terça-feira, 30 de janeiro de 2018

IRMÃ GENOVEVA

A morte da Irmã Genoveva, a parteira do povo Tapirapé 30/09/2013

Tirado do site 


No dia 24 de setembro de 2013 morreu na aldeia dos indígenas Tapirapé no Araguaia a Irmãnzinha de Jesus Genoveva. Dentro de poucos dias
faria 60 anos de inserção na vida daquela tribo que estava em extinção. Ela e suas companheiras viveram uma experiência que o antropólogo Darcy Ribeiro considerava uma das mais exemplares de toda a história da antropologia: o encontro e convivência de alguém da cultura branca com a cultura indígena.

Primeiramente publico o relato-testemunho de Canuto que bem conhecia a vida e a obra da Irmã Genoveva. Depois republicarei um artigo que escrevi ainda em 1992 quando a encontrei na prelazia de São Felix do Araguaia. É uma pequena homenagem a esta extraordinária e santa mulher que se identificou com os Tapirapé a ponto de parecer uma verdadeira Tapirapé:Lboff


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Eis o testemunho, de Canuto, que bem sabe da vida e obra da Irmãzinha Genoveva:


Cheguei hoje às 6:00 hs da manhã lá do Urubu Branco, onde estive para os funerais de Irmãzinha Genoveva. Queria partilhar um pouquinho com vocês do que vi e vivi.

Primeiro, as informações de como foi a morte dela.

Genoveva na manhã da terça-feira, 24, estava bem disposta. Tinha amassado barro para fazer não sei bem que conserto na casa. Almoçou tranquilamente com a irmãzinha Odile. Estavam descansando quando se queixou de dores no peito. Odile foi logo providenciar um carro para levá-la ao hospital de Confresa. No caminho a respiração foi ficando mais difícil. Morreu antes de chegar ao hospital.


De volta à aldeia, consternação geral. Genoveva viu nascer quase 100% dos Apyãwa (é assim que se autodenominavam os Tapirapé. Assim voltam a se autodenomiar hoje), nestes 61 anos de vida partilhada. Os Apyãwa fizeram questão de sepultá-la, segundo seus costumes, como se mais uma Apyãwa tivesse morrido. Os cantos fúnebres, ritmados com os passos se prolongaram por muito tempo, durante a noite e o dia seguinte. Muitas lamentações e choros se ouviam.

Segundo o ritual Apyãwa, Genoveva foi enterrada dentro da casa onde morava.

A cova foi aberta com todo o cuidado pelos Apyãwa, acompanhada de cânticos rituais. A uma altura de uns 40 centímetro do chão foram colocadas duas travessas, uma em cada ponta da cova. Nestas travessas foi amarrada a rede que ficou na posição de uma rede estendida com quem está dormindo. Por sobre as travessas foram colocadas tábuas. Por sobre as tábuas é que foi colocada a terra. Toda a terra colocada foi peneirada pelas mulheres, como é a tradição. No dia seguinte esta terra foi molhada e moldada de tal forma que fica firme e espessa como a de chão batido. Tudo acompanhado com cânticos rituais.

Em sua rede em que todos os dias dormia, Genoveva continua o sono eterno entre aqueles que escolheu para ser seu povo.

A notícia da morte se espalhou pela região, pelo Brasil e pelo mundo. Agentes de Pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia, os atuais e alguns antigos, amigos e admiradores do trabalho das irmãzinhas foram chegando para a despedida. A vice-presidenta do CIMI, irmã Emilia, com os coordenadores do CIMI, de Cuiabá, chegaram depois de uma viagem de mais de 1.100 kms quando o corpo já estava na cova, ainda coberto só com as tábuas. Os Apyãwa as retiraram para que os que acabavam de chegar a vissem pela última vez em sua rede.

Os membros d equipe pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia, junto com os outros não indígenas, entre os cânticos rituais dos Tapirapé, foram entremeando cânticos e depoimentos da caminhada cristã de Irmãzinha Genoveva.

