“Devido a seus instintos profundos, monge é o que ele era, ou antes, eremita. Ele nasceu assim. Apenas levou algum tempo para encontrar seu caminho. Os instintos profundos do eremita já apareciam no explorador”.
Émile-Félix Gautier
Explorador, geógrafo e escritor francês (1).
Um nome se tornou usual para designar o seu eremitério: a Khaúa, a Fraternidade. E toda a gente lhe chamava “ Khauía Carlo”, o Irmão Carlos. Era uma vitória. Com o seu hábito branco sobre o qual apusera um coração de tecido vermelho, encimado por uma cruz, o Pe. Carlos Foucauld podia percorrer toda a região, até ao Tafilet, onde os marroquinos tinham sempre a mão no gatilho, que ninguém ousaria atacá-lo.
Carlos de Foucauld não procurava convencer com argumentos, operar conversões. “Não sou um missionário; sou um eremita”, repetia ele. Tornar Cristo presente e irradiante, a fim de que a sua graça penetrasse lentamente e sem que ninguém desse por isso, no meio daqueles que rodeavam o seu servo – nada mais desejava. O poder do exemplo valeria por todas as demonstrações.
Duas das partes do programa foram cumpridas. O eremitério no pequeno vale em breve se tornou um lugar de oração, como tal conhecido em todo aquele oásis e mesmo fora dele. A capela não era mais que “um simples corredor feito de estacas e coberto por canas”, diz o célebre marechal Lyautey, que a visitou. “O altar era uma tábua, e os castiçais de ferro branco; por única decoração, um Sagrado Coração de Jesus, de braços abertos, pintado pelo próprio padre num paninho”. Mas todos os dias ali se vinham ajoelhar soldados e oficiais, e os muçulmanos, que são homens de oração, admiravam o “marabu” rumi que viam passar tantas horas, de dia e de noite, a adorar a Deus. Bastava à presença do oratório para reformar muitas ideias sobre a irreligião dos franceses, a impiedade desses cristãos que ninguém via rezar.
Quanto à segunda parte do programa – manifestar a caridade de Cristo – o êxito foi retumbante. Em pouquíssimo tempo, o eremitério passou a ser o centro de uma espécie de “pátio dos milagres”, onde todos os infelizes, doentes e indigentes vinham pedir socorro. E o Pe. Foucauld, ia dando, dando, inesgotavelmente, até para além das suas possibilidades, deixando o próprio alimento aos esfaimados, distribuindo sem contar o dinheiro que recebia da família, cedendo até a peça de bom tecido que uma parenta piedosamente lhe mandara para que trocasse a túnica esfarrapada. Nenhuma miséria física ou moral deixava de achar consolação junto dele. Subsistia a escravatura na região, e as autoridades militares francesas ainda não tinham decidido suprimi-la. O Pe. Carlos, esse, recebia os escravos – ás vezes, vinte ao mesmo tempo – e resgatava alguns, na medida das suas posses, para levá-los a um trabalho livre.
A 1 de dezembro de 1916, o Pe. Foucauld estava sozinho no fortim que as tropas francesas tinham construído, logo depois de se terem instalado no Hoggar, e onde concordara em residir, visto que a eclosão da Primeira Guerra Mundial tornara a região claramente insegura e por lá circulavam bandos mais ou menos apoiados pelo inimigo. Algumas pancadas na porta arrancaram-no à meditação. O corredor fora habitualmente preparado para só poder passar uma pessoa de cada vez. Do outro lado do tabique, a voz era familiar ao padre: era a de um mestiço do aduar que o eremita recebera várias vezes. Sem desconfiar, o padre abriu a porta, estendeu a mão. E foi o drama. Traído por um amigo, como Jesus, foi lançado por terra, manietado, e os felagas (*) que o aprisionaram interrogavam-no “Quando chega o comboio? Há soldados franceses nas proximidades?”.
Mas ele não respondia. Em silêncio, rezava. No alto de uma página da sua agenda pessoal, debaixo das duas palavras “Jesus, Caritas”, e do Coração encimado pela cruz, tinha escrito: “Quanto mais tudo nos faltar na terra, mais encontramos o que a terra nos pede dar de melhor: a Cruz”. Era a hora em que tudo faltava ao Irmão Universal, mas em que a Cruz estava perto. Um tiro disparado por um guarda demasiado nervoso, uma bala que entrou por detrás da orelha direita e saiu pelo olho esquerdo... O eremita branco de Tamanrasset estava morto, naquela terra aonde levara a mensagem do amor de Cristo. Era a primeira sexta-feira de dezembro, dia liturgicamente consagrado ao Coração de Jesus.
“Foi o testemunho que daria até ao sacrifício da vida um homem de Deus que surgiria para o nosso tempo como um farol do apostolado: Charles de Foucauld”. “Talvez a Igreja tenha recebido dele um novo horizonte, e um método que possa tornar fecundo no mundo inteiro o seu apostolado”, escreveu o renomado historiador da Academia Francesa Daniel-Rops (2).
O legado deixado pelo beato francês Charles de Foucauld (1858-1916), que é conhecido como Irmão Carlos, Carlos de Jesus, Irmão Universal, Eremita Ecumênico e Apóstolo do Saara, é uma espiritualidade e uma missão de testemunhar pela vida o Evangelho de Jesus de Nazaré. Amar e evangelizar faz melhor com exemplo radical e permanente!
Inácio Jose do Vale
Fontes:
(1) Chatelard, Antoine. Charles de Foucauld, o caminho rumo a Tamanrasset. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 5.
(2) Daniel-Rops, Henri. A Igreja das revoluções: um combate por Deus. São Paulo: Quadrante, 2006, vol. IX, tomo II, pp. 564 e 569.
(*) Nome que se dava aos argelinos alistados na guerrilha contra a ocupação francesa.