Escritas por Jorge Mario Bergoglio em 1987.
Acaba de ser lançado na Itália o livro “Cambiamo!”
[Mudemos] (Ed. Solferino), que reúne textos escritos nos anos 1980 por Jorge Mario Bergoglio.
Foram traduzidas para o italiano as
A reportagem é de L’Osservatore Romano, 25-06-2020.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Livro que resgata textos de Jorge Mario Bergoglio escritos nos anos 1980 acaba de ser publicado (Foto: Divulgação)
Publicamos aqui alguns trechos da segunda parte, intitulada “Homens de desejos”,
e da sexta, dedicada ao tema “Os jesuítas”.
Nas Constituições da Companhia, quando Santo Inácio fala das residências e se dedica a descrever “de que modo se pode ajudar almas nesses lugares”, ele indica os desejos: “Assim também se ajuda o próximo com os desejos apresentados a Deus, nosso Senhor”.
Essa referência ao valor do desejo não é casual no costume espiritual de Santo Inácio. Na nossa espiritualidade, o desejo tem um lugar específico, e algumas reflexões sobre esse ponto podem ajudar o progresso interior no contexto das nossas preocupações apostólicas.
Santo Inácio diz que se pode ajudar o próximo desejando diante de Deus, nosso Senhor. De fato, os desejos, além das aspirações em relação àquilo que não temos, são pré-sentimentos daquilo que teremos. Os nossos desejos podem ser ilusões, mas também revelações. Revelações sobre o que Deus quer que lhe peçamos porque já no-lo concedeu. Então, o conteúdo dos nossos desejos se transforma em símbolos. Os nossos desejos forjam símbolos, porque os símbolos, assim como os desejos, escondem realidades, enquanto, ao mesmo tempo, as prometem.
Algumas obras apostólicas têm a característica de nos fazer sentir de um modo particular a insondável vastidão e profundidade dentro das quais o plano de Deus nos coloca, e a insuficiência de todas as nossas orientações e esforços para estar à altura delas.
A possibilidade de desejar nasce precisamente onde sentimos que não somos capazes e de que estamos no limite das nossas forças. É como se, enquanto percebemos os limites da nossa ação, tentássemos ir um pouco além, exatamente aonde não conseguimos chegar, com a boa vontade dos nossos desejos.
Santo Inácio explica essa possibilidade aos estudantes de Coimbra, mas a aplicando ao caso dos limites que a vida dos estudos impõe ao apostolado: “O quarto modo de ajudar aos próximos, e cujo campo é imenso, consiste nos santos desejos e na oração. E, embora o estudo não lhe deixe tempo para fazer longas orações, também se pode compensar isso com os desejos”.
No entanto, os bons desejos não são apenas um modo de nos empurrar para além dos nossos limites, onde “não somos capazes”: eles também podem preceder o nosso esforço e, nesse sentido, constituem um dos seus fundamentos: “Será tarefa do reitor, depois de o de apoiar todo o colégio com as orações e os santos desejos [...]”.
Desejar e, para esse fim, saber o que se deve desejar é o ponto de partida da nossa colaboração com o reino de Deus. Desse modo, o desejo se põe na origem da nossa oração, da nossa ajuda ao próximo e da nossa própria vida de jesuítas. Da nossa oração, em relação à qual nosso Pai insiste no fato de ir pedir aquilo que eu quero, de modo que ele aconselha determinadas mudanças “quando a pessoa que se exercita ainda não encontra aquilo que deseja” (ES 89); das nossas atividades apostólicas, sobre as quais o primeiro modo de se manifestar consiste, como dissemos, na oração e nos santos desejos ou, de acordo com uma sintética fórmula inaciana, “em desejosas orações”; enfim, o desejo afunda as suas raízes na própria origem da nossa vida jesuítica: é bom recordar aquela pergunta que Inácio introduz no Exame para que se interrogue o candidato sobre a sua decisão de vestir a mesma veste e uniforme de Cristo, sofrer injúrias, falsos testemunhos, afrontas, ser considerado louco: “Portanto, dever-se-á perguntar a cada um se sente tais desejos tão salutares e fecundos para a perfeição da sua alma”.
Pode-se dizer que a nossa vocação para a Companhia nasceu no preciso momento em que esse desejo surgiu no nosso coração. Tanto é que Santo Inácio retoma e continua aquilo que acaba de ser dito sem dar trégua: “Quem, por causa da nossa fraqueza humana e da própria miséria, não possuir tais desejos tão inflamados em nosso Senhor, deve ser interrogado se deseja, de algum modo, possuí-los”. E chegamos aos “desejos de desejos”.
O desejo, portanto, parece definitivamente enraizado na origem mais íntima do nosso ser e operar. Se se compreendeu o desejo de “totalidade em relação ao fim” que caracteriza Santo Inácio – e uma versão dela é a sua devoção pelo magis – isso não surpreenderá.
A direção dos nossos desejos expressa a orientação profunda do nosso ser. Quem consegue adentrar na intimidade dos desejos de um homem poderá dissecar aquilo que esse homem quer e é na vida, ou seja, a chave secreta do seu destino. O desejo humano, especialmente quanto mais íntimo e profundo for, encerra a chave secreta de toda existência. E, portanto, nele reside o tesouro do coração.
