Dom Pedro Casaldáliga (Parecer)
A proposta de concessão do título de Doutor Honoris Causa a Dom Pedro Maria Casaldáliga Pla, bispo-prelado de São Félix do Araguaia (Mato Grosso), pela UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, é uma proposta que faz justiça a uma das mais notáveis pessoas deste país.
Poeta, escritor, humanista, tem uma história pessoal de incansável dedicação à defesa dos direitos dos mais humildes seres humanos de nossa sociedade, os povos indígenas e os posseiros, os lavradores pobres do Centro-Oeste.
Sua presença inspiradora não tem se limitado à região de sua Prelazia, o nordeste do Mato Grosso e toda a Ilha do Bananal, no antigo estado de Goiás. Ela se estendeu a todo o Brasil, através do Conselho Indigenista Missionário e da Comissão Pastoral da Terra, que ajudou a fundar, duas organizações que revolucionaram a pastoral social da Igreja Católica e deram uma nova dimensão à questão agrária, confinada nos limites de um problema sem solução desde a Lei de Terras de 1850. E se estendeu a outras regiões da América Latina, sobretudo da América Central, marcada por impasses sociais semelhantes. Hoje, sem dúvida, Dom Pedro Casaldáliga é uma voz latinoamericana em favor dos pobres e desvalidos do campo, que se junta a uma linhagem de humanistas que tem em Frei Bartolomeu de las Casas o seu grande profeta e no Padre Camilo Torres o seu mártir.
Poeta, escritor, humanista, tem uma história pessoal de incansável dedicação à defesa dos direitos dos mais humildes seres humanos de nossa sociedade, os povos indígenas e os posseiros, os lavradores pobres do Centro-Oeste.
Sua presença inspiradora não tem se limitado à região de sua Prelazia, o nordeste do Mato Grosso e toda a Ilha do Bananal, no antigo estado de Goiás. Ela se estendeu a todo o Brasil, através do Conselho Indigenista Missionário e da Comissão Pastoral da Terra, que ajudou a fundar, duas organizações que revolucionaram a pastoral social da Igreja Católica e deram uma nova dimensão à questão agrária, confinada nos limites de um problema sem solução desde a Lei de Terras de 1850. E se estendeu a outras regiões da América Latina, sobretudo da América Central, marcada por impasses sociais semelhantes. Hoje, sem dúvida, Dom Pedro Casaldáliga é uma voz latinoamericana em favor dos pobres e desvalidos do campo, que se junta a uma linhagem de humanistas que tem em Frei Bartolomeu de las Casas o seu grande profeta e no Padre Camilo Torres o seu mártir.
Conheço Dom Pedro e sua obra muito de perto, há mais de vinte anos. Ele tem marcado profundamente não só a história contemporânea da Igreja Católica no Brasil e a história da convivência ecumênica de crentes de diferentes igrejas, mas também a história das lutas pelos direitos sociais, sobretudo dos mais pobres e marginalizados, das lutas para assegurar a observância dos direitos humanos em relação às vítimas seja da indiferença, seja da prepotência do Estado, seja do poder pessoal dos potentados rurais. Desde sua primeira carta pastoral de 1971, Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social, Dom Pedro tem proclamado insistentemente a humanidade dos que a exploração e a expropriação territorial tem procurado transformar em objetos descartáveis, destituídos de condição humana, os condenados da terra.
Humilde no modo de ser e no modo de viver, vivendo modestamente numa casa simples, de piso de tijolo, lavando e passando sua própria roupa, esse homem notável deu ao carisma de sua função episcopal a dimensão de um poderoso testemunho simbólico e real de devotamento aos pobres e aos direitos dos pobres. Mesmo quando foi recebido pelo Papa, na visita ad limina, pediu emprestada a um seminarista a batina de que não dispunha para apresentar-se adequadamente perante o Pontífice. Testemunhei, anos atrás, na Câmara dos Deputados, quando foi ele chamado a depor perante uma hostil comissão de inquérito sobre os conflitos e tensões na sua região, ainda durante a ditadura, a necessidade que teve de pedir emprestados paletó e gravata, sem o que não queriam deixá-lo entrar no recinto do Parlamento para atender a convocação que recebera.
