DIÁRIO DO IR. GUIDO - DEZEMBRO DE 1985
Um pequeno histórico da Fraternidade de Santo André (SP)
A primeira saída da Fraternidade de Santo André foi com o Francisco, quando voltou do deserto, no ano 1976, e decidiu, com Joseph Teufelberger, [outro irmão] começar uma Fraternidade em João Pessoa.
Aliás, Marcos já tinha ido por sua vez, antes. Mais tarde, no ano 1980, foi a vez de Remy e Serafim deixar Santo André para morar numa favela de São Bernardo, uma cidade vizinha. A partir daí me foi pedido de viver sozinho nessa grande fraternidade de quatro cômodos, que Francisco havia aberta em 1962, com Roland Desmaret.
Aliás, Marcos já tinha ido por sua vez, antes. Mais tarde, no ano 1980, foi a vez de Remy e Serafim deixar Santo André para morar numa favela de São Bernardo, uma cidade vizinha. A partir daí me foi pedido de viver sozinho nessa grande fraternidade de quatro cômodos, que Francisco havia aberta em 1962, com Roland Desmaret.
Quando estava para vir ao Brasil, em 1963, me foi pedido se eventualmente aceitaria ser ordenado. Era, nessa época, uma condição para vir ao Brasil, porque os irmãos precisavam de um irmão sacerdote. Agora, parece que as necessidades são diferentes e é por isso que eu me encontro sozinho e investido do sacerdócio. Frente a isso, necessito um pouco de humor!
Uma vez sozinho, a primeira coisa foi dividir o alojamento com uma família amiga, que até hoje está aqui com suas três crianças. Eles me foram um apoio muito grande. No ano passado Adalberto, chefe da família, foi passar suas férias na fraternidade do Paraguai. No próximo mês pensam me deixar porque conseguiram comprar uma casa, graças às economias que conseguiram fazer durante o tempo que passamos juntos. Uma outra família amiga, com duas crianças, vai passar a ocupar a casa.
Faz um ano está vivendo comigo um jovem de 25 anos, Auri, que depois de ter passado dois anos em Fraternidade, no Paraguai e na Paraíba, decidiu nos deixar e tomar outro rumo. Desejando continuar seus estudos de teologia em São Paulo, pediu-me para ficar comigo.
Outro jovem, Paulo, que está vivendo há quase um ano na fraternidade do Paraguai, está para vir em fevereiro para se juntar conosco. A Providência tem seu jeito de resolver as coisas, mas tudo isso é para lhes dizer que a fraternidade de Santo André é um pouco o endereço oficial para correspondência. Depois, segundo os casos, esses jovens são orientados, ou não, para João Pessoa ou Paraguai. Santo André é também muito mais acessível do ponto de vista das comunicações, por causa da proximidade com São Paulo.
Os Irmãos da favela de São Bernardo preferem não receber visitas, devido a particularidades do meio em que vivem. Por esse motivo, há mais de dois anos que não tenho ido lá. Eles vêm a Santo André. O telefone facilita também muitas coisas. Foi com Adalberto que o tínhamos comprado em conjunto. Isso me foi bem útil para evitar o isolamento e também devido ao meu novo engajamento, sobre o qual lhes falarei mais à frente.
Há quase quatro anos, durante a crise industrial, me encontrei, com muitos outros, desempregado, na idade de 52 anos. Precisei, então, durante quase dois anos, viver de “bicos” e soluções alternativas. Primeiro, foi junto com um grupo de amigos, também desempregados, que com uma pequena ajuda financeira da Holanda, abrimos uma oficina eletrônica (fabricação de interruptores com circuito integrado). Mas isso não foi muito longe, devido à nossa falta de experiência no ramo, mesmo com a supervisão de um amigo engenheiro, mas, sobretudo, pela falta de responsabilidade dos cooperantes.
O projeto era criar uma espécie de cooperativa de produção. Foi imposta uma disciplina de horário e de trabalho. Trabalho sem patrão ou chefe não é para qualquer um. Mais tarde, apoiado por outros amigos, abri um curso de traçagem de caldeiraria. Isso durou quase dois anos. Esse trabalho tinha o objetivo de me dar um pequeno salário, deixando-me em contato com meu antigo meio operário.