Ao final, o cacique falou que os Apyãwa estão todos muito tristes com a morte da irmãzinha. Falando em português e tapirapé, ressaltou o respeito como eles sempre foram tratados pelas irmãzinhas, durante estes sessenta anos de convivência. Lembrou de que os Apyãwa devem sua sobrevivência às irmãzinhas, pois quando elas chegaram, eles eram muito poucos e hoje chegam a quase mil pessoas.


Plantada em território Tapirapé está Genoveva, um momunento de coerência, silêncio e humildade, de respeito e reconhecimento do diferente, gritando como é possível, com ações simples e pequenas, salvar a vida de todo um povo.

Valeu a pena ter ido lá nesta oportunidade.

Abraços a todas e todos


Canuto


Morreu a Irmã Genoveva, a parteira do povo Tapirapé


Via de regra, a propagação do cristianismo se fez pela palavra do evangelho no quadro de um projeto civilizatório e de uma forma de ser Igreja que construiu edifícios religiosos e escolas. É o evangelho pelo caminho do poder.


Mas nunca faltou na história outra tendência, vivida outrora por Francisco de Assis e por Bartolomé de las Casas, de acercar-se dos outros pelo caminho da convivência pacífica, sem palavras, fraterna e amorosa.


No mundo contemporâneo foi testemunhada pelo Irmão Carlos de Foucauld que nos inícios do século XX foi ao meio dos muçulmanos no deserto da Algéria, não para anunciar mas para conviver com eles e acolher a diferença de sua cultura e de sua religião. E nos dias atuais está sendo vivida, exemplarmente, pelas seguidoras do Irmão Carlos, as Irmãzinhas de Jesus, entre os índios Tapirapé no noroeste do Mato Grosso, próximo ao rio Araguaia. É o poder do evangelho.


No domingo passado, dia 17 de setembro de 2002 assisti a celebração do cinquentenário da presença delas junto aos Tapirapé. Lá estava ainda a pioneira, a Irmãzinha Genoveva que em outubro de 1952 começou sua convivência com a tribo. De manhã, com o bispo Pedro Casaldáliga, advogado e defensor dos índios, se lançou um livro de extraordinário valor: O renascer do povo Tapirapé: diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, 1952-1953(Editora Salesiana, SP, 2002), belíssimamente ilustrado para estar à altura da refinada estética dos Tapirapé.


Como elas chegaram lá? As Irmãzinhas souberam através dos frades dominicanos franceses que missionavam em terras do Araguaia, que os Tapirapé estavam em extinção. Dos 1500 de antigamente foram reduzidos a 47 por causa incursões dos Kayapó, das enfermidades dos brancos e da falta de mulheres. No espírito do Irmão Carlos, de ir para conviver e não para converter, decidiram unir-se à agonia de um povo.


À sua chegada, a Irmãzinha Genoveva ouviu do cacique Marcos:”Os Tapirapé vão desaparecer. Os brancos vão acabar conosco. Terra vale, caça vale, peixe vale. Só índio não vale nada”. E eles haviam internalizado que não valiam nada mesmo e que estavam condenados inexoravelmente a desaparecer.


Elas foram junto a eles e pediram hospedagem. Começaram viver com eles o evangelho da fraternidade na roça, na luta pela mandioca de cada dia, no aprendizado da língua e no incentivo a tudo o que era deles, inclusive a religião, num percurso solidário e sem retorno. Com o tempo foram incorporadas como membros da tribo.


A autoestima deles voltou. Graças à mediação delas, conseguiram que mulheres Karajá se casassem com homens Tapirapé e assim garantissem a multiplicação do povo. De 47 passaram hoje a 520. Em 50 anos, elas não converteram sequer um membro da tribo. Mas conseguiram muito mais: fizeram-se parteiras de um povo, à luz daquele que entendeu sua missão de “trazer vida e vida em abundância”.