Na sua sagração episcopal, paramentou-se com vestes e símbolos humildes dos pobres da terra, usando como báculo um remo Tapirapé feito de pau-brasil, como mitra um chapéu sertanejo de palha, sendo o seu um modesto anel de coco tucum feito pelos índios, anel que se disseminou por todo o país como símbolo dos que se identificam com a causa dos deserdados da terra, dos que tem fome e sede de justiça.
Criou uma notável equipe de agentes leigos e religiosos para viabilizar sua pastoral inovadora e transformadora numa região que abrange um território maior do que vários países do mundo. Território que por quase três décadas Dom Pedro tem percorrido a pé, com sua sandália-de-dedo, a cavalo, de barco ou de ônibus. Ele é, certamente, um dos melhores conhecedores deste país, por percorrê-lo por terra, atendendo convites para palestras, conferências, retiros espirituais, visitas. Lembra os antigos viajantes, como Saint-Hilaire, e seu percurso fundo território adentro, alma adentro, cultura adentro do povo brasileiro. Suas poesias foram feitas muitas vezes em lombo de burro, nas longas, demoradas e penosas viagens pelos sertões. Muitas se perderam na memória: Dom Pedro faz muitas de suas poesias como Anchieta fazia as suas nas praias de Iperoígue: ele as cria e as guarda de memória, para escrevê-las quando retorna a casa, muitos dias, muitas semanas depois.
Dom Pedro é um sobrevivente. Foi ameaçado de morte não poucas vezes por grileiros e latifundiários de sua região, em conseqüência de sua obstinada solidariedade com as vítimas da grilagem e do latifúndio no nordeste do Mato Grosso e na Ilha do Bananal. Dom Pedro simbolizou mais do que ninguém, e simboliza, a resistência à transformação do Brasil, e sobretudo da Amazônia, num território de enclaves nas mãos dos grandes proprietários de terra e das grandes empresas.
Se há hoje no nordeste do Mato Grosso sociedade civil organizada, isso se deve acima de qualquer dúvida, em grande parte, à sua luta e à luta da equipe de agentes de pastoral de sua Prelazia pelo reconhecimento dos direitos dos moradores, índios e não-índios, à terra que ocupavam, muitas vezes desde tempos imemoriais. Se o nordeste do Mato Grosso não é hoje apenas um imenso pasto povoado de vacas e sim um território ocupado pela civilização, povoado de gente, sem dúvida um dos fatores tem sido a ação pastoral do bispo de São Félix. Se essa ampla região é hoje pontilhada de vilas e cidades com uma organização social fecundada por princípios de cidadania ativa, isso se deve em grande parte à ação civilizadora desse missionário da liberdade e dos direitos sociais.
Onze dos atuais municípios matogrossenses tem origem na ação cívica direta ou indireta dos agentes de pastoral da Prelazia de São Félix. Não fosse isso e o nordeste do Mato Grosso seria hoje pouco mais do que um território de capatazes e pistoleiros das grandes fazendas e um território de peões escravizados. Aquilo acabaria sendo a pátria da barbárie.
Se há hoje no nordeste do Mato Grosso sociedade civil organizada, isso se deve acima de qualquer dúvida, em grande parte, à sua luta e à luta da equipe de agentes de pastoral de sua Prelazia pelo reconhecimento dos direitos dos moradores, índios e não-índios, à terra que ocupavam, muitas vezes desde tempos imemoriais. Se o nordeste do Mato Grosso não é hoje apenas um imenso pasto povoado de vacas e sim um território ocupado pela civilização, povoado de gente, sem dúvida um dos fatores tem sido a ação pastoral do bispo de São Félix. Se essa ampla região é hoje pontilhada de vilas e cidades com uma organização social fecundada por princípios de cidadania ativa, isso se deve em grande parte à ação civilizadora desse missionário da liberdade e dos direitos sociais.
Onze dos atuais municípios matogrossenses tem origem na ação cívica direta ou indireta dos agentes de pastoral da Prelazia de São Félix. Não fosse isso e o nordeste do Mato Grosso seria hoje pouco mais do que um território de capatazes e pistoleiros das grandes fazendas e um território de peões escravizados. Aquilo acabaria sendo a pátria da barbárie.