Nessa época, um acontecimento imprevisto começou a mudar completamente minha orientação: foi a prisão de um vizinho que estava na Fraternidade quando a polícia veio buscá-lo: era condenado a três anos de manicômio judiciário (por medida de “segurança”) sem o saber, por um delito cometido havia sete anos. Foi quase um ano de luta e trâmites para libertá-lo da cadeia, onde eu ia com a família visitá-lo regularmente. Foi nessa ocasião que entrei em contato com o movimento de defesa dos direitos humanos, e especialmente, com o padre Agostinho, membro de diversas comissões, e bem conhecido no Brasil, primeiro, por sua coragem em defender os presos; em segundo lugar, por ter tido a coragem de denunciar o “esquadrão da morte” durante a época da repressão política.
Com a mudança do governo e com o fim da ditadura militar chegaram, há quase dois anos, na direção do Secretariado da Justiça e da Segurança do Estado de São Paulo, homens ligados diretamente ou indiretamente aos movimentos de “Justiça e Paz” e com Comissão de Defesa dos Direitos Humanos. Assim foi nomeado Secretário da Justiça do Estado o advogado que compareceu comigo na polícia política [DOPS], quando havia sido convocado para interrogatório. Por outro lado, padre Agostinho fora convidado a integrar a direção da FEBEM, Fundação do Bem Estar do Menor, para ajudar a mudar completamente sua ideologia e seus métodos.
A FEBEM é um organismo do Estado, totalmente laico, onde são internados três tipos de jovens:
-os “abandonados”, que não têm pai nem mãe, ou cujos pais perderam a tutela;
-os ”infratores” (aqui no Brasil se evita a palavra “delinquentes” para os menores);
- e, enfim, aquelas crianças cujos pais, não tendo condições de sustenta-los, as confiam à FEBEM. São os carentes.
No geral, os “carentes” acabam sendo abandonados pelos pais depois de um certo tempo na FEBEM. Aqui no Estado são 100.000 os assistidos pela FEBEM: 80% deles pertencem à terceira categoria; outros 10%, a cada outra categoria (abandonados e infratores).
A FEBEM recebe uma média de 130 menores cada dia em São Paulo. Deles, 80% são liberados no dia seguinte. É nessa FEBEM que estou trabalhando há mais de um ano. Mas, antes de lhes falar disso, preciso situar esse tipo de trabalho em nosso contexto atual. Isso vai estender o meu diário, mas creio que seja importante para ajudar a compreender o lugar de um irmão nesse meio, especialmente agora e aqui no Brasil.
NOSSO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA
É daquele que Serafim já fazia alusão no seu último diário: a violência social-econômica. Mas gostaria de sublinhar como os jovens no Brasil são, pelo menos do ponto de vista do número, os que sofrem mais esse tipo de violência, e de que maneira tentam responder para poder sobreviver. Penso que algumas cifras que consegui falarão por elas mesmas. Não são generalidades, mas sim, dados oficiais, precisos e brutais, que vocês poderão interpretar como melhor lhes parecer.
A população total do Brasil está em torno de 138 milhões de habitantes. Trinta e quatro a trinta e seis milhões são os jovens de 0 a 18 anos, que vivem em estado de carência e marginalização. Por exemplo, em São Bernardo, uma das cidades mais ricas, com uma população de 600mil habitantes, 250 mil tem de 0 a 19 anos de idade. Dentro destes últimos, 80 mil jovens vivem em total carência e por isso estão em vias de marginalização.
Em Diadema, cidade vizinha, onde trabalho atualmente, 120 mil jovens vivem esse estado de carência, o que corresponde a mais de um terço da população da cidade. Somente no Estado de São Paulo, quatro milhões de crianças (60% em São Paulo mesmo) não têm família e estão na rua ou recolhidos em instituições.
A MORTALIDADE INFANTIL
A média, para o Brasil inteiro, é de 80 por 1000, que morrem antes de completar um ano de idade, contra 7 no Japão, 12 na França e 17 em Portugal. Em São Paulo, morrem por 1000 nascimentos 68 crianças antes de completarem um ano de idade. No Nordeste, a proporção é de 250 óbitos por 1000 nascimentos. Cada três minutos, morre uma criança de fome no Brasil.
FALTA DE EDUCAÇÃO
Dez milhões de crianças não recebem nenhuma espécie de educação escolar, por falta de escola, ou logo deixam, por necessidade de sobrevivência e ajudarem a família. O ministro de educação acaba de denunciar que no Brasil, hoje, temos 4.180.000 crianças d 7 a 14 anos sem escola e 3.911.000 outros que foram matriculados mas não sabem ler nem escrever.
