Veja, após este primeiro artigo, uma entrevista com Roberto Romano.
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Texto, contexto e pretexto da Encíclica “Fratelli tutti”
Todo texto pressupõe um contexto e um pré-texto. O contexto remete ao terreno temporal e espacial a partir do qual se produz um documento. Este tanto pode ser uma obra de ficção ou uma carta, quanto um relato histórico ou um estudo científico. Qual o panorama econômico, social, político e cultural que lhe está subjacente? Em que circunstâncias históricas ele veio à tona? Quais os motivos e condições que o provocaram? Em outras palavras, todo fragmento escrito tem raízes fincadas numa determinada localidade, sem deixar também de possuir asas que muitas vezes o tornam universal.
Já o que podemos chamar de pré-texto tem a ver com as inquietudes e interrogações que levam o autor a empreender uma pesquisa, um projeto de um livro ou uma carta. Procura responder às perguntas explícitas ou implícitas, ditas ou não ditas, que se respira no cotidiano. Fazendo parte deste cotidiano, o autor encontra-se imerso na realidade concreta. Dela extrai e digere questões nem sempre confessadas e confessáveis. Daí que o pré-texto, ao mesmo tempo que leva em consideração os interrogativos locais, tenta igualmente trazer alguma luz sobre a nebulosidade de um horizonte global que se faz obscuro e inseguro.
Dito isso, o texto da Carta Encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco, “sobre a fraternidade e a amizade social” comporta seu contexto e seu pré-texto. O contexto fica evidenciado logo início da encíclica em duas expressões que descrevem o mundo atual. Uma delas corresponde ao título do primeiro capítulo: “as sombras de um mundo fechado”, imediatamente seguida de outra que figura como subtítulo do mesmo: “sonhos em pedaços”. Com tais motivações em jogo, o Santo Padre passa a descrever o que ele chama de “desconstrucionismo”, onde a crise parece derreter a consciência histórica e onde não se vê mais um projeto comum de sociedade. Daí à cultura do consumismo e do descarte, bom como à indiferença com os direitos humanos, a passagem é breve e perigosa. Comporta medos, conflitos e polarizações exacerbadas.
O Pontífice retoma temas já refletidos em outros documentos da Doutrina Social da Igreja, tanto de seus antecessores quanto de sua autoria. Um deles é o descompasso entre o progresso técnico e a economia globalizada, de um lado e, de outro, o desenvolvimento integral que poderia levar a uma inserção mais justa e solidário no mundo do trabalho. Dois aspectos essenciais formam o pano de fundo desse aparente pessimismo. Um deles é a ruptura do “contrato social” que, de alguma forma, alicerçou o projeto dos tempos modernos. Rompem-se com extrema facilidade laços, relações, atitudes e comportamentos, o que leva a uma ausência generalizada de estrelas no céu, ou de referências básicas de orientação. O segundo aspecto decorre justamente dessa carência de pontos sólidos onde firmar os pés e avançar com certa segurança. Emerge o conceito célebre de “modernidade líquida”, cunhado por Zygmunt Bauman.
Em vista desse contexto incerto, conturbado e fragmentário, a Carta Encíclica procura responder às questões do pré-texto. Aqui, dois fatores ajudaram a turbinar uma série de medos e angústias relacionadas a um tecido social já fortemente esgarçado: o retorno da extrema direita ao poder, com um discurso marcado pelo populismo nacionalista e a pandemia do Covid-19. Um e outro mexeram negativamente com o mundo do trabalho e dos direitos trabalhistas, levando multidões ao desemprego, subemprego ou mercado informal. Mexeram igualmente com a perspectiva de defesa do meio ambiente, costurada por cientistas, ambientalistas e diversas nações de forma tão árdua e laboriosa ao longo das últimas décadas. Ambos os fatores criaram um imenso exército de migrantes e refugiados, errando atrás dos ventos e das migalhas do capital.
Do segundo capítulo em diante, o Papa Francisco toma como referência a parábola evangélica do Bom Samaritano para apontar algumas linhas de ação. Tem em vista o desafio de “pensar e gerar um mundo aberto”, mas também “um coração aberto ao mundo inteiro”, títulos do terceiro e quarto capítulos respectivamente. Utopia positiva de um mundo de irmãos e sem fronteiras!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2020
Fratelli tutti e a inacreditável lucidez de Francisco
Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos
| Edição: Ricardo Machado | 07 Outubro 2020
Francisco, o papa, parafraseia Francisco, o de Assis, no título de sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, em que recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos, todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo.
