sábado, 10 de agosto de 2019

PADRES DO DESERTO


Agora com mais conteúdo. Logo após Os Padres do Deserto 01 veja Os Padres do Deserto 02.
Os Padres do Deserto -01

“Num mundo que ameaça caminhar para a desertificação, a resposta poderá vir, mais uma vez, de onde menos se espera: do silêncio que fala por si (e por nós), dos que sabem estar sós. Vale, por isso, a pena escutar de novo as palavras do silêncio, para aprendermos a ouvir mais e a falar melhor”,
escreve o frei franciscano Isidro Lamelas em seu livro: “Padres do Deserto – Palavras do silêncio”. 

No início do século IV, no Império Romano, o cristianismo passou de religião ilícita e perseguida para a condição de tolerada e, depois, de protegida e beneficiada. Para resistir à onda secularizante que invadira a Igreja imperial, os Padres do Deserto começaram por se retirar em locais desabitados e inóspitos, primeiro no Egito, depois, noutras partes, como a Palestina e a Síria. “Mais do que teóricos da espiritualidade, estes “pais espirituais” constituem um património de humanidade e uma reserva inesgotável da melhor espiritualidade, precisamente porque se deixaram incendiar pelo fogo regenerador do amor misericordioso de Deus”, salienta o Frei Isidro Lamelas. 

Os Padres do Deserto ensinam-nos a introduzir o silêncio dentro da palavra e a traduzir em poucas palavras esse enigma que nos habita e escapa. De muitos deles nem o nome ficou; são simplesmente nomeados como “Anciãos” ou “Pais”, porque nada quiseram ser nem ter, a não ser “filhos” e “irmãos” que partilham da mesma sede de Deus. 

Como os próprios nos ensinam, não é o deserto que faz o monge. Conforme dizia o pai Longuino: “quem não é capaz de viver corretamente com os homens, não será capaz de viver corretamente na solidão” (Longuino, 1). De nada valem o silêncio, o jejum ou as múltiplas formas de ascese e anacorese, sem a caridade verdadeira para com todos, especialmente para com os mais fracos. Por isso, Orígenes de Alexandria (cerca de 185-254), considerado um dos pioneiros da espiritualidade e experiência monástica advertia que “devemos abandonar o mundo não tanto localmente, mas mentalmente”. 

Os Padres do Deserto são eremitas embriagados na radicalidade no amor do Eterno e Todo-Poderoso. Ébrias de Deus”, como lhes chamou São Macário, um deles, no século IV. 

Se algo de novo encontramos nestes insaciáveis buscadores de Deus é a vigilante autenticidade e paixão com que abraçam o Evangelho de Jesus Cristo. De facto, o cristianismo é, para os Pais e Mães do deserto, um fogo novo aceso por Cristo que, como ensina Sinclética, “devemos acender em nós mesmos, com lágrimas e esforço”. 

Charles de Foucauld 

“Charles de Foucauld, o homem silencioso do Saara, homem de adoração e de oração, que se fez “irmão universal”, sempre acolhedor para com todos, se propunha a “gritar o Evangelho sobre os telhados com toda a minha vida”. Esse foi o caminho aberto pelo “missionário isolado”, cujo exemplo inspirou e continua inspirando inúmeros pastores e fiéis”, afirma o padre francês Bernard Ardura, postulador da causa de canonização do Bem-aventurado Charles de Foucauld e presidente do Pontifício Comitê de Ciências Históricas. 

Escreveu o eremita do deserto do Saara Charles de Foucauld: “Viver na pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão, no abandono para estar na vida com o meu Mestre, o meu Irmão, o meu Esposo, o meu Deus, que viveu assim toda a sua vida e me dá esse exemplo desde o nascimento”. 

Para meditação 

“O monge é aquele que está separado de todos e unido a todos. É monge aquele que se considera um com todos, pois tem o hábito de se ver em todos” (Evágrio, Pequena Filocalia, 124-125). 