Quando vi o rosto de uma india Tapirapé e o rosto envelhecido da Irmãzinha Genoveva notei: se tivesse tingido de tucum seus cabelos brancos, ela seria tida por uma perfeita mulher Tapirapé. Realizou, de fato, a profecia da Fundadora:”As Irmãzinhas se farão Tapirapé, para daqui, irem aos outros e amá-los, mas serão sempre Tapirapé”. Não é por ai que deverá seguir o Cristianismo, se quiser ter futuro num mundo globalizado? O evangelho sem poder?


ARTIGO ANTIGO, DE 2008, SOBRE A IRMÃZINHA GENOVEVA


Os 50 anos das Irmãzinhas de Jesus junto ao povo da Tapirapé

(Tirado do blog desativado Boletim da Fraternidade Leiga, do dia 

sexta-feira, 10 de outubro de 2008)
( reportagem feita por Liliane Luchin- extraído do site do CMI Brasil - midiaindependente.org)

Falar dos Tapirapé e não falar das Irmãzinhas, ou vice-versa, é omitir parte da história. Há 50 anos as irmãs da Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus, da Congregação de Charles de Foucauld, vivem na aldeia Urubu Branco, próximo de Confresa, em Mato Grosso.


Três Irmãzinhas chegaram ao Brasil, no dia 24 de junho de 1952, com o objetivo de morar junto com os Tapirapé, numa casa como a dos indígenas, passando a ter a mesma alimentação e o mesmo estilo de vida. "Ir aos esquecidos, aos desprezados, aos que ninguém interessa" palavras da Irmãzinha Madalena, fundadora da Fraternidade.


As Irmãs Genoveva, Clara e Denise, quando chegaram à aldeia Tapirapé encontraram um povo com cerca de 50 pessoas, sobreviventes de ataques de seus vizinhos Kayapó. Após estes 50 anos de dedicação e comprometimento com os indígenas, hoje os números são outros: cerca de 500 Tapirapé em sua maioria crianças e jovens, vivem nas aldeias Majtyritãwa, próxima a Santa Terezinha, e Tapi´itãwa, Wiriaotãwa, Akara´ytãwa e Xapi´ikeatãwa, na área indígena Urubu Branco, próxima da cidade de Confresa. O respeito às crenças, ao estilo de vida e aos costumes dos Tapirapé, foi o que fez das Irmãzinhas as principais aliadas deste povo durante todos estes anos.


As lutas foram muitas e a determinação destas mulheres ainda maior. "Queríamos viver no meio deles o amor de Deus que não deseja outra coisa senão que vivam e cresçam como Tapirapé" são palavras da Irmãzinha Genoveva, que ainda vive com os Tapirapé. Desde o inicio, deram atenção especial para a saúde, especialmente porque estavam muito expostos ao contágio de doenças levadas pelos não-índios. Era a primeira vez que iam viver em uma comunidade indígena e esta seria também a primeira "fraternidade" estabelecida por elas em solo brasileiro e sul-americano. Muita coisa aconteceu durante esses 50 anos.


Os Tapirapé, que pareciam estar próximos da extinção, conseguiram se recompor. Para chegar a essa nova situação foi necessário muita dedicação, muita partilha e mútua aprendizagem. Apesar de alguns surtos epidêmicos, com a chegada das Irmãzinhas a mortalidade foi reduzida e quase que erradicada, por conta dos tratamentos curativos e do controle profilático das doenças, sempre respeitando a maneira de ser dos Tapirapé. Uma história de lutas e conquistas.


O quase extermínio dos Tapirapé se dá a partir de 1909, quando a população aproximada de 2000 índios foi exposta às doenças trazidas pelos não-índios. Epidemias de gripe, varíola e febre amarela acabaram com duas aldeias. Outro agravante da diminuição e dispersão expressiva dos Tapirapé, foram as disputas que existiam entre os Kayapó que viviam na região. Em 1935, estavam reduzidos a 130 pessoas, e, em 1947, estavam com apenas 59, segundo o depoimento de Herbert Baldus. Foi nesse ano que ocorreu o grande ataque Kayapó. Aproveitando a ausência dos homens que haviam saído para a caça, a aldeia Tampiitawa foi praticamente destruída e várias mulheres e meninas, raptadas. Os sobreviventes procuraram refúgio na fazenda de Lúcio da Luz e junto a Valentim Gomes, recém contratado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e que vivia próximo à barra do rio Tapirapé. 


