IRMÃOS DO EVANGELHO
(TEXTOS TIRADOS DO BOLETIM 181 da frat. leiga)
(João Cara, Carlo Carretto, Arturo Paoli e alguns artigos deles).
A congregação dos Irmãozinhos do Evangelho, fundada em Aix-en-Provence, no Sul da França, pelo padre René Voillaume, em 1956, surgiu para responder à dimensão apostólica do carisma do irmão Carlos, que foi “monge missionário”.
Esses irmãos começaram a assumir pequenas comunidades paroquiais, além de terem atividades sociais e pregarem retiros. Dois deles marcaram muito a congregação: Carlo Carretto e Arturo Paoli. O primeiro atuou na linha da espiritualidade, criando em Spello, na Itália, um centro de reflexão e acolhimento espiritual, que muito marcou a Igreja da Itália; o segundo teve um papel importante na linha social, sobretudo, na Argentina, sendo por isso perseguido pela dita dura militar. Um terceiro Irmão, que muito marcou a congregação na América do Sul, foi Maurício Silva, uruguaio, desaparecido na Argentina durante o governo militar. Hoje a congregação conta com 56 membros, vivendo na Europa, África e em países da América, como Estados Unidos, Nicarágua, Venezuela, Bolívia e Brasil.
IRMÃO CARLO CARRETTO
Carlo Carretto nasceu em Alexandria, no Egito, em 1910. Ainda pequeno sua família mudou-se para Turim, na Itália. Na adolescência teve muita influência do Oratório salesiano (=Espaço de convivência destinado a jovens, fundado por Dom Bosco, em Turim. 12).
Formou-se em História e Filosofia, tornando-se diretor de um colégio na Sardenha. Por divergências com o regime fascista, foi demitido, voltando para sua terra, embora estivesse na lista de suspeitos do regime de Mussolini.
Com a queda do fascismo, pôde atuar com muito empenho na Ação Católica, assumindo a coordenação regional do movimento na Itália do Norte.
Em 1945, após a 2ª Guerra, foi chamado a Roma por Pio XII para organizar a Associação dos Professores Católicos. No ano seguinte, tornou-se presidente da Juventude Italiana da Ação Católica- JIAC. Com grande capacidade de organização, em 1948, reuniu em Roma milhares de jovens na celebração do 80º aniversário da fundação da Ação Católica.
Por divergências no campo católico quanto à realidade política da Itália, demitiu-se da presidência da JIAC, em 1952, embora continuasse atuando na linha de um catolicismo comprometido com a transformação social.
Ao conhecer a proposta dos Irmãozinhos de Jesus, deixou-se cativar, entrando em 1954 nessa congregação. Fez o noviciado em El-Abiodd, no Saara. Após esse tempo, permaneceu na região por mais oito anos, trabalhando numa estação meteorológica francesa. Foi um período também de forte experiência religiosa.
Em 1964 passou a fazer parte dos Irmãozinhos do Evangelho, fundado pelo padre Voillaume em 1956.
Em fins de 1965, estabeleceu-se em Spello, perto de Assis, onde criou um centro de espiritualidade que, ao longo dos anos, recebeu milhares de pessoas, sobretudo jovens, numa vivência que muito marcou a Igreja da Itália.
No dia 4 de outubro de 1988, festa de são Francisco de Assis, após vários anos de enfermidade, fez sua passagem para a Eternidade, rodeado de irmãos e amigos que vieram de diversos pontos da Itália.
(Resumo das notas biográficas, publicadas no livro El-Abiodh, diário espiritual, 1993.)
SONHO DA SANTIDADE
Carlo Carretto
Vim até Nazaré para passar alguns meses de solidão. Mais uma vez me deixei tentar pelo deserto, que sempre representou para mim a alcova de meu amor pelo Absoluto de Deus e o lugar onde aflora a verdade.
Esta solidão é como a solidão das dunas de Beni Abbès ou do árido deserto de Assekrem. No fundo tudo nasce da mesma raiz, pois, quando o padre de Foucauld procurava o deserto africano, estava fazendo o mesmo que nós ao procurar o silêncio.
O que conta é Deus. E o silêncio é um ambiente próximo de Deus. Procurar Nazaré, onde tudo se funde em uma perfeita unidade. Arbustos, pedra nua, arquitetura, pobreza, humildade, simplicidade e beleza formam aqui uma das obras primas com que se expressa a espiritualidade foucauldiana, dando aos homens e mulheres um exemplo de paz, oração, silêncio, respeito ecológico e beleza, vitória dos homens e mulheres sobre as contradições da época.
Olhando para estes caminhos, morada de pessoas pacificadas pela oração e pela alegre aceitação da pobreza, temos a resposta para os angustiantes desafios que afligem a nossa civilização.
Vejam, nos dizem estes tijolos, que a paz é possível! Construindo suas casas, não procurem o luxo, mas sim o que é essencial. Então, a pobreza se tornará beleza e harmonia libertadora, como podem ver nestes caminhos silenciosos.
Não destruam as matas para construir empresas que aumentarão o desemprego e as dificuldades, mas ajudem os homens e as mulheres a se reinserirem no campo, usufruindo do trabalho artesanal e bem-feito e sentindo novamente a alegria do silêncio e do contato com a terra e com o céu.
Não amontoem dinheiro, pois serão acossados pela desvalorização e pelos ladrões, mas abram as portas do coração para o diálogo com o irmão e a irmã e para o serviço pelos mais pobres.
Não prostituam o seu trabalho construindo objetos de breve duração, que consomem a pouca matéria prima que ainda existe, mas façam baldes como este, que está sobre este poço, um balde que há séculos vem tirando água e ainda presta um serviço.
Sacudam de vocês o medo ao irmão, andem ao seu encontro desarmados e mansos. Ele é uma pessoa como você e que como você precisa de amor e de confiança.
Não se preocupem “com o que haveis de comer” e “com o que haveis de vestir”. Fiquem calmos, nada lhes faltará. “Buscai, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça”, e tudo lhe será dado em acréscimo. “A cada dia bastam as suas preocupações”.
Em suma: esta casa fala. Fala para dizer que é possível a Fraternidade. Fala para dizer que Deus é nosso Pai, que as criaturas são irmãs e que a paz é alegria. Basta querê-lo. Experimentem, irmãos. Experimentem e verão que isso é possível. O Evangelho é verdadeiro. Jesus é o Filho de Deus e liberta a humanidade. A não violência é mais construtiva do que a violência.