O pai Isaías disse: “Ama calar mais que falar, pois o silêncio entesoura ao passo que o falar desperdiça” (Guy IV, 18; SC 387, 194). 


Viver abissalmente a espiritualidade na pós-modernidade, só na configuração da mística do deserto, no amor radical ao bom Deus!




OS PADRES DO DESERTO-02

Agosto de 2019


“O abade Pastor disse: ‘Qualquer prova colocada a você pode ser vencida pelo silêncio”.

Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, encerrando trezentos anos de perseguição e martírio, algumas pessoas consideraram que sua prática religiosa cristã era incompatível com essa nova religião de Estado que surgia, institucionalizada e poderosa, e decidiram simplesmente se internar nos desertos do Egito, sozinhas ou em pequenas comunidades.

Essas pessoas, apesar de hoje lembradas como Padres e Madres do Deserto e de serem respeitosamente referidas como “monge”, “eremitas” ou “abade”, em sua enorme maioria não eram religiosas ordenadas; não possuíam nenhum treinamento ou formação sacerdotal, teológica, litúrgica; não tinham nenhum apoio ou chancela das instituições cristãs oficiais da época.

Eram só pessoas, imbuídas de uma fé profunda e quiçá enlouquecida, que se isolaram do mundo para poder viver mais livremente o tipo de vida que consideravam adequado. Não estimulavam visitas. Não tentavam convencer ninguém. 

Os Padres do Deserto tiveram uma grande influência na renovação e no desenvolvimento do cristianismo primitivo. Eles eram o exemplo de verdadeiros seguidores de Cristo. Eram dotados dos dons e frutos do Espírito Santo.

O monge trapista Thomas Merton, escreve:

“[Os Padres do Deserto] insistiam em permanecer humanos e ‘comuns’. … Fugir ao deserto para ser extraordinário é somente carregar o mundo como um padrão implícito de comparação. … Os homens simples que viveram suas vidas até uma idade avançada entre pedras e areia só o fizeram porque haviam ido ao deserto para serem eles mesmos, para viverem seu eu ordinário, e para esquecerem um mundo que os mantinha afastados de si mesmos. … O que ganhamos ao viajar à lua se não formos capazes de cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos? … Deixar o mundo é … ajudar a salvá-lo, salvando-se a si mesmo. … Os eremitas cópticos que deixaram o mundo, embora estivessem escapando de um naufrágio, não pretendiam apenas salvar suas vidas. Eles sabiam que eram incapazes de fazer algum bem aos outros enquanto se debatessem no naufrágio. Porém, uma vez que conseguissem colocar os pés em terra firme, as coisas seriam diferentes. Nesse momento eles não apenas teriam o poder, mas a obrigação de trazer todo mundo a salvo atrás deles”, (12, 24-25).

Os eremitas

Os Padres do Deserto o foram eremitas, ascetas, monges e monjas que viviam majoritariamente no deserto da Nítria (Escetes), no Egito a partir do século III. O mais conhecido deles foi Santo Antão que mudou-se para o deserto em 270-271 e se tornou conhecido o pai e fundador do monasticismo no deserto.

São Paulo de Tebas é geralmente creditado como tendo sido o primeiro eremita a ir para o deserto, mas foi Santo Antão que efetivamente lançou o movimento que se tornaria os Padres do Deserto.

Com o passar do tempo, o modelo de Santo Antão e outros eremitas atraiu muitos seguidores, que viviam sós no deserto ou em pequenos grupos. Eles escolheram a vida de extremo ascetismo, renunciando a todos os prazeres dos sentidos, ricas comidas, banhos, descanso e todos os demais confortos.

