Dona Maria levantou-se às 4 horas da madrugada, fez o almoço (arroz e feijão sem mais nada), trancou a porta com os seus três filhos dentro de casa: Roberto, de 4 anos, José, de 5 anos e meio, Lúcia de 12 anos.
Às 5:30 horas tomou o ônibus para a cidade, outro ônibus para um bairro chique e às 7 horas já estava na casa da mansão de Dona Kiki, onde trabalha como cozinheira. Fez o café, preparou o suco de tomate para D. Kiki, o suco de maracujá para Flavinha, de 8 anos, e foi comprar pão e leite. Na volta, terminou de preparar o desjejum: bacon, presunto, queiro, ovos e outras pequenas coisas.
Às 5:30 horas tomou o ônibus para a cidade, outro ônibus para um bairro chique e às 7 horas já estava na casa da mansão de Dona Kiki, onde trabalha como cozinheira. Fez o café, preparou o suco de tomate para D. Kiki, o suco de maracujá para Flavinha, de 8 anos, e foi comprar pão e leite. Na volta, terminou de preparar o desjejum: bacon, presunto, queiro, ovos e outras pequenas coisas.
Às 8:30 horas todos os membros da família já estavam sentados à mesa: além dos já citados, Sr. Jonas e o outro filho, Júnior, de 10 anos. Enquanto tomavam o café, D. Maria pensou em seus filhos: como estariam? Teriam tomado o café sem mais nada que ela preparara?
Naquele exato momento, Lúcia já tinha dado um jeito de ir para a rua, seguida de José e Roberto. Iriam ficar fora por horas e horas, até que a mãe voltasse. Ficariam brincando, ou simplesmente ouvindo besteiras de outros colegas, que também lhes ensinavam malandragens.
O pensamento de D. Maria foi interrompido por Júnior, que gritava por estar muito cozido o ovo. D. Maria, pacientemente, esquentou outro ovo para ele.
Meia-hora depois, não havia mais ninguém da família em casa: D. Kiki foi levar os filhos à escola, e o Sr. Jonas foi para o trabalho em sua indústria. Após deixar os filhos na escola, D. Kiki aproveitou para fazer as unhas e arranjar o cabelo numa cabelereira. Saindo dali, passou na casa de D. Friscotti, a fim de fofocarem sobre as últimas da sociedade.
Às 12 horas o almoço foi servido: arroz à grega, filé "mignon", salada mista, frutas, doces e outras coisas desse tipo, regado a vinho importado e suco de frutas naturais.
Em casa de D. Maria, as crianças já voltaram da rua, sujos e suados, e almoçavam: Lúcia, que era maiorzinha, mexia o feijão, que esquentava. Arroz e feijão. Toda a comida que possuíam. E, graças a Deus, naquele mês dera para comprar o feijão. Muitas vezes só comem arroz sem mais nada.
Após servir à mesa, D. Maria deixou a limpeza para a arrumadeira e foi preparar a ração para os cães de raça: um quilo de alcatra, misturada no arroz e ração especial e um preparado vitamínico.
Após o almoço, D. Kiki foi tirar uma soneca. Como estava cansada! Acordou às 15 horas a fim de ir a uma reunião das damas de caridade. Estavam preparando um chá beneficente. Iria render uma certa quantia, mas com o desfile de modas, as despesas seriam o dobro disso. Mas como iria servir bem esse tanto que renderia! Dona Custódia, a beneficiada, teria condições de tratar bem do seu departamento na sociedade protetora dos animais. Os animaizinhos não iriam mais ficar abandonados. Como S. Francisco iria ficar contente, lá no céu, com isso!
Oito horas da noite, D. Maria chegou em casa, cansada, e ainda teve de arrumar a cozinha, fez uma pequena limpeza na casa, deu banho nos três filhos e foi dormir, fatigada, em meio a uma nuvem de pernilongos e quase uma dúzia de baratas provindas do córrego próximo à casa.
Na mansão, D. Kiki e o Sr. Jonas, acompanhados dos dois filhos, assistiam a um lindo filme já antigo, no cinema particular da mansão: "Irmão sol, irmã lua", do Zeffirelli. D. Kiki, chorando ainda pelo final do filme, prometeu que no dia seguinte iria comentá-lo com o Pe. Eustáquio, que lhe faria uma visita para receber uma pequena contribuição para a construção da igreja do bairro.
Diante desse quadro, que é até pior, muitas vezes, no dia a dia desta sociedade tão desiquilibrada nossa, o que nós, Igreja, estamos realmente fazendo? A quem daremos preferência em nosso trabalho pastoral? Será que o Pe. Eustáquio chegou a conversar, algum dia, com D. Maria, a respeito de seus problemas? Ou não se importou por ser ela de outra paróquia?