Foi junto a ele que a comunidade resolveu construir a nova aldeia, em 1950. Com a chegada das Irmãzinhas, em 1952, a situação começa a ser controlada. Podemos dividir a história Tapirapé em duas etapas – antes e depois das Irmãzinhas. O trabalho intenso e seu compromisso fizeram com que em 1959 houvesse um controle da mortalidade, por conta da assistência à saúde feito por elas. E em 1968, mais fortes e unidos, os Tapirapé dão inicio à primeira picada demarcatória que se fortalece depois de inúmeras viagens feitas a Brasília em 1975. 


Não podemos deixar de citar a influência das Irmãzinhas na criação do Cimi, que, em 1974, dois anos depois da fundação, participou ativamente da questão demarcatória das terras Tapirapé. No período de 1976 a 1981 acontece um fato marcante e histórico, o nascimento de 50 crianças. E em 1979 não foi registrada nenhuma morte na aldeia. Mas o processo de demarcação de terras era, e ainda é, muito lento. Desde o inicio, os órgãos do governo responsáveis pela questão indígena se omitiram. 


A Funai prometeu demarcar todas as terras Tapirapé até 1981, e ainda hoje 50 por cento destas terras estão ocupadas por não-índios. Atualmente os Tapirapé vivem em duas áreas demarcadas e regularizadas, porém, a Área Urubu Branco tem sérios problemas de invasão. Apesar de oficialmente demarcado, o território Urubu-Branco encontra-se invadido por oito propriedades de não-índios e pequenos posseiros, restando aos indígenas a posse efetiva de 158,000 hectares, apenas 50 por cento de suas terras. 


Liderados por Marcos-Xako’iapari, desde 1983 o povo vem desenvolvendo um processo de reconstrução da auto-estima, exercendo o direito à cidadania e de etnia diferenciada, assegurando a herança ancestral. Hoje, a população Tapirapé é de mais de 500 índios. Contam com uma escola estadual de ensino fundamental e estão pleiteando a implantação do ensino médio. Há professores que já terminaram o terceiro grau e outros que estão freqüentando o terceiro grau indígena. Apesar das interferências da língua portuguesa, os Tapirapé conservam a sua própria língua. As crianças até cinco ou seis anos são monolíngües e apenas na quarta série começam a estudar o português na escola.


A saúde é atendida pelo distrito de saúde indígena. Mesmo depois de todas as ações criminosas sofridas por eles, o povo Tapirapé garante: " A luta não vai parar, conclamamos a todos à busca da justiça e o fim da postura arrogante do governo federal pela insistência em manter a política colonizadora, que desrespeita os direitos constitucionais dos povos indígenas" afirma o cacique Xario`i . Os 50 anos com Genoveva Genoveva é a única Irmãzinha que continua vivendo entre os Tapirapé. Desde 1952 quando chegou à aldeia, Veva, como é conhecida, nunca mais saiu de perto dos Tapirapé. 


Nascida no dia 19 de agosto de 1923, em Valfraicourt, um lugarejo da França, Génevève Hélenè Baoyé, simplesmente Veva, chegou no Brasil em 1952, para viver com os Tapirapé. Antes de vir para o Brasil Veva teve de suportar os quatro anos de ocupação alemã na França. Vivia numa das regiões mais afetadas pela segunda guerra, na fronteira com a Alemanha. Como os irmãos estavam no front, trabalhava na roça para sustentar a família. Veva, com uma aparência frágil, cabelos brancos, há muitos anos acorda todos os dias antes do sol para cuidar da pequena roça que cultiva atrás das casas de taipa da aldeia Urubu Branco, a maior do povo. 