Experimentem pensar nisso, irmãos e irmãs. Vejam que coisa extraordinária temos diante de nós. É sempre assim: Deus propõe a paz. Por que não tentar?
Extraído do livro Eu, Francisco (Paulus, 2003).
LIVROS DE CARLO CARRETO
Seus livros, publicados na Itália, tiveram grande repercussão, sendo traduzidos para vários idiomas. Entre outros, temos os seguintes títulos lançados no Brasil:
Cartas do Deserto (Paulinas, 1973)
O que vale é o amor (Paulinas, 1974)
Deserto na cidade (Paulinas, 1979)
El-Abiodh. Diário espiritual, 1954-1955 (Paulinas, 1993)
Eu, Francisco (Paulus, 2003)
IRMÃO ARTURO PAOLI
BENEDITO PREZIA
A Fraternidade Secular do Brasil não teve muito contato com Arturo Paoli, embora, em 1973, pudemos participar de um retiro pregado por ele, no Rio de Janeiro. Chamava a atenção seu “portunhol”, mas que não atrapalhava suas colocações que eram bem diretas. Assim todos o entendiam.
Em 1993, estando ele morando em Foz do Iguaçu, pedimos para que fizesse um texto sobre o tema Vigiai e Orai, para Assembleia a se realizar na França, em 1994. Infelizmente o texto não foi usado, talvez pelo fato de ter ficado muito extenso.
Já em 2004, quando preparávamos a versão brasileira do vídeo Frutos do Deserto, produção dos Irmãos do Evangelho, encontrei-me com ele em Mogi das Cruzes, pois trazia uma ajuda financeira para finalizar esse documentário. Preparava-se para retornar à Itália, afirmando que atendia a um pedido da Fraternidade Central, por estar idoso. Disse-me que seu desejo era ficar no Brasil e ser enterrado em Foz do Iguaçu, pois aqui as pessoas têm o hábito de ir ao cemitério fazer seus pedidos aos falecidos. Se fosse enterrado aqui, poderia melhor atendê-las. Viveu mais 11 anos na Itália. Com 101 anos foi recebido pelo Papa Francisco, no Vaticano, tendo sido este um de seus últimos desejos.
Benedito Prezia
PARTIU O HOMEM QUE SEMPRE ESPERAVA O ADVENTO DE DEUS
Leonardo Boff, teólogo e escritor
“Recordo, com carinho e admiração, o fratello Arturo Paoli, pois fazíamos aniversário no mesmo dia e me lembro, com saudades, que comemoramos juntos, em Cochabamba, na Bolívia, em 1982, seus 70 anos.” Com essas palavras Leonardo Boff iniciou o texto abaixo, escrito em 2015, por ocasião da morte do Arturo.
Ele fez de tudo na vida. Na juventude foi ateu e marxista. Mas, de repente, se converteu. Ordenou-se padre durante a guerra. Logo entrou na Resistência contra os nazistas. Em 1949 fizeram-no assistente da Juventude da Ação Católica. Mas seus métodos libertários não agradaram o do status quo eclesiástico9 de Roma e o mandaram acompanhar emigrantes italianos que iam de navio à Argentina. Na viagem de volta encontrou um Irmãozinho de Jesus, seguidor de Charles de Foucauld, cujo carisma é viver no mundo entre os mais pobres.
[Entrando na congregação] iniciou-se na Argélia, junto ao deserto, e na luta de liberação contra a dominação francesa.10
Depois foi enviado à Argentina. Por anos trabalhou junto a madeireiros. (...), mas logo seu nome estava na lista [dos militares]: “Quem encontrar um desses, pode eliminar”.
Esteve por um tempo na Venezuela. Mas acabou por instalar-se no Brasil, em Foz do Iguaçu, onde realizou várias atividades para os pobres, com ervas medicinais, com um trabalho social para jovens desamparados e com outras organizações populares que ainda hoje persistem.
Teve muitos reconhecimentos que quase sempre rejeitava. Mas o mais importante foi em 29 de novembro de 1999, em Brasília, quando o embaixador israelense lhe conferiu a maior comenda a não judeus: Justo entre as nações. Foi em reconhecimento ao trabalho que fez durante a guerra, [na Itália], criando com outros, uma rede clandestina que salvou cerca de 800 judeus.
Fez-se monge sem sair do mundo, mas sempre dentro do mundo dos lascados e humilhados. Todo o tempo livre dedicava-o à oração e à meditação. (...) Foi uma das figuras mais impressionantes que passaram por minha vida, com uma retórica de ressuscitar mortos. Éramos amigos-irmãos.
Estranhamente tinha um jeito próprio de rezar. Foi ele quem me contou. Pensava: se Deus se fez gente em Jesus, então foi como nós, fez xixi, cocô, choramingava pedindo peito, fazia biquinho (ou beicinho) com o que o incomodava como a fralda molhada.
No começo, pensava ele, Jesus teria gostado mais de Maria, depois mais de José, coisas que Freud e Winnicott11 explicam. E foi crescendo como nossas crianças, brincando com as formigas, correndo atrás dos cachorrinhos (...)
Esse estranho místico, rezava à Nossa Senhora imaginando como ela ninava Jesus, como lavava no tanque as fraldinhas sujas e como cozinhava o mingau para o Menino e como fazia as comidas fortes para o seu marido carpinteiro, o bom José.
E se alegrava interiormente com tais maturações porque assim devia ser pensada a encarnação do Filho de Deus, na linha do Papa Francisco, não como doutrina fria, mas como fato concreto. Sentia e vivia tais coisas na forma de comoção do coração. E chorava com frequência de alegria espiritual.
(...) Acompanhou os sem-terra que conseguiam se estabelecer e fazia belas “místicas” ecumênicas como faz sempre o MST.
Mas todos os dias, por volta das 10 da noite, se enfurnava na igreja escura. Apenas a lamparina lançava lampejos titubeantes de luz, transformando as estátuas mortas em fantasmas vivos e as colunas eretas, em estranhas bruxas. E lá se quedava até às 23 horas. Todas as noites. Impassível, olhos fixos no tabernáculo.
(...) É por causa dessas pessoas, místicas anônimas, que a Casa Comum, no dizer do Papa Francisco, não é destruída e Deus continua com sua misericórdia sobre a humana perversidade.