Certa vez um padre amigo meu, de paróquia lá da periferia "braba" de S. Paulo, da região leste, que precisava fazer um bico para completar o seu salário, já que a paróquia tinha uma entrada financeira tão pequena que nem dava para lhe pagar o suficiente, foi visitar um seu colega se seminário e de ordenação, numa paróquia chique da região norte.
Chegando lá, depois desta ou daquela conversa, o padre chique, seu colega, lhe mostrou sua preocupação e angústia porque precisavam trocar o órgão velho porque estava começando a dar problemas, e o piso da igreja, que já havia quatro anos que não trocavam. O meu amigo falou de sua situação, e o padre chique se condoeu, se lamentou, mas não ofereceu ajuda alguma. Ele precisava conseguir o dinheiro suficiente para o órgão e o piso novo...
Pois bem: D. Maria vê o mundo com os olhos bem diferentes que D. Kiki. Nesse sentido, podemos dizer que a ação leva à idéia. Modos diferentes de vida produzem também idéias diferentes a respeito do mundo em que vivemos. Se eu vivo como pobre, vou ver o mundo pelo lado dos pobres; se eu vivo uma vida burguesa, vou ver o mundo pelo lado dos ricos! Isso é uma coisa tão óbvia, mas que é muitas vezes esquecida.
Foi pensando nisso e em problemas parecidos que os bispos, reunidos em Medellin e depois em Puebla, proclamaram sua Opção Preferencial pelos Pobres. Se eu moro numa mansão e tenho um carro de luxo à porta, não vou agir e pensar da mesma forma que se eu morasse numa favela e passasse fome, tendo de lutar para a própria subsistência.
Jesus Cristo escolheu viver pobre, e isso já basta para que nós demos valor à pessoa do pobre, antes mesmo de olharmos à sua vida moral e pessoal (Puebla).
Se, vivendo longe do pobre e numa vida burguesa, corremos o risco de nos ausentarmos também do Cristo, que foi pobre, por outro lado, viver no meio dos pobres, e como um pobre, pode nos levar a um comodismo também culposo: amordaçamos a boca do pobre, abafamos o seu grito de angústia e libertação.
Os poderosos vão nos visitar, pois estamos servindo direitinho os seus propósitos de alienação. Acomodarmo-nos à pobreza dos pobres, que são pobres justamente porque são últimos, e são últimos justamente porque são rejeitados, é como certos leões velhos que se deixam acariciar e levar a passeio com a corrente: é pobreza doméstica do tipo que não é mais grito, lamento, nem protesto. A pobreza tornou-se sorriso, alegria aparente, que não se parece nem de sombra com a verdadeira paz (Arturo Paoli).
Nossa opção preferencial pelos pobres, portanto, tem vários passos:
1- Esforçar-se por conhecer os mecanismos geradores desta pobreza e denunciá-los;
2- Sentir-se comprometido com os pobres, condenando a extrema pobreza reinante no nosso continente, como anti-evangélica;
3- Unir-se a outras Igrejas e a todos os homens de boa vontade, para desarraigar essa pobreza e criar um mundo mais justo e fraterno;
4- Viver um estilo de vida mais austero e uma total confiança no Senhor, por parte na Igreja, que conta com o SER e o poder de Deus e de sua Graça, mais do que com o TER MAIS e com o poder secular (Puebla).
É incrível como nós, cristãos, cometemos erros terríveis na escolha de nossas prioridades. Quanto tempo desperdiçado, jogado fora, em reuniões estéreis, preocupações mesquinhas e individualistas, tempo perdido em pequenos desejos de vingança ou revanche, demasiado empenho em manter nossas posições sociais, nossas "dignidades" inatingíveis, justificando nossos erros mais infantis! Muitas vezes um desesperado modo de agir, querendo fazer coisas a qualquer custo, mesmo queimando outras pessoas, como se Deus não existisse! Como se Deus não fosse misericordioso! Como se Deus não fosse onipotente!
Ser pobre, antes de tudo, é saber jogar-se nas mãos de Deus como a criança faz com seu pai; é lutar por um mundo melhor, com todas as forças e recursos possíveis e imagináveis de nossa fraqueza humana, mas sempre tendo nossas raízes em Deus, que é a fonte de todo bem, o tesouro inesgotável de todas as graças.
Nossa luta, mesmo que desagrade os poderosos, deve ser levada adiante, com muita paciência, com muito empenho, sem desânimo, sem violência, em grande fraternidade e compreensão mútua, até que, um dia, "Deus seja tudo em todos" (S. Paulo).
E diz Santo Agostinho, completando essa frase: "No dia em que Deus for tudo em todos, não haverá mais desejos, pois Deus é tudo o que uma pessoa pode desejar". (texto escrito por um padre amigo meu, publicado numa revista extinta, "Comunhão e Participação", dezembro de 1984, págs. 19 e 20).