O respeito total à cultura e ao processo histórico deste povo, fez com que os Tapirapé se salvassem e se multiplicassem , tornando-se um povo alegre e seguro. Uma das características destas Irmãs é de optarem por viver sempre entre os mais abandonados e excluídos. Quando foram reagrupados em 1950, os Tapirapé estavam sem ânimo para lutar pela reconstituição do seu povo e começavam a pensar que seu sistema de vida era ruim e deveriam abandoná-lo. As Irmãzinhas queriam devolver àquele povo a vontade de viver, assumindo sua cultura e fazendo tudo o que faziam, sem julgar se aquilo estava certo ou errado.


Hoje (ela já faleceu), aos 78 anos e mais de seis malárias no currículo, Veva completa 50 deles vivendo com os Tapirapé. É a única Irmãzinha que permanece na aldeia desde o começo da missão. Vive hoje numa casa como as outras, em companhia de duas Irmãzinhas, Odila e Elizabette. A festa Após 10 anos da não realização da Festa da Cara Grande, os Tapirapé decidiram que a celebração das Irmãzinhas deveria coincidir com esta festividade. Para surpresa de todos, foi convidada Irmãzinha Clara, que atualmente vive na Rússia, para participar dessa comemoração, ela que havia deixado a aldeia há quase 50 anos. 


Passamos agora a palavra a ela, reproduzindo seu belo relato, de alguém que conheceu um povo à beira da extinção e que agora encontra uma comunidade cheia de vida e de esperança: " Que emoção! Eis que me encontro no pequeno aeroporto de Confresa, onde nos espera Irmãzinha Odila. Logo reconheço a montanha do Urubu Branco, tão querida dos Tapirapé e que conhecia apenas de foto. Nos dias subsequentes vão voltar com insistência as histórias da retomada da antiga terra, depois de mais de 50 anos... São as cerâmicas encontradas no mato, as pedras dos fogões, as macaubeiras... 


O caminhão que tomamos, nos deixa na aldeia, diante da casa das Irmãzinhas e me reencontro com Genoveva, que não havia visto há 40 anos e Elizabeth, há 44 anos! O formato da aldeia é o mesmo da anterior, mas em contrapartida é dez vezes maior. A Fraternidade se encontra no interior desse círculo, que envolve a takãra, a casa dos homens, que é também a casa das festas e dos espíritos. Está construída no sentido Norte-Sul e as portas foram abertas para o nascente e para o poente, segundo a tradição tapirapé. 


Rapidamente e sobretudo à medida que o sol vai se pondo, percebo o grande número de moradores. A aldeia fervilha de crianças de todas as idades e me faz lembrar meu último sonho do paraíso, quando, ao cair da tarde, vi sair da mata, dançando, centenas de Tapirapé... Na realidade, não tinha certeza se estava bem desperta ou se aquilo que estava vendo era um sonho... Esta sensação irá me acompanhar em toda minha estadia. Os velhos logo vêm me saudar. Felizmente as Irmãzinhas me ajudam a lembrar seus nomes ou me dizem seus novos nomes, pois os Tapirapé costumam trocar de nome pelo menos três vezes na vida. A gente se abraça! Um deles, Cantídio-Taywi, me diz sem rodeios: "Clara mudou muito." 


Eles também mudaram bastante e o principal é que "a gente se reconhece". Como isso é bom! Marcos-Xako’iapari, o antigo cacique, e que deve ter mais de 80 anos, toca nos meus cabelos brancos e me diz: "Clara está velha como eu." E acrescenta: "Minha cabeça não está mais boa e será logo o fim", e dá uma boa gargalhada!... Ele me faz lembrar todos os sábios que encontrei em minha vida... Será que já não me lembrava de que eram tão numerosos? Com freqüência recordava a última cena do filme A Missão, com aquela canoa com mulheres e crianças Guarani, sobreviventes de um massacre, e que me fez chorar, lembrando do que havia ocorrido com os Tapirapé... 