Por isso, Inácio, em última análise, visa a transformar “até os nossos desejos mais íntimos”, pois, na medida em que eles chegarem a ambicionar apenas aquilo que é de Deus, então o homem, com certeza, será também ele de Deus.
Somente nesse momento será possível experimentar como o amor que nos move e nos leva a escolher desce do alto, do amor de Deus (cf. ES 184). Pelo mesmo motivo, Santo Inácio, a fim de obter de um homem um autêntico jesuíta, um companheiro de Jesus, não se contenta com a promessa de que ele aceitará as humilhações que o assimilam a Jesus quando elas vierem, mas também espera dele que as deseje ou, pelo menos, que “deseje desejá-las”, como medida preventiva para colocá-lo no ponto inicial daquele movimento profundo do coração que conhece uma única direção e sobre a qual não é possível tergiversar.
Embora seja verdade que o desejo caracteriza e marca a intimidade do homem, não é apenas essa a razão pela qual Santo Inácio o coloca no fundamento e na própria origem da nossa vida. Ele faz isso porque é Deus mesmo quem concede os desejos originais e fecundos: “A partir da sua divina majestade, da qual procede o que ele deseja”. Isso significa que, no próprio desejo que nos caracteriza como homens, já está contido o sinal indelével do amor divino e do seu chamado. Quem é capaz de desejar humilhações para se assemelhar com Jesus, assim como quem é capaz de desejar qualquer bem para o próximo, foi tocado pelo Senhor, porque foi o próprio Senhor quem lhe concedeu esse desejo.
Eis o que Santo Inácio diz à irmã Teresa Rejadell no seu típico estilo seco: “Se refletir, poderá entender bem que esse desejo de servir a Cristo, nosso Senhor, não provém de você, mas é dado pelo Senhor. Dizendo portanto: ‘O Senhor me dá um desejo crescente de servi-lo’, você o louva, porque proclama o seu dom, gloriando-se nele, não em si mesma, porque não atribui a si mesma essa graça”.
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Santo Inácio é um homem que, entrando em contato com o divino, reescreve a própria vida e a dos seus companheiros segundo normas que ele acreditava que eram desejadas por Deus.
Nos 35 anos seguintes à sua conversão, há uma coerência interna que sempre se mantém: é a coerência do seu projeto. O seu projeto não é um planejamento de funções, não é uma variedade de possibilidades. O seu projeto consiste em tornar explícito e concreto aquilo que ele viveu na sua experiência interior.
Por isso, é notável ler nas Constituições e nas cartas que ele escreve a contínua referência a “tempos, lugares e pessoas”. Isso significa, por um lado, que a sua visão interior é nítida, tem delineamentos definidos e alcançou a densidade de uma configuração capaz de se explicitar. E, por outro lado, significa que essa visão interior não se imporá sobre as circunstâncias históricas, tentando reordenar a história com base nas suas próprias coordenadas. Se esse fosse o caso, ela teria se cristalizado em um “situacionismo” reducionista, levando tudo de volta às formas daquela situação.
A visão interior de Santo Inácio não se impõe à história; ela dialoga com a história dos homens, que é história de graça e de pecado; ela busca resgatar a vontade de Deus da ambiguidade da vida: realizar a vontade de Deus é, para Inácio, buscar a maior glória daquele Deus que se fez homem e se insere na história dos homens.
A história de Santo Inácio e dos jesuítas é uma história trágica no sentido etimológico da palavra. Todos o sabem: jesuíta, no dicionário, é sinônimo de hipócrita. Houve problemas, e graves; houve sucessos, e notáveis; houve perseguições e falhas. E não faltaram lendas que criaram em torno de Santo Inácio e da Companhia de Jesus uma aura carregada de todas as nuances imagináveis.
Adentrarmo-nos na história da Companhia nos levaria a reflexões que transcendem o contexto dessas páginas. Por isso, preferi me concentrar fundamentalmente no diálogo que Santo Inácio e a primitiva Companhia mantiveram com a cultura e com os problemas do seu tempo: são as suas origens e, além disso, é um diálogo exemplar, tipológico, para tempos posteriores.
O Papa Paulo VI, dirigindo-se aos jesuítas em 1974, em um dos discursos mais belos que um pontífice dirigiu à Companhia, dizia:
“O pensamento vai para aquele complexo século XVI, no qual se colocavam os fundamentos da civilização e da cultura moderna, e a Igreja, ameaçada pela cisão, dava início a uma nova era de renovação religiosa e social, fundada na oração e no amor de Deus e dos irmãos, isto é, na busca da mais genuína santidade. Era um momento fascinado por uma nova concepção do homem e do mundo, que muitas vezes – embora esse não fosse o humanismo mais genuíno – estava prestes a relegar Deus para fora do horizonte da vida e da história; era um mundo que assumia dimensões novas a partir das recentes descobertas geográficas; e, por isso, em muitos aspectos – convulsões, reflexões, análises, reconstruções, impulsos, aspirações etc. – muito semelhante ao nosso”.
No marco daquela época tão rica, a Igreja enfrentava o fenômeno da Reforma. Muitas vezes, Santo Inácio foi definido como o bastião da Contrarreforma. Há algo de verdadeiro nisso, mas a afirmação não é tão pacífica quanto poderia parecer à primeira vista. Por outro lado, esse fenômeno cultural religioso (a Reforma) incentivou a fidelidade do serviço de Santo Inácio e o levou a lutar pela unidade católica.