(Depois do e-mail de D. Edson, veja o texto " A Narrativa da Minha Viagem", do cardeal Martini. Uma preciosidade! )
Estamos tristes e ficamos todos mais pobres com a partida do querido Cardeal Martini.
Quem não leu pelo menos um livro do Cardeal Martini e não se encantou pelo seu amor à palavra de Deus, pela sua lucidez, pela sua criatividade, pela sua coragem, pela sua sinceridade, pela sua abertura ao novo...
Um de seus últimos escritos talvez tenha sido " Il Véscovo" numa preciosa coleção como a nossa "Primeiros Passos", da Editora Brasiliense.
Para um pobre bispo do mato este livrinho é um verdadeiro tesouro, livro de cabeceira.
Abraço fraterno
+ edson damian
---------- Mensagem encaminhada ----------
De: Carlos Roberto Carvalho <quatremains@uol.com.br>
Data: 31 de agosto de 2012 16:29
Assunto: Morre Cardeal Carlo Maria Martini
Para: Aamigos do C R Carvalho <quatremains@uol.com.br>
Morre Cardeal Carlo Maria Martini
CIDADE DO VATICANO, 31 Ago 2012 (AFP) - O cardeal italiano Carlo Maria Martini morreu nesta sexta-feira, em Milão, aos 85 anos, depois de ter encarnado entre os progressistas da Igreja católica a esperança de uma abertura maior ao mundo moderno, embora sempre tenha formulado suas críticas e propostas de forma sutil.
Eminente intelectual, especialista da Bíblia, autor de dezenas de livros e contribuições teológicas diversas, era muito respeitado para além da esfera progressista, tanto por João Paulo II quanto por Bento XVI, dois meses mais velho que ele, que o visitou em junho em Milão.
O cardeal jesuíta sofria há 10 anos com o Mal de Parkinson.
Esta grande figura da Igreja esteve entre os "papabile" durante o conclave de abril de 2005 que elegeu finalmente Joseph Ratzinger.
Mas suas posições a favor de uma instituição eclesiástica mais aberta e em diálogo com o mundo, assim como seu estado de saúde, enfraqueceram suas chances desde o início dos votos.
O cardeal, que nasceu no dia 15 de fevereiro de 1927 em Turim, foi ordenado sacerdote no dia 13 de julho de 1952. Exegeta de formação, foi nomeado pelo papa Paulo VI reitor do Instituto Bíblico, onde permaneceu até 1968, e depois reitor da prestigiada Universidade Pontifícia Gregoriana em Roma.
No fim de 1979, João Paulo II o nomeou arcebispo de Milão, a maior diocese da Europa, que dirigiu por 22 anos.
Entre outras tomadas de posição, criticou duramente em 2008 a encíclica "Humanae Vitae" do papa Paulo VI, que rejeitava a contracepção, considerando que a Igreja se "afastou muito das pessoas".
Sua opinião era muito ouvida dentro da Igreja pela acuidade de suas análises e por seu humanismo, e denunciou "a tentação" de alguns católicos de "se refugiar" em novos movimentos da Igreja, fornecendo a eles um "valor absoluto" e transformando-os em verdadeiras "ideologias".
Também denunciou as "novas pestes" da sociedade, como a droga, e também a corrupção e a solidão.
Considerava que uma "evolução" no âmbito do celibato dos sacerdotes era possível, sem que a Igreja de Roma renunciasse inteiramente ao tema, o que teria "consequências mais negativas que positivas".
Amigo pessoal de João Paulo II, discordou dele em algumas questões, sobretudo morais. Trocou uma carta com o escritor Umberto Eco sobre a fé.
Em 1999 "teve um sonho": convocar um novo Concílio, um Vaticano III, porque achava que o Vaticano II (1962/65) estava, de certa forma, obsoleto.
Em 2007 afirmou que não realizaria a missa em latim, quando ela foi autorizada novamente pela Igreja sob o papado de Bento XVI.
Antes de se aposentar, em julho de 2002, à idade canônica de 75 anos, realizou seu sonho: ir a Jerusalém. Neste ano também anunciou que sofria de Parkinson.