Roberto Romano, em entrevista por e-mail, comenta as primeiras impressões sobre a nova encíclica do Papa Francisco. Para o filósofo, a posição tomada pelo Papa Francisco é pelo bem da coletividade e, em certo sentido, contrária à postura geopolítica das últimas décadas do século passado. “Ele tudo faz e tudo diz para que os interesses imperiais não se sobreponham ao Bem do gênero humano. Assim, Francisco retoma com brilho profético o papel desempenhado por João XXIII e Paulo VI no século XX, bem longe da postura assumida por João Paulo II, o alinhamento a uma geopolítica que favoreceu apenas a parte mais poderosa e rica do planeta”.
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
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Para discutir o novo documento papal, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove a palestra virtual Encíclica Fratelli Tutti: uma leitura francisclariana, com Prof. Dr. Ildo Perondi - PUCPR e Prof. Dr. Luiz Carlos Susin - PUCRS, na quinta-feira, 08-10-2020.
Na sexta-feira, 09-10-2020, o cardeal português José Tolentino de Mendonça ministrará a conferência virtual Pandemia, um evento global. Repensar o futuro da casa comum a partir da Encíclica Fratelli Tutti.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a mensagem central da Encíclica Fratelli Tutti e que reflexões ela propõe para cristãos e não cristãos? Quais são os três pontos que destacaria do texto?
Roberto Romano – Permitam que, para tentar responder, eu evoque o bispo Dupanloup. Em 1865, ao responder aos ataques dos que defendiam a plena abolição do fato religioso na vida pública, ele assim se pronunciou: “Vocês nos falam de progresso, de liberalismo e de civilização como se fôssemos bárbaros e não soubéssemos uma só palavra de tais coisas; mas aqueles vocábulos sublimes desnaturados por vocês, fomos nós que lhes ensinamos, lhes demos o verdadeiro sentido e, melhor ainda, a realidade sincera. Cada uma daquelas palavras teve, apesar de vocês, e ainda conserva e conservará para sempre um sentido perfeitamente cristão; no dia em que tal sentido perecer também perecerá todo progresso real, todo liberalismo sincero, toda civilização verdadeira”. Dupanloup defendia a encíclica Quanta cura, de Pio IX.
No século vinte ressoa no planeta inteiro a palavra de um papa, às vésperas do terror nuclear que poderia reduzir o planeta às cinzas. Em outro polo da tradição eclesiástica, mas sempre mantendo a linha central do ensino católico, João XXIII publica o monumento de civilização intitulado Mãe e Mestra, proclamando direitos humanos e abrindo a Igreja para um mundo alternativo ao lucro assassino e selvagem. Se o escândalo com Pio IX foi gerado pelos vários liberalismos capitalistas, agora o escândalo foi aberto nas veias das finanças que dominam o mundo. A encíclica de Paulo VI, Populorum progressio, foi debochada pelo The Wall Street Journal como “marxismo requentado”.
O Papa Francisco continua o embate de seus antecessores mais lúcidos. Na Laudato Si’ e na Fratelli Tutti ele clarifica pontos essenciais das doutrinas cristãs sobre o convívio humano. Não temos nenhum metro para aquilatar a situação do mundo desde Pio IX até os nossos dias. Está pior? Melhor? Sempre ruim? É tarefa de adivinhação que beira o embuste dizer que há uma lógica de ferro na História, rumo ao melhor e ao pior. A Guerra Fria que levou o mundo à beira do Nada foi sucedida pelo triunfo das forças “democráticas” do chamado Ocidente, com o fim da URSS. A partir daí o capitalismo aumentou seu potencial letífero com as vestes do neoliberalismo, cujo maior feito é aumentar com desmesura a miséria humana, a destruição do planeta, o retorno do fascismo.
O Papa Francisco continua o embate de seus antecessores mais lúcidos. Na Laudato Si’ e na Fratelli Tutti ele clarifica pontos essenciais das doutrinas cristãs sobre o convívio humano - Roberto Romano
O primeiro ponto que chama a atenção na Fratelli Tutti é a inacreditável lucidez de Francisco. A seguinte frase marca uma fenomenologia rigorosa da situação planetária e resume toda uma filosofia cristã do tempo: “A história dá mostras de estar voltando para trás. São acesos conflitos anacrônicos que julgávamos superados, ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Em vários países uma ideia da unidade do povo e da nação, penetrada por diversas ideologias, gera novas formas de egoísmo e perda de sentido social sob as máscaras de uma suposta defesa de interesses nacionais”. A História, retoma Francisco as lições da Patrística sobre o tempo, não é uma linha contínua em ascensão ou queda. Ela segue um roteiro ondulatório que pode jogar a Humanidade em situações novas que repetem pesadelos antigos. A descrição feita pelo Papa capta o vagido dos fascismos vários que ecoam em todo o mapa mundi.
