Notícias » Quarta, 07 de maio de 2014
D. Tomás Balduíno, foi um dos idealizadores das Romarias da Terra, como lembra Antonio Cechin, irmão marista e militante dos movimentos sociais e ambientais, em artigo que publicamos a seguir. Irmão Cechin lamenta: "Agora que o grande bispo D. Tomás acaba de realizar a sua Páscoa da Ressurreição, é de lastimar que as Romarias da Terra tenham perdido o costume de, com base nos povos indígenas, historicamente os mais sofridos da nação, e que continuam na maior miserabilidade ao longo das estradas do Rio Grande e do Brasil, não se tenha continuado a cultivar a espiritualidade Indígena Missioneira tal como foi assinalada e sugerida pelo saudoso Pastor e Profeta D. Tomás Balduíno". Eis o artigo.
As Comunidades Eclesiais de Base do RS foram criadoras, no Brasil, da Romaria da Terra. No ano de 1976 lançou-se, por aqui, um folheto intitulado “São Sepé Tiaraju, Rogai por nós!” A dobradinha de bispos profetas Tomás Balduíno e Pedro Casaldáliga, acabavam de criar o CIMI (Centro Indigenista Missionário) e a CPT (Comissão Pastoral da Terra. Não sabemos através de que caminhos, o folheto chegou até o CIMI. Recebemos imediatamente uma carta da direção do CIMI, a cuja frente estava Dom Tomás Balduíno, com a proposta de celebrarmos, aqui no Estado, com possibilidades de estender para todo o Brasil, o ano de 1978 como o Ano comemorativo dos Mártires Indígenas de todo o continente latino-americano, em preparação do Encontro Episcopal de Puebla que, no ano seguinte de 1979, reuniria todo o episcopado do continente.
Diziam os bispos Tomás e Casaldáliga: os documentos de 1968, produzidos pela Assembleia de Medellin, praticamente não haviam tratado do problema indígena da América Latina. Com um ano de preparação, Puebla poderia muito bem sanar a lacuna.
A direção do CIMI, programou por inteiro, o ano de 1978, com todo tipo de celebrações, jornadas de estudos sobre a história indígena e a triste situação em que se encontram hoje. Deveria ser lançado – como de fato aconteceu - o ano dos Mártires Indígenas, no dia da realização da primeira Romaria da Terra, ou seja em dois de fevereiro, dia do martírio de São Sepé.
Assim como a luva se ajusta à mão, a Romaria da Terra se nos apresentava como a ferramenta ideal para o início das solenidades em favor do mártires “que nós cristãos fizemos aos outros, porque só consideramos até hoje como nossos mártires, aqueles que os outros nos fizeram” nas palavras textuais de Pedro Casaldáliga. A Romaria da Terra poderia reunir ao mesmo tempo, as sofridas Comunidades Indígenas e as Comunidades Eclesiais de Base tanto do campo como das cidades. Os três conjuntos de marginalizados tinham como seu maior sofrimento a carência de terra para plantar, os do interior; terra para morar, os que abandonavam os campos para poderem sobreviver e que entulhavam as periferias dos meios ubanos.
Hoje as Romarias da Terra já ultrapassaram as três dezenas, realizadas que foram todas sem exceção, sempre na terça feira de carnaval que, como festa popular, obedece ao calendário lunar e por isso é festa móvel. Cada ano, na véspera da quarta feira de cinzas, sempre em fevereiro, mas também sempre próximo ao dia do Martírio dos 1500 guaranis que lutavam pelas próprias terras que os dois maiores impérios do mundo de então, lhes acabaram roubando.
Demo-nos a pena de gravar toda a primeira Romaria da Terra e primeira Via Sacra Missioneira, a fim de servir de modelo de todas as posteriores Romarias da Terra. Damos em seguida a explicação introdutória nas palavras textuais do próprio Bispo Dom Tomás Balduíno.