Elas vigiam e esperam, contra toda a esperança, o advento de Deus que talvez nunca acontecerá. Mas são os para-raios divinos que recolhem a graça que, silenciosamente, se difunde pelo universo e faz que Deus continue a nos dar o sol e todas as estrelas, e penetre fundo no coração de todos os que vivem na Casa Comum. E se Deus aparecer haverá gente disponível para ouvi-lo. E chorarão de alegria.
Seu nome é Arturo Paoli, que com 102 anos foi finalmente ver e escutar Deus que lhe falará por toda a eternidade, no dia 13 de julho de 2015, em San Martino in Vignale, nas colinas de Lucca, Itália, onde vivia.
Texto postado no dia 14/07/2015, disponível em: https://leonardoboff.org/2015/07/14/partiu-o-homem-que-sempre-esperava-o-advento-de-deus/
NOTAS:
9 Refere-se à estrutura eclesiástica da Cúria Romana.
10 Na Argélia fez o noviciado dos Irmãozinhos em El-Abiodh, mas não se envolveu na luta pela independência dessa colônia francesa. Ver PETTITI, Silvia Arturo Paoli, “Ne valeva la pena” (biografia), 2010, p. 77-85.
11 Donald Woods Winnicott (1896-1971), importante psicanalista inglês, influente no campo do desenvolvimento psicológico.
ARTURO PAOLI, PROFETA DOS POBRES
Airton Foss, Foz do Iguaçu (PR)
Arturo Paoli nasceu em Luca, na Itália. Após uma longa trajetória da Europa para América Latina, chega em 1988 à Foz do Iguaçu a convite de dom Olívio, bispo diocesano. Segundo o padre Carlos Sossa, a escolha por Foz do Iguaçu foi providencial devido à experiência na caminhada que fez por vários países da América Latina. O Brasil se mostrava um bom local para viver, pois estava em transição da ditadura civil-militar para uma nova democracia. A proximidade com a Argentina foi também um elemento decisivo.
Segundo Isolina Ferreira, ministra da eucaristia, Arturo chega como um homem simples e se apresenta à comunidade onde escolheu viver, como escritor e teólogo. Dom Olívio o autoriza a celebrar na capela Sagrada Família da comunidade Boa Esperança. Logo é acolhido por uma família que lhe cede uma pequena parte do terreno para que construísse sua casinha.
Caminhando, celebrando e ouvindo o povo da comunidade, percebeu muita carência e situações geradas pela pobreza, como desemprego, falta de moradia, fome, insegurança e problemas ligados à falta de saúde. Diante dessa realidade, Arturo Paoli percebe que precisaria fazer alguma coisa. A partir dos moradores começam a surgir ideias para enfrentar essas demandas.
Resolve, em primeira mão, criar a Associação Fraternidade Aliança (AFA). Através dela surgem vários projetos de geração de renda como padaria comunitária, sala de corte e costura, marcenaria, metalúrgica, horta comunitária, mercadinho, projeto do leite, microcrédito, Casa da Criança e um peque no posto de saúde, voltado à medicina fitoterápica. Mais tarde as demandas se ampliam, vindas de várias ocupações que foram surgindo na região.
Dessa forma, Arturo, com uma equipe ampliada, vai criando outros espaços como a Casa Lar, que acolhe crianças e adolescentes em situação de rua e em conflito com a lei, e a Casa Charles de Foucauld que desenvolve projetos para jovens, dando-lhes suporte no aprendizado e na inserção ao trabalho, além de atividades de cultura, esporte e lazer.
Por último cria um projeto desafiador para aqueles tempos, que era incentivar e preparar jovens a trabalhar a terra, visando pegar gosto pelo manejo da Mãe Terra. Por isso recebe o nome de Madre Terra.
Toda essa trajetória junto à comunidade despertou uma empatia das pessoas que moravam no entorno da AFA, no grande Porto Meira. A semente lançada deu frutos. Ainda hoje funcionam a Associação Fraternidade Aliança (AFA), os projetos Casa da Criança, a Orquestra Reciclando Sonhos, a Fundação Nosso Lar, o Vínculo Social e Comunitário, a produção de hortaliças, os programas Guarda Subsidiada, Família Acolhedora, Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil (UAI), o Complexo Terapêutico Infanto-juvenil e a Associação Madre Terra.
Participação Popular
Podemos avaliar a importância de Arturo para a comunidade de Foz, pelo depoimento das pessoas que o conheceram.
Jose Aldo, animador de grupo de família e morador da ocupação Morenita I, relatou sua convivência com ele. Morou por três meses em sua casa, quando viajou para Itália. Afirma que Arturo sempre ajudou a comunidade até na instalação de um mercadinho, localizado na ocupação. Também ajudou na construção da capela na ocupação Morenitas II e na ampliação da capela da Boa Esperança. “Era um homem que só fazia coisas boas”.
Noeli, moradora no Morenitas I, compartilhou sua experiência com Arturo e nos conta que quando veio para Foz do Iguaçu, foi morar com a sobrinha. Esta lhe disse que na casinha dos fundos morava um padre. Ele era uma pessoa incrível e passava boas mensagens, uns conselhos que nunca tinha visto antes. Um dia, conta ela, disse que se nós quiséssemos morar na casa dele, zelando, podíamos ficar, pois tinha que viajar. Deixou até o gás pago. Ficamos lá por três meses, eu, meu marido e minhas três filhas. Ajudava as pessoas e visitava as casas, por mais simples que fossem. Às vezes ia sozinho, outras vezes, acompanhado.
Rose, líder comunitária, nos conta que o padre Arturo era um Anjo da Guarda para sua família e para muitas outras que moravam na ocupação do Morenitas I e Morenitas II. Ele sempre ajudava, não só sua filha, que era doente, como outras crianças da comunidade.
Lembra que ele ajudou a construir um postinho de saúde, onde se produzia remédio caseiro e não se cobrava nada. Fez também a Capela Santos Anjos onde havia celebração, reuniões e onde se fazia o sopão. Sempre defendeu os mais pobres e carentes, ajudando as mães grávidas, até com chá de bebê.
Tatiana, jovem catequista na comunidade, relembra a convivência e as experiências que teve, pois o padre Arturo era sempre presente nas atividades em que era convidado, como nos estudos bíblicos e nas missas na favela. Conta que uma vez fizeram uma festa surpresa, no seu aniversário. Prepararam um caminho florido e as crianças, vestidas de anjo guiaram-no. Arturo ficou emocionado e disse que aquele tinha sido “o maior presente que um nono [avô] poderia receber”. “Foi muita emoção e alegria”, relembra Tatiana, toda feliz.