Na aldeia de Urubu Branco há cerca de 250 pessoas, a metade com menos de 12 anos. Hoje, por causa da festa, muitos vieram das outras quatro aldeias e a população total deve chegar a um pouco mais de 500 pessoas. Apenas nessas duas semanas que passei com eles, nasceram mais quatro. Que vitalidade! Que beleza! Com algumas exceções, eles transpiram saúde. Os jovens são bem maiores que seus pais e as moças são muito bonitas. Atualmente há mais moças que rapazes e isso deverá criar problemas. Será que a vida deles mudou? Aparentemente parece que o relacionamento entre eles e as Irmãzinhas continua o mesmo. E os encontramos sentados nos troncos de árvore e nas carapaças de tartaruga, como antigamente. 


À noite há o mesmo céu com o Cruzeiro do Sul e o mesmo luar... Algumas vezes, quando há gasolina para o gerador de energia, algumas lâmpadas, penduradas no pátio, clareiam o ambiente. Apesar dos botijões de gás que há em várias casas da aldeia, as mulheres continuam cozinhando em seus fogões à lenha, localizados atrás das casas, onde toda família se junta para comer. Mas o que fez mudar o aspecto da aldeia foram as roupas a secar nos varais, amarradas nas árvores. Roupa muito limpa – calções, sutiãs e camisetas –, com as mais variadas marcas, desde Coca-cola até o nome de políticos da região... 


A limpeza reina também no interior das casas, com as panelas brilhando pela ação do Bom-Bril. Logo entramos no ritmo das festas, festas que começam no período da estiagem, cujo ponto culminante é a festa da Cara Grande. Geralmente esta festa é por volta do dia 24 de junho. Pela primeira vez, desde 1947, o ciclo completo das festas será realizado na aldeia de seus antepassados, agora retomada. É um ano muito importante para eles (e para nós também!!!). 


Durante uma semana os cantos e as danças vão se suceder, muitas vezes durando a noite toda, até o desaparecimento da última estrela. Impossível descrever todas as festas. O que chama a atenção é o ambiente de festa. Durante dias seguidos e o dia todo, em todos os cantos mulheres, agachadas, fazem as pinturas no corpo dos homens, dos rapazes e das moças, com desenhos geométricos, cada um com seu significado, incluindo os xire’i (isto é, adolescentes que se preparam para os rituais de iniciação à vida adulta) com o corpo todo pintado de preto. 


As danças são realizadas pelos homens mais novos, preparados pelos mais antigos, que nesse ano fizeram um grande esforço, conscientes de que são os depositários das tradições de seu povo. A dança é feita geralmente pelos homens, que se colocam em fila indiana, perto da entrada do nascente da tãkãra, magnificamente pintados e enfeitados, com seus arcos e flechas, acompanhados pelos "espíritos ancestrais dos Tapirapé", que estão vestidos de uma roupa feita de folha de palmeira verde ou seca, que faz um ruído característico, ao menor movimento. Nos divertimos em contar os participantes homens (jovens e adultos): eram 84. Havia dia em que chegavam a 110! Isso me faz lembrar o ano de 1952, quando eram apenas 47 pessoas!... 


Algumas vezes as danças se transformavam em disputas: a eterna luta contra seus inimigos tradicionais, como os Karajá, os tori (os não-índios) e sobretudo os Kayapó. Estes, representados por um grupo de Tapirapé disfarçados, parecem inicialmente vencê-los, mas são dominados e levados como prisioneiros para a casa dos homens. No final há a dança da vitória. Numa das manhãs, ao nascer do sol, houve a festa da liberação dos espíritos, quando estes saem pela aldeia, sendo perseguidos pelas moças, que procuram agarrá-los para dar-lhes o cauim, que irá apaziguá-los. Houve também a refeição ritual, que é um apelo à unidade dos diferentes grupos rituais, cada um com o nome de um pássaro. 