VIA-SACRA MISSIONEIRA
EM MEMÓRIA DE SÃO SEPÉ TIARAJU E OS SEUS MILHARES DE COMPANHEIROS ÍNDIOS MARTIRIZADOS
N.B. - Esta Via Sacra foi elaborada por Dom Tomás Balduíno, presidente do CIMI, para a ROMARIA DA TERRA do “Ano dos Mártires Indígenas da América Latina (1978)”. Essa foi a primeira Romaria da Terra do Brasil que, depois, se espalhou por todo o território nacional. Aconteceu na cidade de São Gabriel, nos próprios lugares em que tombaram São Sepé Tiaraju (Sanga da Bica, Batovi) e seus 1500 companheiros guaranis (Caiboaté), mártires da luta pela Terra.
Introdução Explicativa da Via Sacra Missioneira
Trata-se de celebrar em 1978, a abertura do Ano dos Mártires em Caiboaté, no local mesmo em que se deu o martírio do índio Sepé Tiaraju e seus 1.500 companheiros, às mãos ferozes dos invasores brancos.
Quem será o grande público desta celebração? Peões de estância, trabalhadores rurais e operários, além de algum índio remanescente da chacina secular. É o nosso bom povo cristão. São os oprimidos de ontem e de hoje.
Ao longo dos séculos, esse nosso povo sofredor sempre andou muito ligado à paixão e morte de Cristo, cognominado carinhosamente de Senhor Morto ou Senhor do Bom Fim. É que, na verdade, os oprimidos são aqueles que no dia-a-dia “completam na própria carne o que falta à Paixão e Morte do Senhor Jesus,” na feliz expressão de São Paulo.
A pastoral popular, criação do povo para o povo, teceu ao longo dos séculos a Via-Sacra, capitulada pela Igreja oficial entre os “Pia exercitia” (exercícios de devoção), por não ser considerada litúrgica em seu sentido estrito. Negativo? Bem pelo contrário. Com isso liberta das malhas do canonismo e dá margem a grande criatividade.
A Via-Sacra pois, como aliás outras devoções populares, presta-se admiravelmente para preparar ou complementar liturgias. Não raro, aquelas são mais evangelizadoras que estas. E foi o que se pensou para Caiboaté: uma Via-Sacra Missioneira como rito introdutório à missa, em memória de São Sepé e dos índios mártires dos Sete Povos das Missões.
Quais são os ingredientes da Via-Sacra Missioneira?
A MATRACA E O CARRILHÃO: Necessita-se de um instrumento para dar o toque de reunir, dar o sinal de partida e de parada, no trajeto de uma Estação a outra. Para isso, a matraca, instrumento de protesto pela morte de Cristo e de protesto pela morte dos índios cristãos. Com a matraca dar-se-á pois, um tom quaresmal à procissão, que se realizará na véspera da quarta-feira de cinzas.
Nas duas últimas estações, em que fazemos memória da Ressurreição e Pentecostes de Cristo e dos índios, aposentada a matraca, os sinais serão dados pelo carrilhão, instrumento pascal e de alegria.
AS LEITURAS PARA MEDITAÇÃO
Mártir cristão é aquele que imitou mais à risca o Cristo, dando a maior prova de amor: a vida em favor dos irmãos. Na Via-Sacra popular, temos sempre o sofrimento e morte dos cristãos de hoje, cotejados com sofrimentos e morte de Cristo ontem.
No Caiboaté, presentes os índios de hoje (na procissão os pobres índios carregarão a cruz processional) escutaremos sempre duas leituras:
• uma referente à morte de Sepé e de seus companheiros
• uma referente à Paixão e morte de Jesus Cristo (passagem análoga).
SETE ESTAÇÕES: Foram sete os povos guaranis chacinados no Rio Grande do Sul. Daí a Via-Sacra em sete estações, em memória de cada um dos Sete Povos: São Nicolau, São Luís, São Lourenço, São João, São Borja, Santo Ângelo e São Miguel.
AS LADAINHAS E OS CANTOS: Nas devoções populares, nunca faltam cantos e ladainhas. As cartas ânuas e o diário demarcatório dos exércitos invasores falam que aí, em Caiboaté, os índios haviam marchado para a frente de batalha, carregando consigo as estátuas dos santos protetores, pois acreditavam mais na força dos intercessores, que no poder de suas armas. Não raro, à noite, soldados portugueses e espanhóis escalavam árvores, para escutar ao longe, os índios cantando seus cânticos sacros e rezando suas ladainhas.