Três principais tipos de monasticismo se desenvolveram no Egito à volta dos Padres do Deserto. Um foi a vida austera do eremita, como praticado pelo próprio Antão e seus seguidores no Baixo Egito. Outro foi a vida cenobita, comunidades de monges e monjas no Alto Egito formadas por São Pacômio. O terceiro foi uma vida semi-eremita vista principalmente na Nítria e em Escetes, a oeste do Nilo, iniciada por Santo Amum. Estes últimos eram pequenos grupos (de dois a seis) de monges e monjas com um ancião em comum - os grupos separados se reuniam em aglomerações maiores para a celebração dos sábados e domingos. Este terceiro grupo monástico foi responsável pela maior parte dos ditados que foram compilados na obra "Ditados dos Pais do Deserto".

O primeiro mosteiro totalmente organizado foi de São Pacômio incluía homens e mulheres vivendo em quartos separados, até três pessoas em cada. Eles se apoiavam tecendo e fazendo cestos, além de outras tarefas. Cada novo monge ou monjas tinha um período probatório de três anos, que terminava com a aceitação completa no grupo. Duas vezes por semana jejuavam e se vestiam com roupas simples de camponeses, com um capuz. Diversas vezes por dia se reuniam para rezar e para as leituras, e se esperava que cada um dedicasse períodos de tempo sozinhos, em meditação sobre as escrituras.

O maior número de ditados foi atribuído ao Abba "Poemen", palavra grega para "pastor", o que sugere que foram coletados sob um nome genérico. Entre os mais notáveis Pais do Deserto com ditados no livro, além de Antão, temos Arsênio, o Grande, Macário do Egito, Moisés, o Ladrão e Sinclética de Alexandria. Outros notáveis Pais do Deserto incluem ainda o próprio São Pacômio e Shenouda, o Arquimandrita e muitos indivíduos que passaram parte de suas vidas no deserto do Egito, como Atanásio de Alexandria, João Crisóstomo e João Cassiano, cuja obra sobre os Padres do Deserto mostrou ao mundo a sabedoria deles.

Conclusão

O mandamento do amor era o guia primário da vida dos Padres do Deserto e formou a maior parte das histórias e relatos dos "Ditados...". As suas práticas incluíam não apenas o comando de amar a todos, mas também o de ser transformado pelo amor divino. Para os que viviam a vida comunitária monástica, isso era especialmente proeminente.

Hesicasmo (do grego para "quietude, silêncio, descanso, tranquilidade"), é uma tradição mística e um movimento que se originou com os Padres do Deserto e era central às suas práticas de oração. O título hesicasta foi utilizado nos primeiros anos como um sinônimo de "eremita", contrapondo os cenobitas, que viviam em comunidades. A Oração de Jesus ou "Oração do Coração", a origem desta oração também pode ser rastreada até os Padres do Deserto - a "oração de Jesus" foi encontrada inscrita nas ruínas de uma cela daquele período no deserto egípcio. A mais antiga evidência escrita à prática pode ser um texto da "Filocalia", por Abba Filimon, um Padre do Deserto.

As vidas dos Padres do Deserto eram preenchidas com a recitação das Escrituras durante a semana, eles cantavam os salmos enquanto realizavam os trabalhos manuais. O cerne da vida eremítica é o silêncio, solidão, oração, leitura sagrada, meditação, jejum, adoração e a glória da vida eterna! Dos tempos modernos, viveu assim Charles de Foucauld, o célebre irmão universal, o eremita do Deserto do Saara.

Os eremitas duvidavam que religião e política poderiam algum dia produzir uma sociedade cristã verdadeira. Para eles, a única possível era espiritual e não mundana. Eles tinham uma visão abissal e o resultado “das coisas de Deus e das coisas de César”. A História da Igreja provou que eles tenham razão.

 Inácio José do Vale, FCF

Fontes:

A sabedoria do deserto: ditos dos Padres do Deserto do século IV, de Thomas Merton, 1960. [Tradução de Helio de Mello Filho, 2004].

O caminho do coração: a espiritualidade dos Padres e Madres do Deserto, de Henri Nouwen, 1981. [Tradução de Denise Jardim Duarte, 2012.]


https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/monaquismo/ditos_espirituais_dos_pais_do_deserto.html

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