FALTA DE TRABALHO
O menor é utilizado, explorado, como mão de obra barata e nas piores condições. Dos 9 milhões de crianças que trabalham no Brasil, 7,5 milhões trabalham no campo por salário irrisório. A crise econômica atingiu também o jovem que trabalhava na cidade. Em 1980, havia no Estado de São Paulo 420.956 menores empregados legalmente. Em 1983, sobravam 143.367.A saber também que há mais de um milhão de nascimentos a cada ano no Brasil.
FALTA DE HABITAÇÃO
Há 3,5 milhões de menores em São Paulo. Na periferia existe 550 favelas onde vivem um milhão e 800 mil pessoas, em condições muitas vezes infra-humanas (estes dados são do ano de 1982. O crescimento do número de favelas em São Paulo é de aproximadamente 30% por ano). Somente nestas favelas viviam, em 1982, 500 mil crianças. Há na delegacia dos menores de São Paulo uma média de 500 queixas de desaparecimento de menor por mês.
A RESPOSTA VIOLENTA DO JOVEM
No ano de 1965 havia, no Brasil, 10 mil menores infratores. Hoje, o número é superior a 210 mil. Para se defender do desprezo e da rejeição com os quais a sociedade os tratam, eles agem como podem. Eles têm uma participação de 60% nos assaltos de mão armada em São Paulo. Cada dia, em S. Paulo, temos uma média de 70 ações criminais com a participação de menores. Nessa mesma cidade, temos um total de 10 mil menores na rua com um potencial de 10 mil armas (no parecer da polícia).
Foram presos e levados à FEBEM de São Paulo: em 1977, 3898 menores; em 1978, 4914 menores; em 1980, 8.000 menores; em 1981 11.000 menores e no ano de 1985, a avaliação é de 50.000 menores, entre os quais 10.000 por assaltos à mão armada, 30.000 por roubo, 7.000 por tóxico e 1.500 por participação em homicídio. A violência e a criminalidade são estimuladas pela fome e necessidade de viver, mas também pela total falta de afeição. A degradação das famílias por motivo do desemprego e da miséria, é também uma das causas principais.
Há também o problema da DROGA, principalmente da maconha, droga mais comum e mais barata. Dos 260 mil menores que passaram pela FEBEM de São Paulo durante esses cinco últimos anos, 53% deles já eram viciados. Para aguentar esse tipo de vida que levam nas ruas, o jovem faz apelo à droga. Ela ajuda a lhes dar coragem para superarem o medo do risco de que está carregado cada ato delituoso, ajuda-os a enfrentar a polícia.
Conheci um jovem que estava na FEBEM por ter assaltado uma delegacia de polícia com outros jovens, onde roubaram 22 revólveres. Gerados por um sistema injusto e pela miséria, esses jovens se organizam em quadrilhas. Somente em São Paulo haveria mais de 1.200 dessas quadrilhas, e no Rio, mais de 2000. É a fase do desespero: “Quando estamos no meio da rua, sabemos que estamos no meio de uma guerra: se não matamos, morremos”, declara um jovem que demonstra a dura realidade. A violência encontra na rua uma escalada que aumenta proporcionalmente em relação à repressão e à miséria. Quando a sociedade defende como valor fundamental a acumulação de bens e o consumo desenfreado, como acusar de erro e tentar convencer disso um jovem que deseja enriquecer-se rapidamente pelo roubo?
É a hipocrisia da nossa sociedade, que começa a pensar no problema dos jovens, justamente quando eles começam a ameaçá-la em sua segurança. Por isso, em vez de querer tomar o problema pelas causas, por exemplo promovendo reformas sociais-econômicas radicais, essa sociedade somente pensa resolver o problema pela repressão e pela violência policiais.
Atualmente muita gente está pedindo a pena de morte e a mudança do código penal do menor, pedindo que ele seja responsável pelos seus atos (somente do ponto de vista penal), desde a idade de 16 anos. Cada dia esse contingente de jovens enfrenta a mais dura repressão: em menos de dois anos, mais de 120 menores foram mortos na rua, alguns com menos de 10 anos de idade. Durante esse mesmo período, mais de 50 menores morreram nos fundos das delegacias de polícia, “achados” enforcados ou estrangulados, segundo os relatórios oficiais da polícia.