Voltou à Itália em 2008, onde se retirou em uma casa de estudos jesuítas em Gallarate, no noroeste de Milão. (Folha/UOL - 31/08/201214h25)
A NARRATIVA DA MINHA VIAGEM
Carlo Maria Martini
Um caminho de conhecimento
Agradeço, antes de tudo, ao Cardeal Camillo Ruini pelo convite para falar sobre a figura de Jesus. Considero isto como um desafio, como um estímulo para repensar, no limiar dos meus setenta anos, o que foi para mim a figura do Senhor a partir do início, como se desenvolveu a aventura do meu caminho com Jesus Cristo, com quais etapas, com quais obscuridades e com quais luzes.
Considero, de fato, muito difícil falar da figura de Jesus em abstrato, de maneira objetivada. É típico da figura de Jesus envolver qualquer um que se Lhe aproxime. O testemunho de Sérgio Zavoli, que ouvimos há pouco, mostrou que, quando se fala d’Ele, sentimo-nos interpelados na primeira pessoa, somos levados a iniciar um diálogo, a entrar em uma aventura.
Se, na minha intervenção, eu ficasse no plano puramente teórico, eu teria a impressão de dizer aquilo que não sinto e de não exprimir aquilo que sinto. Parece-me mais de acordo com o estilo destes encontros colocar-me no plano pessoal, descrevendo um caminho completo de conhecimento da figura de Jesus, através de algumas etapas e de alguns momentos sucessivos.
As cinco fases de uma aventura
Farei isso narrando uma espécie de autobiografia, quase como quem conta uma viagem, mesclando - mas sem confundi-los - elementos subjetivos e objetivos. Os elementos objetivos são os dados históricos, os fatos concernentes à vida de Jesus; os subjetivos, são os meus caminhos, frequentemente difíceis, mediante os quais vim a conhecer e valorizar estes dados, confrontar-me com eles até chegar a integrá-los na minha inteligência e nas escolhas de vida.
Falo, portanto, em terceira e em primeira pessoa, singular e plural (“eu” e “nós”), exprimo algo de meu que pode ser de cada um, conto com uma aventura que poderia ser emblemática e, espero, possa fazer pensar, ou – como disse no início o Cardeal Ruini – “ajudar a responder”.
É uma aventura que se pode ritmar segundo os tempos. Parafraseando um romance editado recentemente e já muito discutido – Anima Mundi, de Susanna Tamaro – que fala de três fases da vida humana: fogo, terra, vento (o tempo do crescimento, o tempo do discernir e o tempo do retornar a si mesmo), e recordando livremente também a teofania junto ao Monte Horeb vivida pelo Profeta Elias (cfr. 1 Rs 19,11-13), a quem a presença de Deus se manifesta misteriosamente no fogo, no terremoto e depois no murmúrio de uma brisa leve, distinguirei a minha narrativa em cinco fases. Servir-me-ei de cinco símbolos: o fogo, a terra, o vento, o terremoto e o leve sussurro de um silêncio.
O tempo da fascinação ou do fogo
A viagem teve início para mim muito cedo, na primeira adolescência. É a história de um rapaz que conheceu Jesus na educação familiar, escolar, nos ambientes de vida, e ficou altamente fascinado, apaixonou-se. Logo deu-se conta que, com uma figura assim, não é possível brincar: ou se pega tudo ou se rejeita tudo.
É um tempo de conhecimento crescente e entusiasta. Aprende-se a tomar nas mãos o Evangelho, assombrar-se com a incisividade das palavras, com a coerência do testemunho de Jesus. Tudo parece original, nascente, novo, imprevisto, lúcido, exigente, simples, à mão e, ao mesmo tempo, rico de promessas posteriores.
Experimenta-se aquela palavra de André Gide, citada por Zavoli: “Escuto a tua palavra porque é bela, muito além de toda palavra humana”.
O tempo das perguntas ou das dúvidas ou da terra
Este primeiro tempo feliz não dura muito, porém. Segue-se um segundo momento, que poderíamos chamar a etapa das perguntas ou das dúvidas. A etapa da terra.