A ação de Dom Pedro inverteu uma característica própria do Brasil independente, o Estado como agente ativo da criação da sociedade civil, uma anomalia que é a grande responsável por muitos dos nossos problemas sociais e políticos. Na Prelazia de São Félix, a Igreja desempenhou pela primeira vez na história brasileira a função de animadora da sociedade para agir como sociedade civil criadora do Estado, da dimensão local do Estado Nacional, que é o município.
Justamente por isso, Dom Pedro Casaldáliga e os agentes de pastoral da Prelazia foram duramente perseguidos durante a ditadura, como inimigos da pátria e agentes da subversão. Uma ironia melancólica se tivermos em conta que tal hostilidade vinha justamente dos que se arrogaram o monopólio do patriotismo e da defesa do Brasil contra supostos inimigos externos, enquanto entregavam generosas porções da pátria a grupos econômicos estrangeiros e ao parasitismo latifundista de brasileiros impatriotas.
Justamente por isso, Dom Pedro Casaldáliga e os agentes de pastoral da Prelazia foram duramente perseguidos durante a ditadura, como inimigos da pátria e agentes da subversão. Uma ironia melancólica se tivermos em conta que tal hostilidade vinha justamente dos que se arrogaram o monopólio do patriotismo e da defesa do Brasil contra supostos inimigos externos, enquanto entregavam generosas porções da pátria a grupos econômicos estrangeiros e ao parasitismo latifundista de brasileiros impatriotas.
É um milagre que Dom Pedro ainda esteja vivo. Foi reiteradamente ameaçado de morte ou de prisão e deportação pela ditadura, a ponto do Papa Paulo VI ter mandado um recado ao governo brasileiro de então: tocar em Dom Pedro seria o mesmo que tocar no Pontífice. Um sacerdote de sua Prelazia, o missionário francês François Jentel, foi preso, julgado pela Justiça Militar, condenado a longa pena e, mais tarde, expulso do país simplesmente por realizar a obra de justiça social da pastoral de Dom Pedro, ensaio certamente das medidas de prisão e expulsão do próprio bispo.
Intelectual admirado e aplaudido, tem seus livros publicados em vários países, traduzidos para várias línguas, textos escritos muitas vezes no calor da hora, quando visitava às escondidas, na mata, posseiros escorraçados pelo latifúndio e perseguidos por jagunços e policiais. Sua obra é uma obra tocante e bela. São Félix tornou-se ponto de parada ou de passagem de muitos intelectuais brasileiros e estrangeiros, de jovens estudantes de muitos lugares, que queriam e querem conhecer essa vida de testemunho e de compromisso profundo com a condição humana. Jornalistas de todas as partes lá tem estado para ouvir a opinião sólida de Dom Pedro em relação às questões cruciais da sociedade contemporânea. Não vão a Brasília, ao Rio ou a São Paulo. Vão a São Félix, onde há sempre um prato de comida e uma cama para acolher o visitante e o passante, como acontecia nos antigos monastérios da Idade Média.
Dom Pedro Casaldáliga é um dos bispos brasileiros que melhor personificam em nossa história contemporânea a chamada missão encarnada, o missionário da civilização, o missionário que vem para ser convertido, e não para converter, na pedagogia do testemunho cotidiano dos valores fundamentais de um gênero humano emancipado e criativo. O missionário que descobre na história do povo e na cultura popular as jóias preciosas de um saber ancestral e de uma fé ancestral, que contém valores sociais profundos em aberto antagonismo com os males da exploração, do desenraizamento e da marginalização. Ele tem sido, sem dúvida, o grande responsável pelo reavivamento cultural, no trabalho pastoral, das tradições brasileiras mais significativas e pelo dimensionamento moderno de uma identidade nacional enraizada nas tradições do povo.
Testemunhei, no final dos anos setenta, numa das ocasiões em que me hospedei em sua casa, a aproximação de uma Folia do Divino, composta por humildes sertanejos, como é ainda comum em todo o país. Para grande espanto do mestre da Folia, Dom Pedro mandou abrir as portas do pavilhão que faz as vezes de Catedral em São Félix e convidou os foliões a entrarem na igreja para cumprir também ali o costume de visitar as casas dos moradores que tem fé e depositam suas esperanças no advento de uma redentora e generosa era do Espírito. E o rito se cumpriu de um modo inteiramente insólito.