A todos esses tipos de violência, seria preciso acrescentar agora aquela que existe entre os próprios jovens, da qual prefiro falar mais adiante, quando falarei do meu trabalho.
A respeito desses dois tipos de violência, aquela das estruturas e a dos jovens, se abriu um grande debate, às vezes até passional: estamos a favor ou contra a repressão e a pena de morte? A maioria está a favor: é uma tecla muito usada por políticos na intenção de conseguir votos dos eleitores. Há também toda uma campanha orquestrada pela imprensa e pelo rádio, para tentar desmoralizar a evolução dos métodos da FEBEM e pedir a exoneração do presidente e do padre Agostinho.
A FEBEM
É uma história bem triste. Da mesma maneira que o jovem não gosta que se saiba que ele foi ou é da FEBEM, os funcionários tampouco desejam que se saiba que ali trabalham. Eles têm vergonha, por causa do passado desse estabelecimento, onde até pouco tempo o funcionário era um carcereiro policial que por qualquer motivo usava a violência e até métodos de tortura. Nos anos anteriores, houve numerosas queixas por esses abusos de autoridade. Era, então, um verdadeiro regime policial. Era desse modo que se queria reeducar esses jovens, à maneira de se domar um cavalo. Como dizia antes, com o fim da ditadura militar muitas coisas a esse respeito mudaram ou estão mudando. A nova direção da FEBEM chegou com uma ideologia totalmente diferente. O problema mais urgente era de acabar com qualquer modo de violência e implantar um modo de tratar os jovens, que não seja paternalista, nem assistencialista, mas verdadeiramente educativo.
Aliás, isso ficará sempre um pouco utópico, porque na rua, à sua saída da FEBEM, o jovem vai encontrar a mesma sociedade injusta e as mesmas dificuldades para sobreviver. Foi nessa época que comecei a trabalhar numa unidade dita “educacional”, para onde o jovem infrator (com idade entre 14 e 18 anos) é mandado, depois de ter passado 3 ou 4 meses num centro de triagem, onde seu caso foi estudado pelos técnicos e sua orientação determinada pelo juiz de menores.
COM OS INFRATORES
Onde eu trabalhava havia o mesmo número de jovens funcionários (80), diretores técnicos e administrativos, assistentes sociais, psicólogas, monitores, pedagogas, médico, enfermeiros, psiquiatra e inspetores. Esses últimos são os mais numerosos, e são os únicos que estão em contato contínuo com os jovens, dia e noite. A esse grupo eu pertencia.
O trabalho consistia em conviver com os jovens, participar de todas as suas atividades (trabalho manual, lazer, refeições etc.). Muitas vezes, também, o inspetor deve acompanhar o menor ao hospital, na ambulância, um jovem que precisa fazer uma urência ou tomar uma lavagem de estômago por ter absorvido uma dose excessiva de drogas, e também acompanhar ao tribunal um jovem convocado pelo juiz de instrução para depor, por ter sido testemunha e participante de um assalto.
Passei horas escutando as histórias deles, mas rapidamente me dei conta que era melhor não alimentar esse tipo de diálogo, porque, para eles, era uma maneira de se promover, de se afirmar mais nesse tipo de vida. Aliás, muitas vezes inventavam muito mais do que realmente fizeram, querendo tirar vantagem. A escala de valores é para eles totalmente diferente. Por exemplo, ela se manifestava no jeito deles de se tatuar. Desse modo, três pontos de tatuagem na base do dedão da mão esquerda representava para eles um diploma de arrombamento. Cinco pontos, de assalto, à mão armada. Claro que alguns queriam mais tarde apagar essas marcas comprometedoras, mas não era coisa fácil.
Na hora de estudar, muitos se recusavam “por que estudar se eu quero ser ladrão”?- diziam. Numerosos eram aqueles que chegavam com marcas, cicatrizes de balas ou também de tortura que foram feitas em delegacias de polícia. Um dia, a polícia veio busca para “complemento de informações” um jovem que estava conosco havia algum tempo. À sua volta, de noite, o jovem me mostrou as marcas de choques elétricos que tinha recebido durante o dia. A partir desse fato, a FEBEM não deixou mais a polícia levar nenhum jovem sem ser acompanhado de um advogado do estabelecimento.