Começam os questionamentos, antes levemente acenados, depois, mais insistentes: mas será mesmo assim? Como fazemos para saber se os Evangelhos nos dizem a verdade? Que as coisas se passaram deste modo? Qual o fundamento histórico disto que os livros narram de Jesus? Por que estas páginas merecem crédito? Não corremos o risco de construir talvez uma figura a partir de uma fantasia de algum fanático do passado? Tudo aquilo que se diz de Jesus é muito bonito, mas terá um fundamento?
O rapaz decide então ler tudo o que encontra sobre os fundamentos históricos da figura de Jesus. Procura nas bibliotecas, escuta a quem parece saber mais sobre o assunto. Todavia, existe sempre uma certa insatisfação, uma certa desilusão. Das respostas nascem novos questionamentos. Tem-se a impressão que aqueles que respondem às perguntas sobre o fundamento histórico da figura de Jesus o fazem com uma certa superficialidade, um certo grau de suposição, como para esquivar-se das perguntas importunas de um rapazinho, ou querem defender uma causa já decidida de antemão. E as soluções; um pouco previsíveis, não satisfazem totalmente.
Pode-se, portanto, qualificar a segunda etapa das perguntas e das dúvidas também como o tempo das respostas fáceis demais, superficiais, evasivas, ao passo que o mistério da figura de Jesus se faz mais denso com o multiplicar-se dos questionamentos.
5. O tempo da obstinação e do vento intenso
Chega, então – e foi o golpe de sorte da minha vida, por volta dos 25 anos – o tempo da obstinação, o tempo do vento intenso, do qual fala o primeiro livro dos Reis: “Um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos” (1 Rs 19,2).
A vontade de descobrir até o fundo a verdade sobre Jesus encontra-se, por circunstâncias providenciais de tempo e lugar, com a possibilidade de dedicar-se por inteiro ao estudo científico das origens cristãs: o estudo das línguas nas quais foram escritos os livros da Bíblia (hebraico, aramaico e grego), a freqüentação dos papiros e dos códigos antigos, o conhecimento de arqueologia e das culturas onde estão inseridos os fatos narrados pelos Evangelhos, etc.
É um trabalho sem trégua, uma exploração que parece não acabar nunca. É preciso uma vontade forte, exatamente aquela de um vento intenso, para não render-se frente à imensidão de dados. Mas o trabalho compensa. Porque do tempo que chamamos de obstinação, do vento insistente, extraem-se muitas noções, extrai-se a capacidade de orientar-se sobre tantas coisas, de dar-se numerosas respostas. Todavia, a aventura não acaba aqui.
O tempo da prova ou do terremoto
O terceiro tempo tinha me colocado em contato com uma vastidão de textos, memórias antigas que permitem fundamentar mais atentamente e cientificamente tudo o que se pode dizer de Jesus. E tais pesquisas continuam, ainda que eu não disponha mais de tempo para acompanhá-las de perto. Sergio Zavoli evocou as recentíssimas discussões sobre a retrodatação de alguns papiros, mas estes mostram, em todo o caso, que hoje é possível orientar-se melhor do que no passado na questão do reconhecimento da grande autenticidade dos Evangelhos.
O dado mais importante: e aqui me afasto um pouco do que disse Zavoli, isto é, que hoje se procura não tanto a autenticação da história, o documento, quanto a profecia. É necessária a profecia. Pobres de nós,porém, se faltasse a história, se o documento não nos permitisse chegar à solidez dos fatos. Naturalmente o documento sozinho não basta.
Tudo deve passar por um crivo ainda mais severo. O tempo da obstinação deveria ser acompanhado por aquele da prova, do questionamento. Vem à mente a palavra de Jesus a Pedro: “Simão, eis que Satanás te procurou para peneirar como o trigo” (Lc 22,31). A peneira não é um acidente de percurso, é um momento providencial, o momento do terremoto, segundo a evocação do primeiro livro dos Reis, sempre a propósito de Elias (1 Rs 19,2), é o tempo no qual a fé é sacudida e posta à prova.