As Folias do Divino vêm das concepções do monge cisterciense calabrês Joaquim Da Fiore, do século XII, que propôs uma releitura da Bíblia e a descoberta ali dos três testamentos e das três eras: a era do Pai, a era do Filho e a era do Espírito. Joaquim é tido como um dos pais da moderna concepção triádica de História. É citado por Augusto Comte e influenciou Hegel. Criou o que se poderia chamar de dialética popular da História. Em sua História da Ideia de Progresso, o sociólogo americano Robert Nisbet assinala, apropriadamente, a importância de Joaquim na formação do moderno pensamento sociológico. Gestou duas referências: as bases da moderna concepção de História e as bases de um culto popular que foi, e ainda é, considerado por muitos como herético, porque anuncia o tempo novo da redenção dos pobres da terra, o tempo da alegria e da fartura, da justiça e da liberdade. Dom Pedro, ao abrir as portas da Igreja para a Folia do Divino que vinha do sertão de São Félix, acolheu mais do que um grupo de peregrinos e penitentes: acolheu o amplo significado histórico de sua fé. Não poucas vezes, nas horas de maior opressão e terror, nas margens do Araguaia, do Mato Grosso e Goiás ao Pará, a bandeira vermelha do Divino tremulou como um sinal de esperança e de identidade nacional.
Que latifundiários e agentes da repressão confundiram com um símbolo de comunismo e subversão. Não é estranho, portanto, que esse mesmo bispo tenha se empenhado em dar um rosto brasileiro a santos da Igreja, como já fizera com os símbolos de sua investidura episcopal: quando constatou que uma das devoções fortes do povo do sertão, em virtude da acentuada presença de migrantes nordestinos na região, era a devoção de São Raimundo Nonato, mandou esculpir uma imagem desse santo com o rosto de um sertanejo piauiense da Prelazia para colocá-la numa das igrejas.
As Folias do Divino vêm das concepções do monge cisterciense calabrês Joaquim Da Fiore, do século XII, que propôs uma releitura da Bíblia e a descoberta ali dos três testamentos e das três eras: a era do Pai, a era do Filho e a era do Espírito. Joaquim é tido como um dos pais da moderna concepção triádica de História. É citado por Augusto Comte e influenciou Hegel. Criou o que se poderia chamar de dialética popular da História. Em sua História da Ideia de Progresso, o sociólogo americano Robert Nisbet assinala, apropriadamente, a importância de Joaquim na formação do moderno pensamento sociológico. Gestou duas referências: as bases da moderna concepção de História e as bases de um culto popular que foi, e ainda é, considerado por muitos como herético, porque anuncia o tempo novo da redenção dos pobres da terra, o tempo da alegria e da fartura, da justiça e da liberdade. Dom Pedro, ao abrir as portas da Igreja para a Folia do Divino que vinha do sertão de São Félix, acolheu mais do que um grupo de peregrinos e penitentes: acolheu o amplo significado histórico de sua fé. Não poucas vezes, nas horas de maior opressão e terror, nas margens do Araguaia, do Mato Grosso e Goiás ao Pará, a bandeira vermelha do Divino tremulou como um sinal de esperança e de identidade nacional.
Que latifundiários e agentes da repressão confundiram com um símbolo de comunismo e subversão. Não é estranho, portanto, que esse mesmo bispo tenha se empenhado em dar um rosto brasileiro a santos da Igreja, como já fizera com os símbolos de sua investidura episcopal: quando constatou que uma das devoções fortes do povo do sertão, em virtude da acentuada presença de migrantes nordestinos na região, era a devoção de São Raimundo Nonato, mandou esculpir uma imagem desse santo com o rosto de um sertanejo piauiense da Prelazia para colocá-la numa das igrejas.
Muitos desses sertanejos chegaram às margens do Araguaia levados por traficantes de mão-de-obra que os recrutavam no Nordeste para depois vendê-los às grandes fazendas que estavam sendo abertas no norte-mato-grossense nos anos setenta e nos anos oitenta, à custa de trabalho escravo e do terror de surras e assassinato dos que tentavam escapar.
Uma das denúncias fundamentadas mais contundentes da carta pastoral de 1971 foi justamente a do trabalho escravo. Estima-se que cerca de quatrocentos mil trabalhadores escravizados foram confinados nas novas fazendas da região para fazer o desmatamento e semear as pastagens com dinheiro dos incentivos fiscais do governo brasileiro. Muitos morreram de malária, sem assistência, no meio da mata.