Havia, nesse trabalho de aproximação, todo um trabalho também de vigilância, o que não era para mim o mais agradável. Porém, isso era bem necessário para evitar a violência entre eles, defender os mais fracos dos mais fortes, muitas vezes separar dois que brigavam. Eles se acabariam matando por bagatelas, ou por motivos mais sérios (partilha de coisas roubadas, o fato de ter falado demais à polícia...) A lei do silêncio é sagrada entre eles.
Dentro dos internos, havia, para completar, cinco travestis que viviam à margem dos demais. Pensei em Ivar. Que paciência precisava ter com eles! Como dizia Ivar, nunca se sabe como falar com eles, se no masculino ou no feminino. Eram livres para tomar as suas pílulas de hormônios. De certo modo, eles eram os mais revoltados. Às vezes, para suscitar a atenção se faziam no braço muitos cortes com, por exemplo, um pedaço de vidro. Vi também muitas coisas bonitas. Por exemplo, um jovem ou outro se recolher sentado em cima de sua cama para rezar antes de dormir, ou rezar ajoelhado ao pé da cama ao despertar pela manhã (são dormitórios de 10 beliches). Nesse ambiente precisava muita coragem. Entretanto, nunca ouvi gozações.
A violência entre eles acontecia mais fora do que dentro do estabelecimento. É uma casa aberta, no sentido de que muitos podiam trabalhar e estudar fora: trabalhar em repartições públicas e estudar em escolas vizinhas. Tinham a possibilidade de passar o final de semana na família ou na rua, onde muitas vezes continuavam a roubar. Em geral, os mais fieis em voltar no domingo à noite eram os mais duros, os mais difíceis. Quero dizer, os que nos davam mais trabalho: eles voltavam porque era na FEBEM que encontravam mais segurança. A polícia não podia ir lá buscá-los. Também, lá fora, eram muitas vezes “marcados para morrer”, seja pela polícia, seja por comparsas. Aqueles que não voltavam eram os que tinham família e que não aguentavam os companheiros pelos quais eram maltratados. Durante os dez meses de presença nessa unidade, oito jovens que conheci foram mortos fora do estabelecimento.
Outra coisa que tive que enfrentar, foi a oposição de alguns funcionários. Quando cheguei, a maioria dos funcionários era ainda do antigo regime, e desde o início me identifiquei como membro do movimento de defesa dos direitos humanos e, por esse motivo, contra qualquer tipo de violência. Até esse momento, o diretor (psicólogo) escondia o que se passava na casa. Tudo se passava a vidros fechados, até uma memorável reunião dos funcionários, durante a qual o diretor proibiu qualquer violência, sob o pretexto de que não tinha mais possibilidade de segurar o que se passava na casa (por minha presença, claro que se tornava incômoda).
O diretor, mais tarde, foi mudado, vários funcionários, que eram verdadeiros espancadores, foram dispensados. Mas as coisas não melhoraram por isso: a violência dos funcionários foi substituída pela violência dos jovens, porque a reação dos funcionários foi então a de cruzarem os braços e deixar que os jovens fizessem o que bem entendessem. De um dia para outro, não havia mais nenhum tipo de disciplina.
A nova diretora, que não tinha nenhuma preparação para esse trabalho, mas que foi posta ali por intervenção política, tinha, certamente, boas intenções, amava os jovens, mas rapidamente ela perdeu o controle da casa. Não saía mais da sua sala, onde estava totalmente cercada pelos jovens que queriam conversar com ela e às vezes obter algum favor... mas era um trabalho demasiadamente pessoal e sem ligação com os demais funcionários. Ela se tornou isolada e, fora de sua sala, a situação se tornava insuportável. O contato com os jovens estava cada vez mais difícil, porque eles se sentiam mais fortes. Dirigiam a casa do jeito que queriam e se tornavam sempre mais audaciosos e violentos entre eles mesmos e com os funcionários. Não podíamos nos aproximar de um grupo que fumava clandestinamente a maconha sem sermos rechaçados com palavrões dos menores e do olhar complacente dos demais funcionários. Muitos se levantavam de manhã, à hora que quisessem, muitas vezes para o almoço, e se recusavam a participar de qualquer atividade, aliás, cada vez mais raras, com a greve dos monitores.
