Charles de Foucauld: o fracasso e o deserto
“Charles de Foucauld é um dos melhores ícones do fracasso, porque preferiu os últimos postos
aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à exaltação. Por tudo isso, Foucauld é essa imagem na qual todos os fracassados da história podem se reconhecer. E por tudo isso vejo, muitas vezes, as pessoas do mundo caminhando em uma direção e Foucauld na contrária. Mas não é o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro dessa fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos”, escreve Pablo d’Ors, sacerdote, escritor e conselheiro cultural do Vaticano.
aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à exaltação. Por tudo isso, Foucauld é essa imagem na qual todos os fracassados da história podem se reconhecer. E por tudo isso vejo, muitas vezes, as pessoas do mundo caminhando em uma direção e Foucauld na contrária. Mas não é o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro dessa fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos”, escreve Pablo d’Ors, sacerdote, escritor e conselheiro cultural do Vaticano.
Charles de Foucauld é um padre do deserto contemporâneo. Sua vida e obra, que bebem da espiritualidade de figuras da estatura de Agostinho, Bento, Francisco e Inácio, remontam aos padres do ermo que povoaram os desertos da Síria e do Egito durante os primeiros séculos do cristianismo. Para entender Foucauld em sua verdadeira dimensão, há que irmaná-lo com Dionísio, o Areopagita e Efrém da Síria, com Isaías, o Anacoreta ou Gregório de Nazianzeno. A fonte da qual beberam estes padres do deserto e que mais tarde concretizaria o movimento hesicasta foi à mesma da qual o irmão Charles também bebeu, cuja missão –essa é minha tese – não foi a de fundar algo radicalmente novo, mas a de inaugurar para o Ocidente um caminho contemplativo que havia ficado no Oriente cristão, em particular na república monástica do monte Athos. No meu modo de ver, Foucauld recebeu a colossal tarefa de recuperar essa milenar tradição de sabedoria e de atualizá-la. Por isso mesmo, sua obra não fez mais que começar.
Deserto
Foucauld se converteu na África do Norte, admirando a extraordinária religiosidade dos muçulmanos. Entendeu o deserto primeiramente em forma de metáfora, daí que buscava ser monge, inicialmente, em Ardèche, e depois em Akbès e até na Terra Santa; mas depois voltou ao deserto do Saara, o de sua juventude, a seu amado Marrocos e a sua desejada Argélia. E era ali que o destino e a providência lhe esperavam. Talvez porque poucas localidades da terra, ao estar tão desoladas, podem evocar e remeter com tanta força ao mundo interior. Foucauld é um sinal permanente de como sem deserto e purificação não há caminho espiritual.
Adoração
Em meio a esse deserto, Foucauld adora. Esta é uma palavra que hoje nos é estranha, mas adoração significa, pura e simplesmente, que o homem não se realiza pela via do ego, mas saindo do próprio micromundo e superando essa tendência tão nefasta como generalizada à apropriação e autoafirmação. Adoração quer dizer tão somente deixar de viver a partir do pequeno eu para dar passo rumo ao eu profundo, onde mora o hóspede divino. Saibam ou não, todos os que buscam o mistério por meio da meditação tem - temos - em Charles de Foucauld um mestre insigne. Amou muito porque silenciou muito. Falamos dele porque se esvaziou de si.
O amor a Jesus de Nazaré
A vida deste homem foi totalmente rara. Foucauld não se parece com ninguém. Dizia de si, segundo as épocas, que queria ser monge ou eremita, mas o certo é que viajou muitíssimo, que passou por diferentes lugares, que foi um peregrino estrutural. Na história, poucos homens como Foucauld deixaram um testemunho escrito tão eloquente de seu apaixonado amor por Jesus de Nazaré. O nome de Jesus, como um incansável mantra, acompanhou Foucauld durante quase todos os minutos de sua vida. Só há uma palavra que explica a incrível aventura humana de Foucauld: Jesus.
Fracasso
Ao término de sua vida, pouco antes de ser assassinado, Foucauld se encontra com as mãos felizmente vazias. Seria possível dizer que ao longo de sua existência colheu um fracasso após outro: foi o último de sua promoção no Exército, do qual, repetidas vezes, esteve a ponto de ser expulso por seus escândalos e indisciplina. Fracassou também como patriota e abortou sua vocação de explorador, desperdiçando uma brilhante carreira profissional. Monge fracassado da trapa de Heikh. Fracassado também em seu quimérico projeto de adquirir o monte das Bem-aventuranças para se instalar ali como eremita. Nenhuma só conversão após anos de apostolado. Nenhum só seguidor após ter redigido tantos esboços de uma regra para seus projetados eremitas. Ignorado pela administração civil e pela eclesiástica, nenhum escravo redimido, nenhum companheiro para sua missão...
Foucauld é um dos melhores ícones do fracasso, porque preferiu os últimos postos aos primeiros, a vida oculta à pública, a humilhação à exaltação. Por tudo isso, Foucauld é essa imagem na qual todos os fracassados da história podem se reconhecer. E por tudo isso vejo, muitas vezes, as pessoas do mundo caminhando em uma direção e Foucauld na contrária. Mas não é o único; há outros com ele, todos solitários, todos loucos. E o primeiro dessa fila é o próprio Jesus Cristo, o mais louco de todos.
“Mas é somente no fracasso que se pode pensar a imitação de Cristo, do messias que morreu na cruz como um malfeitor”, afirma a historiadora italiana Lucetta Scaraffia, professora da Universidade de Roma “La Sapienza”.
Fracasso
Nem todo fracasso é um fiasco.
Nem toda fraqueza é moleza.
Nem toda derrota é bancarrota.
Nem toda desilusão é perdição.
Nem toda traição é escuridão.
Nem toda solidão é em vão.
Nem toda humilhação é exclusão.
Nem toda intuição é sem conclusão.
Nem toda intensidade é o tempo da vontade de Deus.
(Inácio José do Vale)
A existência tem enigmas e a vida de fé mistérios. Vai além da razão humana os desígnios de Deus. O ser humano propõe e Deus dispõe. Nem todos os projetos são realizáveis, no entanto, fica algo de lição. No plano da imanência muitas coisas podem ser feitas, já no plano transcendental já estão feitas. A concretização dos fatos é apenas a permissividade de Deus. O mais importante no ser humano é sonhar, buscar, sair de si, aventurar, fazer as coisas com amor e paixão e ter consciência que tudo pode acontecer... Primeiro o reino de Deus, amar o próximo e aguardar os encantos de Deus. Em tudo isso Charles de Foucauld foi discípulo exemplar.
Inácio José do Vale
Fontes:
Foucauld, Charles de. Meditações sobre o evangelho. Lisboa: círculo do humanismo cristão, 1962.
Annie de Jésus. Charles de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré. Vargem Grande Paulista, SP: Editora Cidade Nova, 2004.