Muitos foram assassinados porque tentaram fugir ou porque exigiram que cessasse seu cativeiro. Poucos escaparam e foi com base em seus testemunhos que Dom Pedro fundamentou um dossiê em que pela primeira vez no país essa barbárie moderna foi denunciada não como fato folclórico, mas como grave problema social e político. Desde então, instituiu-se uma verdadeira rede de vigilância e denúncia da escravidão por dívida no Brasil. Foi o que levou um governante, o atual presidente da República, Professor Fernando Henrique Cardoso, nos primeiros meses de seu primeiro governo, a reconhecer publicamente, pela primeira vez desde a Lei Áurea, que a escravidão persistia e persiste.
Em conseqüência do que criou o GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, um grupo de ação com poderes especiais para pôr fim ao trabalho escravo e à escravidão por dívida no Brasil, a chamada peonagem.
Uma das denúncias fundamentadas mais contundentes da carta pastoral de 1971 foi justamente a do trabalho escravo. Estima-se que cerca de quatrocentos mil trabalhadores escravizados foram confinados nas novas fazendas da região para fazer o desmatamento e semear as pastagens com dinheiro dos incentivos fiscais do governo brasileiro. Muitos morreram de malária, sem assistência, no meio da mata.
Muitos foram assassinados porque tentaram fugir ou porque exigiram que cessasse seu cativeiro. Poucos escaparam e foi com base em seus testemunhos que Dom Pedro fundamentou um dossiê em que pela primeira vez no país essa barbárie moderna foi denunciada não como fato folclórico, mas como grave problema social e político. Desde então, instituiu-se uma verdadeira rede de vigilância e denúncia da escravidão por dívida no Brasil. Foi o que levou um governante, o atual presidente da República, Professor Fernando Henrique Cardoso, nos primeiros meses de seu primeiro governo, a reconhecer publicamente, pela primeira vez desde a Lei Áurea, que a escravidão persistia e persiste.
Em conseqüência do que criou o GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, um grupo de ação com poderes especiais para pôr fim ao trabalho escravo e à escravidão por dívida no Brasil, a chamada peonagem.
Tribos indígenas sobreviveram no longo momento de adversidade, que foi o da ditadura e da expansão da frente pioneira com base em poderosos incentivos fiscais, graças à pastoral da missão encarnada de Dom Pedro, a missão vivenciada na identidade profunda e participativa com a vítima, um momento em que o próprio órgão destinado a tutelar os povos indígenas tornou-se cúmplice do confinamento e da expulsão. Lembro os que me vem à cabeça: os Tapirapé, os Karajá, os Kayapó, os Xavante. Apenas na aldeia Tapirapé existiu, porque já existia há muito, uma missão católica, em grande parte para assegurar a sobrevivência desse frágil povo de agricultores em face das guerras contra ele declaradas pelos inimigos históricos, os Kayapó.
Índios tupi fugitivos, ao que tudo indica, do litoral maranhense desde o século XVI, em conseqüência da perseguição dos brancos, buscando as cabeceiras dos rios, acabaram no meio de um território de índios de língua Jê, ferozes inimigos dos de fala tupi. Fragilizados, tornaram-se mais frágeis ainda em face do avanço da frente de expansão e da própria atribuição de suas terras a um grupo empresarial beneficiado pelos incentivos fiscais do governo federal.
Foi uma dura luta contra grandes empresas e contra o próprio governo para assegurar que esses vários grupos tivessem reconhecido o seu direito aos territórios que ocupavam.
Índios tupi fugitivos, ao que tudo indica, do litoral maranhense desde o século XVI, em conseqüência da perseguição dos brancos, buscando as cabeceiras dos rios, acabaram no meio de um território de índios de língua Jê, ferozes inimigos dos de fala tupi. Fragilizados, tornaram-se mais frágeis ainda em face do avanço da frente de expansão e da própria atribuição de suas terras a um grupo empresarial beneficiado pelos incentivos fiscais do governo federal.
Foi uma dura luta contra grandes empresas e contra o próprio governo para assegurar que esses vários grupos tivessem reconhecido o seu direito aos territórios que ocupavam.