Três são as ladainhas de nossa Via-Sacra: a de Nossa Senhora Libertadora, a dos Santos Padroeiros dos índios e a ladainha Penitencial.
Na caminhada de uma estação a outra, alternaremos um canto com uma ladainha.
ROTEIRO
Fala inicial de Dom Tomás Balduíno:
Nós não vamos realizar aqui, uma operação de demagogia, nem de pura promoção de alguém que nós colocaríamos no altar por nossa conta.
Realmente estamos celebrando alguém que está com Deus e o celebramos na condição de mártir.
Meus irmãos, esta cerimônia aqui, vai se assemelhar àquela dos primeiros cristãos, quando celebravam seus mártires. Como filhos de Deus, como membros da Igreja, nós consideramos São Sepé ao lado dos Santos que estão com Deus. É por isso que o celebramos aqui nessa Caminhada. Ele é para nós alguém que, como diz o Cristo, se sentará com Ele, junto com Abraão, Isaac e Jacó, para julgar os vivos e os mortos. É alguém que se associou na sua vida a Deus, a Cristo, aos seus irmãos, pelo batismo. E a sua morte significa o dom completo de sua vida a Deus e aos irmãos. Esta celebração terá um caráter penitencial e pascal. Nós vamos fazer uma Via-Sacra que vai conhecer as diversas Estações (paradas), como a Via-Sacra de Cristo, de julgamento e condenação, de morte, mas que termina na Ressurreição. Vamos ter os cantos que celebram a Cruz, e os cantos que celebram Aleluia. E vamos fazer isso, irmãos, iniciando agora, em nome da Igreja Missionária, o Ano dos Mártires, de Sepé e seus companheiros. E vamos fazer todos, o Sinal da Cruz, esse sinal que foi o sinal do nosso irmão, que deu a vida pelos seus irmãos. Vamos todos juntos fazer este Sinal da Cruz, como marco inicial dessas Celebrações que vão continuar pelo ano todo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Observação final:
Agora que o grande bispo D. Tomás acaba de realizar a sua Páscoa da Ressurreição, é de lastimar que as Romarias da Terra tenham perdido o costume de, com base nos povos indígenas, historicamente os mais sofridos da nação, e que continuam na maior miserabilidade ao longo das estradas do Rio Grande e do Brasil, não se tenha continuado a cultivar a espiritualidade Indígena Missioneira tal como foi assinalada e sugerida pelo saudoso Pastor e Profeta D. Tomás Balduíno.
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Quarta, 07 de maio de 2014
O adeus a Dom Tomás Balduino
O adeus a Dom Tomás Balduino, bispo emérito da cidade de Goiás (GO) e fundador da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Durante três dias milhares de pessoas se despediram de Dom Tomás e assumiram continuar as causas que ele defendia e as lutas que ele apoiava.
A reportagem é publicada pela CPT, 06-05-2014.
“Não nos deixem sozinhos!” clamou uma indígena Krahô durante celebração no velório de Dom Tomás Balduino, falecido na última sexta-feira, 02 de maio. O pedido dirigido sobretudo à Igreja, estende-se também aos amigos, amigas, militantes, admiradores e admiradoras de Dom Tomás.
Foi uma fala que reafirmou e reforçou a fala dos demais indígenas durante as últimas homenagens ao bispo fundador da CPT e do CIMI, “a luta dele continuará através de todos nós!”. Não foram poucas as homenagens e mensagens vindas das mais diversas partes desse nosso país e do mundo. Também não foram poucas as celebrações que relembraram e reafirmaram o compromisso de dar continuidade às lutas encampadas e defendidas por Dom Tomás.
Bispo da reforma agrária, dos indígenas, dos povos do campo e das florestas, dos pobres do Brasil e de toda a América Latina. Assim era conhecido e reconhecido. Para os amigos era, simplesmente, Tomás. De sorriso largo, cheio de simplicidade, Dom Tomás será sempre lembrado por sua proximidade com os povos que o admiravam. As Igrejas, os povos indígenas e os camponeses fizeram cada qual a seu jeito sua despedida. A família, os amigos, a família dominicana da mesma forma o fizeram. Como foi sua vida e caminhada, não poderia deixar de ser a sua despedida, plural e diversa, ecumênica e profética, forte e revolucionária.