7. As objeções sobre Jesus
Tal crivo veio para mim do seguinte modo: O estudo das fontes e dos testemunhos antigos sobre Jesus comportava também o estudo das interpretações antigas e modernas sobre Ele, sobretudo de 1700 até hoje, do surgir da crítica histórica, do Iluminismo e do positivismo histórico, até nossos dias. Pus-me a ler todos os livros e interpretações, devorava-as, escrutava-as, pesava-as. Queria descobrir quem tinha razão.
Muitas vezes, neste esforço, entra-se na noite do espírito, também na ansiedade, passam-se dias, semanas e meses em forte tensão interior, e surge a suspeita: haverá uma saída no túnel da dúvida crítica, do questionamento sistemático de todos os dados?
Desejo, todavia, exprimir um “obrigado”, exprimir o meu reconhecimento a todos os mais ilustres e exigentes autores do racionalismo crítico, a todos os “mestres da suspeita” dos séculos passados e deste século, por me haverem colocado diretamente em contato com todas as possíveis objeções à figura de Jesus, até as mais extremas: a hipótese sobre a não existência histórica de Jesus, as negações concernentes aos diversos pontos da narração dos evangelistas, a proclamação da impossibilidade de escrever, hoje, uma vida de Jesus, a crítica às pretensas reconstruções das suas palavras e das suas ações, as dúvidas sobre pontos fundamentais da sua vida, etc.
Foi para mim o exercício mais frutuoso e mais estimulante: o de não fugir a nenhuma contestação crítica e de deixar-me interrogar e questionar sobre todas as tentativas de reduzir à evanescência ou à criação mítica ou fantástica a figura de Jesus, ou mesmo de reduzi-la a evocações posterioress e tardias.
8. Cada pesquisa interroga a vida
Sergio Zavoli dizia que a fé de um cristão do século XX deveria poder submeter sem temor as próprias perguntas ao fogo da crítica, para constatar se resistem a elas. Estou plenamente de acordo.
A minha exposição à dúvida foi sistemática, crucificante e ao mesmo tempo salutar, na condição inerme de uma consciência à procura da verdade. Era como procurar continuamente o equilíbrio sobre uma superfície exposta ao terremoto.
Sem metáfora, a pergunta fundamental a ser respondida era: esta palavra, este fato da vida de Jesus, estes comportamentos, são originários seus, ou são fruto de uma elaboração posterior, do entusiasmo ou do fanatismo de admiradores, de seguidores, ou da força criativa das primeiras comunidades? Se devemos admitir - e não é possível não admitir - uma atividade primeiramente oral e depois escrita das comunidades primitivas ao nos transmitir ditos e fatos de Jesus, até que ponto é ainda possível saber aquilo que Jesus verdadeiramente desejou, disse e fez?
Passei diversos anos nesse trabalho de leitura, de confronto, de interpretações, com fadiga e laceração, porque eu era colocado frente a questionamentos radicais para a minha vida. Andava à procura das objeções mais agudas e fundamentadas, das contestações mais pertinazes, para não poupar-me de nenhuma dificuldade séria, e estar seguro de não ter negligenciado nenhum argumento contrário. Tinha entrado, no fim das contas, naquilo que Paul Ricoeur chama de “conflito das interpretações”.
Pouco a pouco, eu fazia uma surpreendente experiência: o senso de incerteza, de perplexidade e de mal-estar que me davam as defesas de ofício sobre a historicidade de Jesus e as respostas fáceis de tantos apologetas, desaparecia frente à clareza que ao longo do caminho emergia em mim diante das argumentações cerradas da crítica.
9. Testemunho de um evento real
Procurando valorizar um por um os argumentos contrários, e confrontando-os com os textos e resíduos antigos, reforçava-se em mim, de maneira sempre mais clara, a consciência de que não se pode eludir a fundamentação substancial de tudo o que podemos saber de Jesus, que não se pode reduzir-lhe a figura a contornos evanescentes ou inatingíveis, sem desmentir-se, sem entrar em uma certa contradição com os pressupostos de uma pesquisa séria.