Thayana Scapini, jovem que fazia parte da Pastoral de Canto da Capela Sagrada Família e da Capela Santos Anjos, lembra muito bem dele. Era uma figura singela, olhos bondosos e timbre de voz afável. Trajando com simplicidade, partilhava fé e esperança. Fez como Cristo, defendeu os pobres, zelou pelas crianças e jovens, foi amor e serviço em carne e osso. Embora pequeno, foi um grande homem.
Arturo em sua trajetória por Foz do Iguaçu teve destaque em toda comunidade iguaçuense, com um trabalho reconhecido por políticos, religiosos, universidade, sociedade civil e até pela empresa Itaipu, devido ao seu grande empenho e dedicação.
De volta à Itália, deixou um grande legado que continua até hoje, sendo levado por um grupo de amigos, colaboradores, trabalhadores e voluntários que fazem com que essas obras continuem e prosperem.
Com a colaboração de vários companheiras e companheiros, que conviveram com o irmão Arturo Paoli.
LIVROS DE ARTURO PAOLI PUBLICADOS NO BRASIL
Escreveu mais de 40 livros, todos publicados na Itália e muitos deles com tradução para o espanhol e inglês. Em português encontramos, entre outros, os seguintes títulos:
Caminhando, se abre caminho (Loyola, 1978)
A raiz do homem. Perspectiva política do evangelho de Lucas (Loyola, 1979) O presente não basta a ninguém (Loyola, 1981)
Espiritualidade hoje. Comunhão solidária e profética (Paulinas, 1987) Testemunhas de esperança (Paulinas, 1992)
OS IRMÃOS DO EVANGELHO NO MEIO DA TEMPESTADE ARGENTINA
Benedito Prezia, Fraternidade de São Paulo
A Fraternidade dos Irmãos do Evangelho começou na América do Sul, em 1959, junto ao povo Yanomami, nas florestas da Venezuela. No ano seguinte, os irmãos Arturo Paoli, Marcelo Lafage e Esteban de Quirini partiram para começar uma fraternidade no norte da Argentina, em Fortin Olmos, na Província de Santa Fé, a convite de dom José Iriarte, bispo de Reconquista.
Foram viver entre os madeireiros da empresa La Florestal. Em 1968 esta faliu e os Irmãos decidiram criar uma cooperativa para não deixar desamparados, sobretudo, os “hacheros”, que eram os que trabalhavam no corte da madeira. Também faziam parte desse empreendimento antigos funcionários, que tinham outra visão, o que levou a conflitos, resultando em denúncias contra Arturo, que precisou apresentar-se à polícia.
A partir do começo de 1970 entraram novos candidatos, como Maurício Silva, sacerdote salesiano uruguaio, e Patrício Rice, sacerdote irlandês. Com o aumento da comunidade, Arturo ficou mais liberado e passou a viajar, atendendo convites para pregar retiros e assessorar reuniões. Dessa forma a proposta da Fraternidade foi sendo mais conhecida.
Aos poucos, em Fortin Olmos, os Irmãos foram implantando outros trabalhos sociais, como carpintaria, olaria e tecelagem para mulheres. Com o passar do tempo perceberam que já era hora da comunidade assumir essas atividades e assim deixaram o local em 1972.
Optaram por instalar-se no meio urbano, como Rosário, Córdoba e Buenos Aires, mas seguiram no meio agrícola com uma Fraternidade na província de Tucumán.
A vida da Fraternidade entre os excluídos chamava a atenção e atraía leigos e religiosos. Chegou a ter 16 membros, entre Irmãos e postulantes.
Com a volta de Perón do exílio, a Argentina começou a viver um clima de radicalização política, que culminou com o golpe militar de 1976. A ditadura militar, que se instalou nesse país seguiu os passos dos militares do Brasil e do Chile, formados na Escola Militar das Américas, criada pelos Estados Unidos no Panamá. A partir da doutrina de Segurança Nacional, fruto também da Guerra Fria em que o mundo estava envolvido, qualquer trabalho de mudança social em busca de mais justiça e igualdade era visto como obra de comunistas ou “subversivos”..
A opção dos Irmãos, em viver em áreas carentes, levantava suspeitas de ligação com grupos de esquerda, com comunistas, Montoneros ou até mesmo com a guerrilha, que começava a atuar. O padre Orlando Yorio, desaparecido durante a ditadura, lembrava que nos interrogatórios na prisão ouviu de um militar: Você tem um erro, o de ter interpretado muito ao pé da letra a doutrina de Cristo. Cristo fala dos pobres, mas são os pobres em espírito e você foi viver com os pobres [reais]. Na Argentina os pobres em espírito são os ricos, e você, a partir de agora, deverá ajudar mais os ricos, que são os necessitados espiritualmente.12
O grupo paramilitar Tríplice A (Aliança Anticomunista Argentina), em maio de 1974, publicou uma lista de pessoas consideradas subversivas e marcadas para morrer. O segundo da lista era Arturo Paoli. Felizmente, em abril, havia viajado para a Venezuela, escapando assim da morte.13
Sem levar em conta essas ameaças, a Fraternidade dos Irmãos do Evangelho e outros grupos cristãos continuaram vivendo com os pobres, acreditando na mudança estrutural do país. Três situações marcaram a Fraternidade nesse período: a repressão contra os Irmãos em Tucumán, a experiência das Fraternidades Ampliadas e o sequestro e desaparecimento do irmão Maurício Silva.
Em 1975, depois de terminados os estudos, três irmãos, Rogelio Vedovaldi, Héctor Artola e Antônio Lazzarotto decidiram formar uma Fraternidade rural na província de Tucumán. Depois juntou-se a eles Marcos Cirio. Antônio trabalhava no corte da cana e os outros, em empresas de frutas.
Pelo fato da Fraternidade ser de origem francesa e por estar, supostamente, perto de um acampamento guerrilheiro, a comunidade começou a ser controlada.