Plantado na Catedral da Cidade de Goiás está seu corpo, pelo mundo continuará ressoando sua voz pela libertação do povo da terra, por justiça social e por uma sociedade mais justa e igualitária.
“Direitos humanos não se pede de joelhos, exige-se de pé!”
Assim proclamou Dom Tomás. Batizado Paulo, escolheu por nome Tomás quando tornou-se religioso dominicano. Desde a década de 1950 atuava próximo aos povos indígenas e aos camponeses, quando foi nomeado superior da missão dos dominicanos na Prelazia de Conceição do Araguaia, no Pará. Sempre ávido por mais informações e conhecimento, decidiu estudar linguística indígena, em um curso na Universidade Nacional de Brasília (UNB), onde aprendeu a língua dos índios Xicrin, dos grupos Bacajá e Kayapó. Também diante da necessidade e das dificuldades em percorrer grandes extensões territoriais entre os estados do Pará, Mato Grosso e Goiás, fez curso de piloto de avião, e amigos italianos o presentearam com um teco-teco vermelho. Avião esse que poderia contar inúmeras histórias sobre a seriedade e os cuidados de Dom Tomás ao pilotar, sobre as visitas às aldeias indígenas da Amazônia, algumas vezes levando médicos para cuidar da saúde dos índios, e sobre aqueles e aquelas cujas vidas Dom Tomás salvou ao tirá-los do alvo das ameaças da ditadura militar.
Apesar do delicado estado de sua saúde, a notícia de sua morte pegou a todos de surpresa. Pois até o fim manteve uma lucidez impressionante, pedindo inclusive aos que o cercavam apoio para redigir algumas contribuições que ele queria enviar para serem incorporadas ao documento da terra em debate na 52ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, que ainda acontece em Aparecida (SP) da qual sonhava participar. Continuava a se preocupar com o povo pobre, dizendo que precisávamos, também, ajudar os andarilhos e moradores de rua desse país. Povo muito sofrido, conforme suas palavras. Deixava claro que ainda queria lutar, e que tinha muito a fazer e contribuir na busca por um mundo mais justo.
A tristeza de sua partida, que tomou conta de todos e todas que o conheceram, não foi maior que a certeza de que Dom Tomás viveu em plenitude e deixou muitos frutos.
As milhares de pessoas que passaram pelo velório e celebrações, na cidade de Goiânia, na Igreja São Judas Tadeu, ao encargo da família dominicana, entre os dias 3 e 4 de maio, e na cidade de Goiás, na tarde do dia 4 e manhã do dia 5 de maio, são provas disso. Dom Tomás foi recebido na cidade de Goiás por cerca de 40 indígenas das etnias Apinajé, Krahô, Krahô-Kanela, Xerente, Tapuia e Karajá, vindos dos estados do Tocantins e de Goiás. O corpo entrou na catedral de Nossa Senhora de Santana pelas mãos dos indígenas, que realizaram os rituais conforme seus costumes. O rosto de Dom Tomás recebeu a pintura de urucum e um grande cocar foi colocado no caixão, acima de sua cabeça.
Dom Tomás foi sepultado na catedral de Goiás, levando junto bandeiras dos movimentos sociais camponeses, de sindicatos e organizações que receberam o apoio de Dom Tomás. Ele era o mestre e inspirador das lutas, mas também sabia ser rígido e crítico quando era necessário. Da mesma forma o fez com governantes e partidos políticos, mesmo com aqueles que em algum momento apoiou, mas que em decorrência de sua atuação, ou da sua não atuação, achou por bem criticar e cobrar. As mesmas críticas ele estendeu à Igreja, ou melhor, às igrejas, que se afastavam do compromisso evangélico de estar ao lado do povo pobre e injustiçado.
Dom Tomás continua vivo nas lutas do povo pobre da terra de todo o mundo. Sua voz ecoa no grito do camponês e do indígena que exigem terra para trabalhar e a preservação de seus territórios. Seus ensinamentos continuam presentes nas Igrejas que promovem o povo oprimido. Seu coração continua a pulsar naqueles que se organizam, naquelas que lutam, nas fileiras em marcha por esse país, seguindo bandeiras de um mundo mais justo.