O primeiro pressuposto é que se deve procurar a razão suficiente para o surgir de um testemunho, sobretudo se próxima aos fatos. E se tal razão não é dada de modo suficiente, nem pela hipótese de criatividade posterior, nem aquela do fanatismo, nem a do engano, mas pelo contrário, o testemunho se adapta ao seu ambiente originário, apresenta características de descontinuidade com esse, de forma a mostrar-se inédita e nascente, então a hipótese séria que permanece é que este testemunho deveria ser um fato real, e corresponde a ele. E se isto acontece não uma, mas dez, cem vezes, de maneira independente, a hipótese torna-se séria base científica de trabalho.
Eu vinha experimentando, em outras palavras, como uma aproximação exaustiva das fontes antigas sobre Jesus não possa – sem contradizer-se nas suas premissas científicas – não reconhecer que existem ditos e eventos significativos e decisivos da sua vida, não elimináveis por qualquer que seja a crítica, ainda que, corrosiva, inexplicáveis pela criatividade das comunidades sucessivas. Ou renunciar a explicar os dados assim como são e encerrar a pesquisa, ou admitir que destes emerge a fundamentação de um número relevante de fatos, palavras e gestos de Jesus que são mais do que suficientes para fazer d’Ele uma figura que nos interpela no fundo da consciência.
10. Uma única explicação razoável
Para mim, ter descoberto tudo isto na fadiga cotidiana, no esforço de levar a sério toda possível objeção, foi de grandíssima ajuda. Certamente devemos admitir que as palavras e os gestos de Jesus passaram através de um processo de tradição oral, foram ordenados e interpretados pelos seus, que não foi escrita a respeito d’Ele uma biografia de fato, e os Evangelhos são relidos com o auxílio da crítica histórica e literária. Mas, no fim de todo este crivo, deste terremoto da crítica, tantas e tantas palavras e gestos significativos de Jesus estão lá, diante de nós, e nos interpelam com perguntas envolventes.
Assim se descobre, por exemplo, a força rompente das suas parábolas, enigmáticas e incisivas ao mesmo tempo; a inquietude suscitada pelo paradoxal das Bem-aventuranças; a sua proclamação do perdão sem limites, chocando-se contra opiniões correntes do tipo justicialista; a sua atenção aos últimos e aos excluídos da sociedade, a sua atenção aos pecadores, ao ponto de criar escândalo; a sua predileção pelos doentes e os seus gestos de cura, que suscitam entusiasmo e inveja em torno d´Ele; a sua coragem e ao mesmo tempo, o seu medo frente à perspectiva da morte; a certeza indomável dos seus de tê-lo encontrado vivo depois da deposição no sepulcro.
São fatos e palavras que qualquer crítica – corrosiva e radical que seja – não somente não consegue arranhar, mas ao contrário (e era a minha experiência) contribui para esclarecer como única explicação razoável daquilo que aconteceu e de como os documentos sobre Ele tenham se originado.
11. O aparente fracasso humano
Nós nos encontramos frente a uma figura de Jesus que é historicamente singular e inédita, que resiste a toda tentativa simplista de homologação por tipologias pré-constituídas. É uma personalidade forte e inerme, acessível e aguda, modesta e com pretensões jamais ouvidas, insignificante no sentido das medidas humanas de grandeza histórica e política, e ao mesmo tempo, capaz de fazer tremer os poderosos.
É a figura de alguém que passou como um meteoro (no máximo dois ou três anos de atividade pública, apenas o tempo de dar-se a conhecer), que concluiu a sua obra de maneira fracassada, posto de lado e abandonado por todos aqueles que tinham o poder, marginalizado e eliminado como um ser nocivo para a convivência humana.
Não obstante, é uma figura não eliminável e presente na história do seu tempo, que sabe suscitar entusiasmo e medo, reconhecida em seguida por alguns como profética, santa, sábia, de reformador, e por outros como figura de um perigoso subversivo.
Jesus mostra-se capaz de dar sentido e resgate às humilhações de seu povo, capaz de abrir horizontes religiosos imprevistos, e ao mesmo tempo capaz de chocar-se, de romper com as idéias recebidas, de suscitar divisões. Parece dizer coisas novas e perturbadoras, e, porém coloca-se no quadro das tradições de seu povo, em continuidade com a linguagem da sua gente. É toda esta série de dados, e outros similares presentes nos Evangelhos, que permanecem após cada tentativa de redução crítica, após o exercício de cada sistemático reducionismo.