Nesse dia, os rapazes levam à tãkãra grandes panelas, bacias e cestos cheios com banana, carne de porco-do-mato, farinha de mandioca e cauim. Quando o grupo é maior, como agora, a festa ocorre no pátio da aldeia. A última noite foi consagrada à festa do kawio, bebida fermentada, ao redor da qual as danças se prolongam por muitas horas, visando espantar os espíritos maléficos, simbolizados por essa bebida ácida. Duas casas são escolhidas para o ritual: uma ao norte e outra ao sul da casa dos homens. 


A escolha dessa última recaiu justamente sobre nossa Fraternidade, pois na casa escolhida havia falecido uma mulher há pouco tempo. Dessa vez a roupa dos tori (não-índios), que as mulheres Tapirapé costumam usar, desapareceu completamente. Enfeitadas de maneira tradicional, elas dançam em volta dessas duas casas, enquanto que os homens permanecem no interior das mesmas, em torno das panelas de cauim. Marcos-Xako’iapari parece estar tomado de uma grande força interior, o que nos comove muito. Descobre que ele e Joana-Ataxowoo são os únicos capazes de transmitir a riqueza dessas tradições que estão correndo o risco de desaparecer completamente. 


Os jovens procuram segui-los, observando-os com atenção, imitando-os e gravando tudo. Nos dias subsequentes, ouvimos suas vozes por toda parte, seguidas da voz dos jovens que repetem as palavras e as melodias. Foi realmente o triunfo Tapirapé. Mais uma vez, Marcos liderou um último rito, que está quase desaparecendo e que tem por finalidade fazer uma espécie de redistribuição das riquezas. É o encerramento das festas. No dia seguinte ao da dança do kawio, bem cedinho, ele vem com Tokyna, sua mulher, buscar a panela do kawio que ficou em nossa casa e a leva, cantando de casa em casa. 


O chefe de cada família bebe um gole de cauim, cuspindo em seguida, enquanto que os demais têm o direito de tomar um pouco do cauim que sobrou e ao mesmo tempo de pedir ao dono da casa tudo o que querem. Marcos dá o exemplo e se vê despojado de muitos de seus bens. Outras lideranças o seguem, mas nem todos têm essa coragem. Como diz Irmã Odila, nesse ritual "há ao mesmo tempo desprendimento e audácia que podem causar admiração ou medo". Cama, colchão, cadeira, fogão a gás, pasta de urucum, arara, galinha mudam de proprietário em apenas uma manhã!


Uma exposição de fotos ampliadas pela Irmã Edith, que infelizmente teve de deixar a aldeia antes da festa que ela tanto se empenhou em preparar, fez muito sucesso e levantou muitos comentários. Evocava a vida desses 50 anos e muitos reconheceram aqueles que já se foram. À noite houve a projeção de dois vídeos históricos, que teve o poder de reunir num minuto toda a aldeia: o filme do Padre Voillaume, que esteve com Irmãzinha Madalena em 1953 e um outro, de 1955. Não conseguia imaginar a quantidade de crianças que estavam à nossa frente, sentadas nos primeiros lugares. No dia seguinte, após as festas, começa a partida... pois é impossível alimentar por muito tempo 500 pessoas! Com todas as coisas novas que estão chegando à aldeia, o futuro parece inquietar as Irmãzinhas. Mas acredito que são eles realmente os construtores de seu futuro juntamente com Deus. 


As Irmãzinhas, que encontrei na aldeia, certamente escreverão um outro relato, depois de tantos anos de presença no meio deles. Eu as agradeço por me terem convidado e por terem partilhado comigo tanta coisa que me ajudou a reencontrá-los, ficando no meu coração apenas um canto de ação de graças. "Que beleza!" é a única coisa que consigo repetir o tempo todo." Fonte:Cimi

( na foto aparece Genoveva, com outra irmãzinha e o cacique dos Tapirapés Marcos( já falecido)