Em julho de 1975, o bairro em que viviam foi surpreendido por uma verdadeira operação de guerra, com helicópteros, tanques e cachorros. A casa da Fraternidade foi cercada e os militares diziam que estavam à procura dos “muchachos de Arturo Paoli”. O primeiro a ser preso foi Antônio, que estava em casa, sendo os outros capturados à medida que chegavam. Graças à intervenção de um advogado amigo, vindo de Buenos Aires, conseguiu-se que fossem liberados depois de 12 dias de prisão. Na realidade foram soltos numa área rural, sem documentos, apenas com a roupa do corpo.14
Após esse episódio a Fraternidade foi fechada. Antonio Lazzaroto mudou-se para a Fraternidade de Buenos Aires, indo trabalhar no porto, como estivador, enquanto tentava refazer seus documentos, pois era italiano. Sem sucesso, teve que voltar à Itália para conseguir novo passaporte, pois a Fraternidade planejava mandá-lo para o Brasil para uma nova fundação, juntamente com João Cara, que era o coordenador regional da América Latina, e Marcelo Lafage. Rogelio e Hector foram para o México, pois não se sentiram seguros na Argentina.
Nessa época havia uma busca de renovação da vida religiosa, com uma evangelização mais engajada e de dimensão comunitária. Muitos leigos buscavam um compromisso maior junto às comunidades carentes, visando uma mudança das estruturas. Alguns aspiravam uma vida comum, incluindo até a partilha econômica. Essa demanda chegou à Fraternidade, que se abriu, atendendo também a uma proposta do padre Voillaume, feita ainda em 1967.
Assim a Fraternidade de Córdoba, cujo responsável era Nelio Rougier, acolheu o casal Felipe e Marita Gonzalez. Vivendo em Buenos Aires, onde montara um escritório de apoio à Fraternidade, Ada d’Alessandro tornou-se bem próxima da Fraternidade, chegando a fazer uma consagração de vida. Outras experiências surgiram com casais tanto em Fortin Olmos, no interior, como em Abscal, em Buenos Aires. Na Fraternidade da Boca, na capital, houve a presença de religiosas.
Como escreveu posteriormente o antigo prior Francisco Hulsen, “a integração da mulher e de casais era vista como uma mensagem de dignidade e de igualdade, algo importante para se levar ao meio humano onde se vivia. A colaboração profunda e fraterna, com muitas partilhas, era benéfica e refletia na vida religiosa dos Irmãozinhos”.15
A própria Fraternidade aceitou essa experiência, como ocorreu no Capítulo Geral dos Irmãos, em 1973. Mas havia questionamentos sobre o caráter específico da vida religiosa, pois esta tinha exigências próprias, diferentes da vida dos leigos. Alguns achavam que era importante distingui-los, separando as equipes de vida apostólica e as de vida religiosa. Dessa forma poderiam surgir dois tipos de Fraternidade, uma de religiosos e outra de leigos, vivendo com autonomia, mas bem articuladas “num projeto comum de construção do Reino, partindo da realidade dos pobres e na luta pela libertação”.16
Com o golpe militar, ocorrido em março de 1976, a Fraternidade foi fortemente atingida, interrompendo essa experiência.
Outro fato marcante foi o sequestro e desaparecimento do irmão Maurício Silva. Em 1973 havia deixado Fortin Olmos, mudando-se para Buenos Aires. Embora sacerdote, desejava trabalhar como gari, na limpeza pública, numa presença junto a esses trabalhadores excluídos. Instalou-se em Malabia, bairro popular de Buenos Aires, juntamente com seu irmão Jesus Silva, também sacerdote, com um padre espanhol, Veremundo Fernandez e com a leiga Martha Garaycochea.
Como escreveu Patrício Rice, relembrando essa fraternidade, “logo que Maurício começou a trabalhar como gari, houve um forte movimento dos empregados da limpeza pública para que continuassem como funcionários municipais, tendo havido também a ocupação de dois prédios da prefeitura e uma intensa atividade política e sindical. Maurício participou dessa luta e chegou a ser bastante conhecido entre seus colegas de trabalho.”17
Seu irmão, Jesus Silva, numa entrevista dada em 2006, recordou esse momento importante: Maurício, como sacerdote, tinha sua vida espiritual de maneira privada, e no seu trabalho de gari, dava testemunho de solidariedade. A vida interior da comunidade [Fraternidade] era um ponto de apoio importante, para ele ter uma atuação sindical efetiva. Participava de todas as preocupações do momento, dessa esquerda que não queria perder aquela hora política tão particular em que se vivia na Argentina, pois era uma possibilidade de mudança real. Maurício entrou no sindicato na hora em que era preciso cuidar da sede recém-conquistada, quando os operários se revezavam em turnos de guarda. (...) Chegou um momento em que a opção sindical obrigava a uma participação ativa e violenta. Discutimos então com Maurício: teríamos que continuar a militância sindical ou pedir um afastamento?
A comunidade [Fraternidade] não está de acordo em pegar em armas e nem aderir à violência. (...) Assim decidimos cortar os laços com o sindicato para não ter que assumir esta posição de violência. Foi em dezembro de 1976.18
Por sua atuação no sindicato e, seguramente, pelo fato de ser identificado como alguém estranho àquele meio, entrou para a lista dos “marcados para morrer”. Um dos militares, num interrogatório feito com João Cara, disse explicitamente: “Como pode ser que um homem de tantos estudos, como Maurício, um sacerdote, pudesse se dedicar a essa vida?”
Na manhã do dia 14 de junho de 1977, enquanto trabalhava na rua, foi sequestrado, não sendo depois localizado. Isso ocorreu, apesar de os militares terem garantido à Nunciatura que ele não seria preso, já que o Núncio acompanhava a escalada da repressão militar contra religiosos.
Domingos Moreau, dos Irmãos de Jesus, deixou também um importante depoimento, afirmando que Maurício sentia que seus dias estavam contados: Os últimos meses em que viveu em Buenos Aires, antes de desaparecer, foram para ele de grande solidão.
Vinha celebrar a missa em San Justo, onde tínhamos a Fraternidade. Acredito que era de uma grande sensibilidade e, o que viveu naquele momento, deve ter sido para ele a Paixão mais atroz que se possa imaginar. Creio, verdadeiramente, que foi um autêntico mártir da América Latina.19 Como Cristo, vivenciou a solidão do Getsêmani, reproduzido num belo poema por ele escrito, que assim terminava: Sei que Tu estás aí, quando amar é um sulco humilde e obscuro, que reclama o grão para ser fecundo e morrer na solidão. Sei que Tu estás, Senhor! Acredito em Ti, espero em Ti, ó Senhor que me amas... Sei que Tu estás.