É, portanto, o tempo do crivo, da prova, do terremoto, da passagem através do arame farpado das exigências críticas. Isto satisfaz a muitas perguntas, nos deixa à vontade para considerar a figura de Jesus. Todavia, coloca-nos frente a perguntas ainda mais árduas e difíceis, a uma quinta etapa.
12. Um mergulho nas origens cristãs
Antes de falar da quinta, isto é, da etapa da luta ou das perguntas pelo sentido, ou do “sussurro de uma brisa leve”, gostaria de recordar uma outra experiência do tempo do crivo, da peneira, porque me foi de grande ajuda no conhecimento histórico de Jesus e me serviu como confirmação posterior do processo crítico ao qual acenei acima.
Por muitos anos (desde 1965 até hoje ainda, em certo modo), tive a possibilidade e a sorte de fazer parte de um pequeno grupo internacional e interconfessional de estudiosos do texto grego do Novo Testamento, que trabalhavam juntos para a reconstrução do texto crítico, ou seja, do texto original mais antigo e confiável dos Evangelhos. Reuníamo-nos todos os anos por duas semanas, em algum lugar afastado, e lá submetíamos a exame por oito horas ao dia, palavra por palavra, frase por frase, todo o Novo Testamento, para confrontá-lo com os textos dos papiros mais antigos, dos códigos manuscritos e com as diversas interpretações modernas.
Era um trabalho no qual, partindo de culturas e de mentalidades diversas cinco pessoas (um alemão, um inglês, dois americanos, mais o subscrito), colocavam em comum os conhecimentos filológicos, históricos, paleográficos, exegéticos, que pudessem servir para determinar a autenticidade de uma palavra, de um texto. Trabalho fascinante, que obrigava a mergulhar a cada dia nos tempos das origens cristãs, e fazia também sobressair a fundamentação da tradição evangélica manuscrita, mais sólida do que qualquer outra obra literária da Antiguidade. Para mim era uma confirmação a mais, diante das ansiosas perguntas da adolescência e da juventude.
13. O tempo da luta ou do sussurro de uma brisa leve
As quatro etapas do conhecimento histórico da figura de Jesus (do fascínio/fogo, das perguntas/terra, da obstinação/vento, do crivo ou do conflito das interpretações/terremoto), referidas por mim em forma biográfica, e que são, em seguida, as etapas de todo o caminho sério de pesquisa, constituem somente o prelúdio daquele conhecimento mais profundo no qual se aplaca, de certo modo, uma ânsia incessante da mente e do coração.
Ao tempo do apaixonar-se, ao tempo das dúvidas e das perguntas, ao tempo da obstinação e ao tempo da prova segue-se o tempo da luta nunca concluída com o personagem Jesus. É um pouco semelhante à luta de Jacó na noite, junto à torrente de Jacó, quando “um homem lutou com ele até o despontar da aurora” (Gn 32,25). Luta-se contra alguém que é mais forte, que não abandona a presa, e a aurora da consciência plena e desvelada ainda não chega. Não obstante a certeza de estreitar uma realidade sólida – porque se é agarrado e se agarra - permanece-se na noite.
É um pouco como a última experiência de Elias que, depois do vento, do terremoto e do fogo, ouve como um leve sussurro, um murmúrio imperceptível, e cobre o rosto com um manto porque compreende que está acontecendo aquilo que ele esperava (1 Rs 19,13). Sai então da gruta e ouve a voz do Senhor.
Fora de metáfora, quero dizer que o conhecimento histórico de Jesus não se encerra em si mesmo, mas termina com uma pergunta: estás disposto a dar crédito às minhas palavras como palavras provenientes de Deus? Estás disposto a reconhecer a minha missão como missão do Pai que está nos céus? Estás disposto a confiar em mim até o fim, como Pedro que diz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16)?
14. Face ao mistério de Jesus
É a quinta etapa, a etapa do conhecimento da fé, do murmúrio de uma brisa leve que mal se percebe. Existe aqui um salto que nenhuma indagação histórica pode fazer, um passo que cada um dá respondendo dentro de si e frente à própria consciëncia. Um passo que nos leva frente não à figura mas ao mistério de Jesus, ao seu relacionamento íntimo com o Pai, à sua transcendência, ao seu significado para a história da cada homem e da humanidade inteira, à sua capacidade de revelar o rosto de Deus.