Foi nestas circunstâncias que, com pesar, pedi minha transferência para outra unidade, desta vez na região de Santo André, em Diadema. Soube que os jovens fizeram pressão junto à diretora para que eu permanecesse, mas creio que já estava me tornando incômodo também para ela, desta vez por outro motivo. Quem sabe mais tarde, se mudarem as circunstâncias, voltarei a trabalhar com esses jovens, que continuo visitando ou que encontro, às vezes, na rua.
COM AS MENINAS
Agora estou num ambiente totalmente diferente. Trata-se de duas casas vizinhas, em Diadema, onde se encontram 43 jovens (8 garotas de 4 a 7 anos) e 35 meninas (de 13 a 18 anos). Em geral, elas foram abandonadas ou deixadas ali pelos pais que não têm condições. Por exemplo, três delas têm sua mãe na prisão, outras têm o pai alcoólatra etc... Mas a maioria das meninas não conhecem nem o pai nem a mãe.
Somos lá menos funcionários: uma psicóloga (a diretora), um diretor administrativo, uma assistente social, seis monitores e três inspetores para a noite. Aqui, a palavra “inspetor” não existe. Monitores e inspetores fazem parte do mesmo grupo, chamados “assistentes”. A única diferença é que uns trabalham mais à noite, com salário mais baixo. Trabalho alternativamente dois meses durante a noite e um mês de dia. Aqui encontrei um grupo de funcionários bem homogêneo.
As jovens são repartidas em seis grupos: cada grupo tem seu quarto próprio e dois assistentes. O sistema da educação é baseado em reuniões de grupo. A reunião de grupo ou a assembleia de todos os grupos é convocada de acordo com os motivos, pelas jovens ou pelos assistentes. Às vezes são duas ou três reuniões por dia, e podem durar até duas ou três horas. Tudo se decide em comum.
Participo do grupo das que tem idade mais avançada: são seis meninas de 16 a 17 anos, que já trabalham fora, em geral em repartições públicas e estudam à noite. Voltam às 23 horas. Se há uma reunião de grupo a fazer, é nesta hora. À noite é preciso dar a medicação prescrita para uma ou outra. Quatro horas por semana, um médico psiquiatra vem participar de nossa reunião de supervisão, porque é uma casa também com fins terapêuticos. Essas meninas chegam aí carregadas de problemas e, às vezes, temos que lutar para convencer uma ou outra que é melhor para ela viver lá do que estar sozinha na rua. O principal é ganhar a amizade e a confiança delas.
Nestes últimos meses, tivemos duas “saídas” (fugas) que nos deixaram entristecidos, e foram ocasião para uma boa revisão. As duas meninas, aliás, duas irmãs, após dois anos de presença na casa nos deixaram. Sabemos somente que se deixaram atrair por um homem, que as levou à prostituição.
Além das reuniões de grupo com as meninas, temos duas reuniões semanais com todos os funcionários. Lá, é coisa séria: se trata de uma verdadeira revisão de vida, onde cada um fala como se encontra no seu trabalho e é questionado pelos outros a respeito de sua maneira de ser e de agir. Era o que faltava muito no estabelecimento dos infratores. As meninas que não trabalham fora, trabalham em casa onde, além de uma grande horta, há uma fabricação de bonecas e uma outra de chocolate, vendidos a uma companhia de aviação. O produto da venda é dividido entre as meninas: uma parte vai para os gastos pessoais, e o restante vai para a poupança, a fim de terem um pequeno pecúlio quando saírem, na idade de 18 anos.
É tudo isso que teria para lhes dizer hoje. Teria muito mais, porém não quero abusar da paciência de vocês. Há atualmente um projeto de fechar a FEBEM. Pelo menos, ficaria apenas com os infratores, acabando com o internato dos outros jovens (90% da clientela), que seriam mandados de volta, com uma ajuda do Estado às suas famílias ou a famílias substitutas, o que parece muito mais normal do que um regime de internato.
Penso que meu diário mostra um pouco a posição dos Irmãos que afirmam que, em nosso continente, os mais pobres (e, por isso, o lugar de nossas fraternidades), estão mais no campo e não na cidade. Estou com medo que, pensando assim, a gente caia nas ilusões que nos oferece a sociedade de consumo. As aparências das grandes cidades enganam muito!
Para terminar, posso dizer-lhes, pelo menos, que, apesar de todo esse sofrimento diante dos quais me encontro tão impotente, esse contato com os jovens me rejuvenesce o coração e o espírito: “O Reino dos Céus é para eles e para que com eles se assemelham ”-Mateus 18,3; 19,14