Depois de muitas andanças e perguntas, João Cara conseguiu algumas pistas sobre o “desaparecimento” de Maurício, como narrou no texto La lucha por Mauricio, escrito em 2006.20
Uma senhora que presenciou o sequestro no bairro em que Maurício trabalhava, narrou que por volta das 9 horas, desse 14 de junho, chegaram alguns carros Ford Falcon brancos, sendo que seus ocupantes o sequestraram.
Depois de vários contatos com a nunciatura e com dom Pichi, bispo auxiliar de La Plata e antigo colega de Maurício no Seminário Salesiano, somente em setembro João Cara foi informado por esse bispo, que recebera informações de que o Irmão havia sido localizado no Campo de Mayo, importante quartel militar. Um mês depois, esse mesmo bispo comunicava que Maurício não se encontrava mais ali e que estava “nas mãos dos militares”. Onde? Quando? Essas e outras perguntas nunca foram respondidas.
Apareceram posteriormente outras pistas, como a informação de uma religiosa, que teria cuidado de Maurício, já moribundo, num hospital de Buenos Aires. Mas essa irmã nunca foi localizada e não se pôde confirmar tal relato.21
Paulo VI, a pedido do padre Voillaume, teria entrado em contato com o governo argentino exigindo informações sobre seu paradeiro. Diante dessa e de outras pressões internacionais, os militares resolveram “trasladá-lo”, isto é, eliminá-lo, pois não queriam que aparecesse vivo, devido ao lastimável estado em que se encontrava.22
Foi assim que os militares argentinos combateram a “subversão” de pessoas ligadas às Igrejas cristãs.
Outras prisões haviam ocorrido antes do sequestro de Maurício. Em dezembro de 1974 a Fraternidade de Córdoba já tinha sido alvo da repressão. Nélio Rougier, seu responsável, estava ausente quando houve a batida policial e por isso precisou entrar na clandestinidade. Mas o casal Felipe e Marita González, com o filho pequeno, membros dessa Fraternidade Ampliada, foram presos. Permaneceram na cadeia até maio do ano seguinte. Em março de 1976, foram novamente encarcerados, sendo soltos somente em maio de 1979.
Em meados de julho de 1976 o irmão Henri de Solan, francês, foi preso em Goya, permanecendo na cadeia até 6 de junho de 1977. Alguns dias de pois, voltou a ser detido, ficando na prisão até março de 1978.
Em outubro de 1976 o irmão Patrick Rice, mais conhecido como Patrício, que vivia na favela de Soldati, foi preso juntamente com Fátima Cabrera, catequista da comunidade. Ele, por ser irlandês, graças à pressão de seu governo, foi solto, sendo expulso da Argentina em dezembro daquele ano. Entretanto Fátima permaneceu na prisão por dois anos, sendo liberada somente no final de 1978.
Marcos Cirio, da antiga Fraternidade de Tucumán, foi sequestrado em novembro de 1976 e nunca mais se soube de seu paradeiro. Nesse mesmo mês, Pablo Gazzarri, sacerdote argentino e membro da Fraternidade de Buenos Aires, foi preso, tornando-se mais uma vítima desaparecida.
Em fevereiro de 1977, Nelly de Forti, professora, que participava da Fraternidade de Córdoba, foi sequestrada no aeroporto internacional de Buenos Aires, juntamente com seus filhos. Eles foram liberados, mas ela “desapareceu”. Em abril do mesmo ano, Carlos Bustos, frei capuchinho e postulante da Fraternidade, foi igualmente sequestrado quando ia para a celebração da Sexta Feira Santa a ser realizada na basílica de Nova Pompeia, em Buenos Aires, tornando-se mais um desaparecido.
Outros tiveram que sair do país, como José Chiche, Esteban de Quirini, Marcelo Lafage, Ada D’Alessandro e Jesus Silva.
Dessa forma, de maneira trágica, a Fraternidade dos Irmãos do Evangelho foi obrigada a encerrar sua presença na Argentina. Entretanto alguns leigos e leigas continuaram na Fraternidade Secular, como o casal Felipe e Marita González, Fátima Cabrera, que havia se casado com Patrício, depois que ele deixara o ministério. Como membros da Fraternidade Secular, na Assembleia do Rio, em 2000, este casal foi indicado para compor a Equipe de Coordenação Internacional da Fraternidade.
Alguns membros da Fraternidade Secular tiveram que deixar também o país, como Jorge e Adriana Lagrange, que vieram para o Brasil com os filhos, indo depois para a França, como refugiados. Roberto Scordatto, sua esposa Maruja e filhos, fugiram para o Chile, de onde solicitaram refúgio junto ao governo italiano. Roberto continuou participando da Fraternidade Secular em Turim, tendo sido um dos inspiradores do estatuto abreviado Caminho de Unidade.
Maurício não ficou esquecido. Em dezembro de 2014, o Senado da Argentina aprovou uma lei instituindo 14 de junho como o Dia Nacional do Gari, para homenagear o irmão Maurício Silva e todos os que desapareceram durante a ditadura militar.
Recentemente os Irmãos do Evangelho abriram um segundo processo contra o Estado Argentino em relação ao desaparecimento de Maurício, por “crime de lesa humanidade”, representados por Elena Gonzalez, da Fraternidade Secular da Venezuela.
Outros entraram com ações devido a parentes desaparecidos, como René Flores, ou por terem sido vítimas daquele regime de terror, como Eduardo e Silvia Caran, Juan Mechia e Adela Barraza.23
No dia 22 de março de 2021 a Fraternidade Secular da Argentina reuniu-se em Buenos Aires para receber as novas fichas de registro trabalhista dos garis desaparecidos durante a repressão: Néstor Sanmartino, Julio Goitía e o irmão Maurício Silva. Nas antigas fichas constavam a anotação, “abandono do serviço”. Com uma decisão judicial, ocorrida em 2012, a prefeitura foi obrigada a mudar essa anotação, colocando “desaparecido”.
Dois dias depois, em 24 de março, ocorreu um ato para lembrar os 30 mil desaparecidos, por ocasião do 45º aniversário do golpe de Estado de 24 de março de 1976. Esse evento foi chamado Plantar a memória, quando se plantaram 30 mil árvores de espécies nativas em áreas de preservação ambiental, uma maneira encontrada pelo grupo para manter viva a memória desses desaparecidos durante a última ditadura. Plantemos a vida! Plantemos a memória.24
NOTAS:
15 Idem, p. 37.
16 Idem, p. 40.
17 Idem, p. 168.
18 Entrevista, abril de 2006. In: VÁZQUEZ, Alicia (org.), Gritar el evangelio con la vida. Mauricio Silva barrendero, 2007, p. 143.