Começam agora a surgir muitas perguntas novas e ainda mais árduas: por que aquele que se considera tão próximo de Deus e por Ele amado submete-se na vida a uma sorte assim tão cruel? Por que mostra-se humanamente derrotado? Por que mostra-se débil e sem defesa?
A luta na noite, como aquela de Jacó junto à torrente de Jaboc, é para alcançar o conhecimento do Nome que está acima de todo o nome (Fl 2,9). Tal luta se joga na pergunta de Jacó dirigida ao personagem misterioso: “Diz-me o teu nome” (Gn 32,30). É a pergunta que escutamos também no Evangelho segundo Mateus (Mt 16, 13-14). Joga-se na escuta da palavra que é dita fora da gruta: “O que fazes aqui, Elias?” (1Rs 19, 13).
Existe, portanto, um último degrau no conhecimento de Jesus para o qual só o nome de Jesus não basta, e é o tempo do conhecimento da fé, também essa fonte de perguntas e de pesquisas na tentativa, sempre por recomeçar, de ligar a derrota humana de Jesus de Nazaré com a sua intimidade com Deus, a cruz e a morte, com a divindade. Compreende-se como o raio das perguntas alarga-se a toda a experiência humana da dor e da morte, ao sentido daquilo que parece não ter sentido, ao porquê Deus se tenha revelado não na potência e na glória, mas - como se exprimia incisivamente Lutero – “sub contraria specie”, exatamente ao contrário do que se pudesse pensar de Deus.
15. A esperança que não engana
E acontece ainda um fato novo, uma outra surpresa: quando nos colocamos face a face com o mistério de Deus crucificado, da fraqueza de Deus, lendo-o em Jesus crucificado e ressuscitado, então as palavras e os gestos de Jesus, as parábolas, as Bem-aventuranças, os milagres de cura, os ensinamentos de perdão, a sua tortura até a morte assumem uma evidência nova. Relêem-se os Evangelhos colhendo nesses (e entre esses o resto da Escritura) uma coerência profunda, uma riqueza inédita de sentido. Tudo se reconecta em um conhecimento novo de Jesus, que o faz entrar vivo na nossa experiência de homens frágeis à procura de uma esperança que não engana.
Só então Jacó se acalma depois da luta na noite, junto à torrente, porque foi abençoado; só então Elias, junto à gruta no deserto, retoma a coragem para novos caminhos.
É toda esta série de perguntas e de respostas sucessivas que faz da experiência de fé, da experiência cristã, uma contínua penetração da figura de Jesus, com um alargar-se de horizontes que não terá fim como para Jacó, senão ao fim da noite, ao surgir da aurora do conhecimento pleno. É uma aventura sempre nova, é uma vivência que não deixa nunca em paz, é uma viagem na qual a meta vislumbrada dá, ao mesmo tempo, alegria e ansiedade; alegria porque é vislumbrada, ansiedade, porque está ainda distante.
Mas isto que já agora é dado a conhecer do homem misterioso com o qual estamos lutando na noite, é um abraço que sustenta, uma luta que, mesmo no esforço, mantém de pé, não permite a queda, o abandonar-se à frustração e à solidão. É uma luta, numa viagem como esta, em etapas que incluem questionamentos, que o homem e a mulher tornam-se pessoas autênticas, à imagem da figura de homem autêntico que os atraiu atrás de si, isto é, de Jesus Cristo.
É esta viagem, misteriosa e fascinante, que gostaríamos de desejar a cada homem e mulher da terra.
Cardeal Carlo Maria Martini, Depoimento pronunciado na Basílica de S. João de Latrão, na noite de 05 de janeiro de 1997, no primeiro ano da Grande Missão de Roma em preparação ao Grande Jubileu.
Extraído do livro Dialoghi in Cattredale,
Grande Missione per La città di Roma.
Edizioni San Paolo, Milano, 1997, p. 75-87.