Dom Pedro é um missionário da cidadania: desde que chegou ao Brasil (esqueci de dizer: ele é espanhol de nascimento), enfrentou quase que sozinho poderes imensos: o do Estado ditatorial, o dos grandes grupos econômicos e o da própria Igreja. Pois, mesmo na Igreja foi denunciado por um colega bispo e em conseqüência investigado a pedido da Cúria Romana. São Félix do Araguaia, que nem município era quando o Padre Pedro ali chegou, acompanhado do Irmão Manoel, que depois seria ordenado padre, no início da década de setenta, sendo apenas um paupérrimo povoado, se transformou numa cidade moderna, com luz elétrica, hospital, escolas, estação de rádio, aeroporto e vôos diários para Brasília, Goiânia e Belém.
Quando foi designado por sua congregação religiosa, a dos Padres Claterianos, para abrir uma missão no Araguaia, a primeira providência que tomou foi recrutar em Campinas jovens universitários que quisessem se tornar educadores numa região miserável e abandonada. Conseguiu organizar uma heróica equipe de agentes de pastoral que fundou o primeiro ginásio do norte do Mato Grosso. Justamente, o primeiro objeto da repressão de militares e policiais, sob argumento de que eram subversivos. Professores e alunos foram presos e torturados, padres e bispo confinados em suas casas, interrogados sob suspeita de serem agentes subversivos.
Eles estavam envolvidos na bela e necessária subversão da ignorância, na profética missão de difundir o conhecimento e o saber numa região em que havia moradores que nem sabiam que ali era Brasil: ouvi, certa vez, o lamento de uma velha índia da aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, quase chorando dizer-me que seu filho se casara com uma brasileira e tinha ido embora para o Brasil, apontando São Félix do Araguaia, do outro lado do rio.
A educação e a escola foram a grande luta de Dom Pedro nas terras do Araguaia, escola laica, transferida para o governo do Estado e a prefeitura tão logo houve condições para fazê-lo. No velho grupo escolar, que é hoje um centro social da Prelazia, uma comovente biblioteca há muito embala sonhos e distribui conhecimento aos moradores, sonhos de profeta da brasilidade em terras da América, trazidos por esse poeta que decidiu viver aqui a sua vocação missionária numa época em que a América Latina se dilacerava entre a ditadura e a revolução.
Eles estavam envolvidos na bela e necessária subversão da ignorância, na profética missão de difundir o conhecimento e o saber numa região em que havia moradores que nem sabiam que ali era Brasil: ouvi, certa vez, o lamento de uma velha índia da aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, quase chorando dizer-me que seu filho se casara com uma brasileira e tinha ido embora para o Brasil, apontando São Félix do Araguaia, do outro lado do rio.
A educação e a escola foram a grande luta de Dom Pedro nas terras do Araguaia, escola laica, transferida para o governo do Estado e a prefeitura tão logo houve condições para fazê-lo. No velho grupo escolar, que é hoje um centro social da Prelazia, uma comovente biblioteca há muito embala sonhos e distribui conhecimento aos moradores, sonhos de profeta da brasilidade em terras da América, trazidos por esse poeta que decidiu viver aqui a sua vocação missionária numa época em que a América Latina se dilacerava entre a ditadura e a revolução.
A concessão do título de Doutor Honoris Causa a Dom Pedro Casaldáliga pela UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, seria mais do que um merecido título acadêmico: seria um verdadeiro reconhecimento de cidadania desse sacerdote que se fez brasileiro com base numa extraordinária devoção pessoal aos desvalidos de nossa terra, privando-se de todos os privilégios de um príncipe da Igreja para, no testemunho pessoal e cotidiano, convidá-los ao ingresso no mundo moderno como sal da terra, como agentes da utopia e das promessas da civilização. O testemunho de um profeta da libertação do homem de suas carências e misérias, uma forma de dar à missão cristã a dimensão de um ato histórico emancipador e irreversível.
São Paulo, 4 de janeiro de 2000.
Professor Dr. José de Souza Martins
Professor Titular do Departamento de Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.
Professor Titular da Cátedra Simón Bolivar da
Universidade de Cambridge (Inglaterra),
no ano acadêmico de 1993/94
e fellow de Trinity Hall
e fellow de Trinity Hall