19 Depoimento feito para a pesquisa do livro La Fraternidad en medio de la tempestad. In: VAZQUEZ, A., idem, p. 148.
20 In: RICE, P.; TORRES, L. (Org.), En medio de la tempestad. Los Hermnitos del Evangelio en Argen tina (1959-1977), 2007, p. 175-176.
21 Idem.
22 Idem, p. 176.
23 Essas informações recentes foram transmitidas por Fátima Cabrera, da Fraternidade Secular da Argentina. 24 In: Courrier International de la Fraternité Séculière Charles de Foucauld, no. 104, 2021, p. 24-25.
ADEUS COMPANHEIRO PATRICIO
Vítima de um infarto fulminante, Patrício, ao voltar de uma viagem de trabalho na Europa, partiu inesperadamente em 7 de julho de 2010, numa conexão no aeroporto de Miami, última escala antes de chegar à Argentina. Segue um emocionante texto em sua homenagem, escrito por seus companheiros de prisão.
Os ex-presos e desaparecidos do CCD-GT4 da Superintendência da Segurança Federal da ditadura militar argentina dos anos 70, guardamos na memória sistêmica as dores daquela ANTESSALA DO INFERNO! Sem nenhuma vergonha, choramos a partida do nosso querido irmão Patrick Rice.
Vergonhosamente despidos, cegos pela tortura, sozinhos na profunda solidão, amarrados, acorrentados, conscientes da dor da tortura e da presença real da morte presa ao vazio do desconhecido, agarrados à esperança e às próprias forças para não perder o segredo íntimo de nossas convicções, terríveis momentos vivenciamos.
A valentia desaparece com o suicídio heroico, mergulhado na miséria solitária, na abstrata pureza da revolução sonhada, junto às frustrações de nossas crenças...
Tudo vai se projetando, segundo após segundo, horas após horas, enquanto o corpo se retorce involuntariamente diante dos choques elétricos que arrancam nossas vísceras.
Ali não há testemunhas... Os torturadores anônimos se escondem detrás de nossas impotências, e apenas a cínica morte quebrando o silêncio... Ali estiveste, reverendo Patrick Rice, repartindo um pedaço de pão duro em nome de Cristo, que animava discretamente suas profundas crenças. Ateus, agnósticos e seguidores de outras teogonias [doutrinas religiosas] e credos, todos respeitamos e compartilhamos contigo a estola das correntes de seus grilhões de prisioneiro, no teu altar no Monte Calvário real de teu corpo dilacerado como o nosso. Tua alva sacerdotal, a túnica branca e o amito (25 Espécie de lenço branco, usado pelo sacerdote para purificar o cálice, durante a missa) do cálice não eram brancos nem engomados...
Tu foste o Cristo do sacrifício. Aquele Cristo nascido num estábulo com cheiro do esterco dos animais da cocheira e não o Cristo das lantejoulas e das fofocas palacianas dos ébrios de poder.
Recusaste colocar as tiaras da vergonha e tornaste o grito dos desesperados.
Depois trituraste o trigo maduro, contraindo matrimônio com tua amada Fátima Cabrera, da qual nasceu o pão de teus filhos.
Juntamente conosco, foste o reconstrutor da geografia terrorista do mundo perverso, reconhecendo as vítimas. E sem heroísmos nem traições, devolvemos o rosto dos desaparecidos.
Foste a bandeira dos sonhadores da utopia, dos excluídos que ainda têm esperança, dos famintos, dos abandonados das ruas, dos doentes mentais. A todos estendeste a mão fraterna da esperança.
Quanta grandeza na humildade de teus atos, querido irmão Patrício!... A ti dizemos adeus.
Teus companheiros de prisão
Buenos Aires, 11 de julho de 2010
JOÃO CARA, IRMÃO E AMIGO
Teófilo Galvão Filho
A amizade é expressão concreta do seguimento do Amigo e do “gritar o Evangelho com a vida”.
O irmão João Cara caminhou bastante e por diversos lugares ao longo desses seus 92 anos de vida, completados em setembro de 2021. Como sacerdote na sua terra natal, a Itália, foi reitor de seminário. Embora com uma carreira eclesiástica promissora, percebeu que seu coração estava sendo sacudido pelos desafios de uma vida missionária. Assim foi conduzido, em 1965, às longínquas matas da comunidade de Bacuri, no Maranhão, de acesso único e exclusivo por meio de barcos. Terra esquecida pela civilização, onde lhe era demandada a sua atenção não apenas como sacerdote, mas também a sua frequente e emergencial atuação como “enfermeiro”, “médico”, “dentista”, “educador” etc. E, principalmente, o buscavam como amigo, companheiro de jornada e irmão de todos.
E, dessa forma, inicia a imprimir rastros profundos na vida de tanta gente nessas terras brasileiras, nos “filhos” e “irmãos” de coração, nos amigos, muitos deles que tiveram suas vidas transformadas por sua proximidade, solidariedade e convivência.
Foram cerca de oito anos vividos no Maranhão. O caminho da amizade e da convivência próxima com os mais abandonados e fragilizados da sociedade o conduz ao seguimento do Amigo por meio das pegadas deixadas pelo irmão Carlos de Foucauld, na Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho.
Após vivenciar, em diferentes localidades, as etapas iniciais dentro da Fraternidade, e depois de um tempo passado na Argentina, dirige-se, com outro irmão, a Salvador, na Bahia, onde fundam uma Fraternidade em 1975. Iniciam a vida num bairro erguido na “maré”, isto é, no mangue, sobre palafitas, conhecido como “bairro dos Alagados”.
A seguir, mudam para outro bairro, junto às casas de taipa em uma recente “invasão”, ou favela, em Praia Grande, também no litoral suburbano da cidade. Ali o encontrei em 1981, ao iniciar meu tempo de postulantado na Fraternidade, sob sua fraterna orientação. Nessa época, após ter trabalhado um tempo na limpeza pública, como gari, correndo atrás dos caminhões de coleta de lixo pela cidade, João exerceu, em casa, a profissão de sapateiro. Essa atividade lhe permitia a flexibilidade de horários necessária para atender os seus compromissos como responsável regional da Fraternidade para a América Latina, função que exerceu naqueles anos, e que o fez testemunhar de perto os “anos de tempestade” na Argentina.
