TRÊS MEDITAÇÕES DE ARTURO PAOLI, 1990
1- ESPIRITUALIDADE DA AMIZADE
Espiritualidade é o
caminho de relacionamento e seguimento de Jesus. Há muitas maneiras de
percorrer esse caminho.
O pondo de partida
da espiritualidade da Fraternidade não é um projeto, mas uma Pessoa que me ama
e está à minha espera. É o encontro de duas pessoas, Jesus e o Irmão Carlos.
Jesus e cada um de nós. É semelhante ao caminho do franciscanismo. Os primeiros
franciscanos sentiram-se atraídos pela experiência de Francisco.
Descrevendo-os, no paraíso (Divina Comédia), Dante diz que “eles encantaram o
mundo com sua concórdia e seu rosto alegre”.
A contribuição
evangélica que a Fraternidade traz à Igreja reside no seu ponto de partida: a
amizade pessoal com Jesus. Sem esta amizade, a vida ministerial pode desembocar
no vazio, no funcionalismo burocrático. A Fraternidade não é um caminho
triunfalista, de eficiência produtiva, mas um testemunho de amizade. Não se
trata de fazer um projeto e iluminá-lo com o Evangelho. Trata-se, acima de
tudo, de se deixar converter pelo Evangelho através da amizade com Jesus.
H. Assmann e F.
Hinlelamment, no livro “A Idolatria do Capital” (Coleção Libertação e
Teologia), afirmam que é preciso tirar de nossa mentalidade a concepção do
Cristo-vítima de expiação de nossos pecados. Este conceito é muito explorado
pelo capitalismo. “O Pai ofendido exige a morte do Filho para pagar a dívida
dos nossos pecados”. Assim, os pobres do Terceiro Mundo devem aceitar todos os
sacrifícios para pagar a dívida econômica(!). É a idolatria do capital, que
exige o sangue dos pobres, vítimas humanas.
Não é esta a imagem
do Pai que Cristo nos apresenta na parábola do filho pródigo. O filho se afasta
dopai e retorna a ele sem mediador. Nem o pai, nem o filho enviam mediadores
para negociar, nem advogado para interceder. O que pensam os dois filhos? O
mais velho vê o pai como policial severo, patriarca exigente e durão. Está preocupado
com a eficiência produtiva e a acumulação do capital: “Teu filho gastou tudo” –
“matas um novilho” – “ te servi a vida inteira e não me deste nem um cabrito”.
O mais novo descobre a amizade: “meu Pai é amigo, responde a todas as aspirações
que tenho dentro de mim”. Esta é a verdadeira imagem do Pai. E Paulo nos diz
que “Cristo é a imagem do Deus invisível”.
A vida cristã deve
testemunhar o amor do Pai, que responde às aspirações mais profundas do coração
humano. Não é um amor romântico, superficial, mas construtivo: demanda
solidariedade, convivência fraterna, comunidade, Deste esforço construtivo,
nasce a liberdade e a felicidade, características da verdadeira
espiritualidade.
Francisco convidou
seus companheiros para evangelizar Assis. Foram alegres, cantando, abraçando
todo mundo e regressaram. À noite, lhe perguntaram: “Quando iremos evangelizar
Assis?” Francisco respondeu: “Já evangelizamos!”
Desde Trento a
Igreja adotou um método racional. Evangelizar tornou-se sinônimo de doutrinar,
sacramentalizar, organizar juridicamente. Perdeu-se a dimensão mais profunda da
amizade, da convivialidade, da distribuição dos bens.
Os homens de hoje
cobram dos cristãos um testemunho de transparência. É na convivialidade
transparente da amizade que se revela o Deus invisível.
A Fraternidade tem
a missão de viver e testemunhar o dom da amizade. Deve ser construtora de
convivência, de justiça, de paz, que são consequências da amizade profunda com
Cristo.
Dominar, explorar,
possuir: são patologias que carregamos dentro de nós, imagem e semelhança do
sistema capitalista. O amor do Pai encontra em nós estes obstáculos e
resistências. Somente em Cristo o Pai não encontrou nenhum obstáculo. Nesta
pessoa humana única, o amor de Deus pôde entrar em todos os poros de modo
ilimitado. Como humano, Jesus é também limitado. Mas, sendo sem pecado, o
humano em Jesus não opôs nenhuma resistência ao amor do Pai. Por isso, Ele é a
manifestação perfeita do Deus invisível. A primeira e fundamental missão da
Fraternidade é testemunhar, através da amizade, o Amor invisível do Pai.
Há hoje um
mal-estar generalizado nas relações com a Igreja. A raiz deste mal-estar reside
na impossibilidade de evangelizar com decretos, leis, doutrinação.
Viver a Fratenidade
numa Igreja em conflito interno, gerado por modelos eclesiais distintos, é
descobrir que evangelizar não é doutrinar, mas dar graças à vida – “laetítia”:
sentir a alegria no próprio corpo. Sentir que a amizade profunda com Cristo nos
torna livres e libertadores. Descobrir que o Cristo não está na Eucaristia para
ser vítima de expiação, mas que está presente com a paixão da entrega, da
doação que nos transmite a vida, a liberdade, a alegria. Sem Cristo, somos absolutamente
incapazes de criar relações de amizade.
Amor, liberdade,
alegria de viver, são os dons do Espírito, que nascem da amizade com Jesus e
revelam a imagem do Deus invisível. (Arturo Paoli, boletim da fraternidade nº
80, de março/abril/maio de 1990).