa experiência em Salvador, onde poderia trabalhar em alguma coisa mais leve. Em João Pessoa teria que trabalhar no corte da cana.
Naquele mesmo ano voltei de Salvador, pois avaliei que para morar naquela realidade, algumas vezes teria que ser dispensado de certos trabalhos devido à minha condição física. E João concordou, pois esse período de experiência até o noviciado é um tempo mais exigente e também para discernimento.
Em 1994 iniciamos, em Teresina, nossa Fraternidade Nazaré com a espiritualidade de Irmão Carlos. Por isso, em 1996, convidamos João para vir à Teresina orientar nosso retiro.
Outras vezes quando estive em Salvador sempre fazia uma visita a João. E nosso último encontro foi na Assembleia da Fraternidade Leiga, em 2014.