Excetuando o ano em que passei na Bolívia e os dois anos que vivi no Peru, convivi os demais anos, do total de 12 em que estive na Fraternidade, (31) com João, na mesma fraternidade de Salvador.
Em 1985 João iniciou o trabalho como atendente de enfermagem, em pregando-se nas Obras Sociais da hoje canonizada, Santa Dulce dos Pobres. Irmã Dulce naquela época vivia e era bem atuante. João lá trabalhou até aposentar-se em 1995.
Foi um trabalho entre os últimos dos últimos da sociedade, pois atuava profissionalmente no setor do hospital que recebia e atendia os mais abandonados e carentes, principalmente moradores de rua, que só eram levados ao hospital quando já estavam cobertos de feridas putrefatas, ou moribundos.
Incontáveis e profundas pegadas deixadas por João nesses anos de trabalho no hospital, principalmente por meio da amizade, carinho e atenção com cada um, como o atestava diariamente o paciente/morador Tonho, pessoa adulta com Síndrome de Down, que o seguia sempre, para onde quer que João fosse, durante todo o seu turno de trabalho, permanecendo sempre silenciosamente a seu lado.
Essas profundas pegadas foram também impressas, sempre por meio da amizade e da presença solidária, no bairro onde se encontrava a Fraternidade, a “Invasão de Praia Grande”, como era conhecida esta ocupação, numa encosta de morro, no subúrbio ferroviário de Salvador. Lá, junto com uma pequena comunidade de moradores, fundou uma Associação de Moradores e uma escola comunitária, na busca da construção e da reivindicação de melhores condições de vida e justiça social.
Ao completar 80 anos de idade, já aposentado, João foi convidado a residir na Comunidade da Trindade, um grupo que, a partir da ocupação de uma igreja abandonada, construída no século XVIII, acolhe pessoas em situação de rua, em Salvador. Ali se sentem valorizadas e têm sua dignidade resgatada, passando a residir no local, muitas vezes após longos anos de abandono e violência pelas ruas da cidade.
João reside até hoje com essa comunidade, “atuando” com a sua característica que se destaca ao longo de toda a sua trajetória: a fidelidade no caminho da amizade, da presença silenciosa e solidária.
E é essa fidelidade na amizade que tenho tido o privilégio de vivenciar e testemunhar, há mais de 40 anos, na convivência com esse meu irmão João. Desde nosso primeiro encontro, em 1980, "o Cara" foi deixando profundas pegadas também em minha trajetória e, agora, em minha família. Pegadas de com prometimento fraterno, de amizade e de atencioso cuidado. Até tornar-se o "Tio João" de hoje, para os nossos filhos Tiago e Ana Paula. Ela, sua afilhada de Crisma.
Pegadas que se converteram em indeléveis marcas do Dom de Deus em nossas vidas, e sinais da transparente e terna concretude do "gritar o Evangelho com a vida"!
Feira de Santana, 1º de outubro de 2021
Teófilo Galvão Filho, mais conhecido como Teo, depois de deixar a Fraternidade dos Irmãos do Evangelho, trabalhou por 20 anos nas Obras Sociais Irmã Dulce, em Salvador, no setor das pessoas com deficiência. Isso o fez conviver mais um tempo com João e também o levou a descobrir esse mundo das pessoas com necessidades especiais, área na qual trabalha até hoje.
ACOLHER E SER ACOLHIDO
João Cara, Irmão do Evangelho, Salvador (BA)
Irmão João foi solicitado pelos Irmãos da Comunidade de Taizé, de Alagoinhas (BA), na celebração da festa do Bom Jesus Luminoso, em 8 de agosto deste ano, para falar sobre Charles de Foucauld e sua mensagem. Transcrevemos parte de seu depoimento.
Vivo atualmente na igreja da Comunidade da Trindade, em Salvador, onde fui acolhido. Queria começar esse depoimento, citando o Papa Francisco, que no final da sua encíclica Fratelli Tutti, fala sobre Charles de Foucauld: O seu ideal de uma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo ser humano como irmão e pedia a um amigo: “Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos.” Enfim, queria ser “o irmão universal”. Mas somente se identificando com os últimos é que chegou a ser o irmão de todos. (n. 287)
Assim, temos que abrir nosso coração para acolher o outro. É na nossa vida que aprendemos a nos abrir para o outro.
Nós, seguidores de Charles de Foucauld, seguimos a vida de Jesus de Nazaré. Não fazemos pregação. É vivendo, que procuramos seguir o Evangelho. Jesus viveu do trabalho manual e isso deve ser um modelo de vida.
Quero apresentar uns exemplos de acolhimento, a partir de minha vida. Lembro-me de dois fatos que ocorreram comigo.
Um dia, caminhando em Salvador, vi um antigo paciente do hospital onde eu trabalhava. Trabalhava naquele hospital na enfermagem, mas não era enfermeiro. Vi na calçada, no outro lado da rua, aquela pessoa pedindo esmola. Duas mulheres estavam conversando com ele. Esperei que elas fossem embora e me aproximei dele. Vi que estava com uma faixa na perna, com mancha vermelha. Era mercúrio cromo e não era sangue...
Quando me reconheceu, me disse: João, cala a boca... Estou trabalhando.
Sentei-me e começamos a conversar. Quando quis ir embora, colocou a mão no bolso e me deu cinco reais.
Disse-lhe: rapaz, não necessito. Tenho o dinheiro para o ônibus.
— João, pega esse, porque eu sei que aqui eu ganho mais do que você no hospital.
Naquela hora senti que foi ele quem acolheu o João. Ele entendeu a fraternidade...
Tenho outro exemplo, mas foi de uma não acolhida. Aconteceu quando vivia na Argentina.
Trabalhava num circo e quando voltava para casa, depois do serviço, passei numa igreja para assistir à missa. Chegou na hora da eucaristia, entrei na fila para receber a comunhão. O padre olhou para mim e me perguntou: Você se confessou?
Como queria comungar, respondi que sim...
Depois da missa fui à sacristia e disse ao padre: Sou sacerdote. E lhe disse que a maneira como se dirigiu a mim foi uma falta de acolhida...
Quando decidi morar na Comunidade da Trindade, chegando aqui, vi um cartaz, onde estava escrito: O Evangelho é feito com a vida. O importante não é a pregação, mas “gritar o Evangelho com a vida”.