O segundo ponto que traz um sinal de alerta é a caracterização de nossas vidas como tremenda prisão em solitárias. É como se o pontífice traduzisse em termos pastorais a lição de Kafka: somos entes solitários e presos à nossa solidão. “A sociedade cada vez mais globalizada nos faz mais próximos, mas não mais fraternos”. Assim, a política “se torna cada vez mais frágil face aos poderes econômicos transnacionais que aplicam o ‘divide e reinarás’”. Com o domínio do capitalismo transnacional e o fracasso da política perdem sentido vocábulos como “democracia, liberdade, justiça, unidade”. A profecia de Dupanloup se cumpre por inteiro. Solidão das mulheres, avanço das máfias que espalham o medo, solidão dos imigrantes. Solidão dos povos pobres sob o tacão dos ricos. Os primeiros têm sua autoestima rebaixada de propósito pelos segundos, tendo em vista sórdidos interesses econômicos e geopolíticos.
O terceiro ponto, o que vai mais fundo na diagnose de nosso tempo, encontra-se no uso magistral da Parábola do Bom Samaritano. O padre Vieira tem excelentes considerações sobre a narrativa. Ele vai direto ao conceito de propriedade e a interpretação polissêmica que tal princípio acarreta. O mesmo realiza Francisco, companheiro da Ordem que acolheu Vieira e que hoje cumpre um papel de sentinela avançada dos direitos humanos e dos valores cristãos. Os itens 118 e seguintes da encíclica são cruciais no rompimento com a ideologia privatista da propriedade: “O mundo existe para todos”.
Muitos católicos verão em tais passagens do Sumo Pontífice a pior heresia. Ele nega a sacralidade da apropriação privatista da natureza e dos bens culturais. Compreende-se o ódio votado a Francisco por hordas que se afirmam cristãs e católicas mas aceitam o comando de adversários do cristianismo como Bannon e asseclas. E tais católicos se instalam inclusive na mais alta hierarquia eclesiástica.
Com propósito firme, o santo Padre capta na parábola o seu caráter imperativo, nunca opcional. Francisco retroage aos primeiros versículos da Bíblia para recordar Caim e Abel. Ele cita a frase mais relevante das Escrituras quando vista pelo prisma humano, egoísta e assassino. “Acaso sou guardião de meu irmão?” Se não somos responsáveis pelos nossos irmãos, logo aparece um “guardião de todos” que se arroga o direito divino de vida e morte sobre indivíduos e coletivos.
Não por acaso o católico trânsfuga mais notável do século vinte jurídico, Carl Schmitt, dará à sua apologia da ditadura e do poder discricionário do presidente da Alemanha o título polêmico de “O Guardião da Constituição”. Com base em tal poder o Líder nazista e seus cúmplices planejaram e definiram o Holocausto.
Com a ruína da política segue o enfraquecimento do Estado nacional (item 172 da encíclica) devido à insaciável exploração econômica. Daí, pensa Francisco, o urgente reforço de instituições internacionais capazes de impor regras à selva planetária. O Papa, aqui, retoma um tema exaustivamente examinado desde Erasmo de Rotterdam, Grotius, Padre Saint-Pierre e Immanuel Kant: a instauração de um poder mundial capaz de atenuar os malefícios das guerras por interesses definidos na raison d’État. Ele se coloca nitidamente em polo oposto ao de Hobbes, Fichte e Hegel. Para aqueles pensadores “não existe juiz do mundo”, sendo a guerra de todos contra todos impossível de ser erradicada em plano universal.
A posição do Papa é clara: ele tudo faz e tudo diz para que os interesses imperiais não se sobreponham ao Bem do gênero humano. Assim, Francisco retoma com brilho profético o papel desempenhado por João XXIII e Paulo VI no século XX, bem longe da postura assumida por João Paulo II, o alinhamento a uma geopolítica que favoreceu apenas a parte mais poderosa e rica do planeta.
O segundo ponto que traz um sinal de alerta é a caracterização de nossas vidas como tremenda prisão em solitárias - Roberto Romano
Termino com uma surpresa que certamente será compartilhada por vários analistas. Não é novidade a citação, em encíclicas, de autores leigos. Mas na atual é mais do que estratégica a lembrança do filósofo Gabriel Marcel: “só me comunico realmente comigo na medida em que me comunico com o outro” (Du refus à l’invocation). É notável a citação do autor de Les hommes contre l’Humain (Os homens contra o humano). Marcel integrou o número dos que advertiram contra a “agonia do homem” no desastre das culturas modernas e contemporâneas. Não se trata, pois, de um adereço erudito a mais no documento. A pequena frase de Marcel representa a espinha dorsal da encíclica. A fraternidade só existe na comunicação com o outro, numa troca na qual estou envolvido, empenhado. Comunicar sem que o próprio Ego se comprometa não é ser fraterno: é fazer obra de propaganda, proselitismo, terror contra os demais.
Surpresa maior encontramos na lembrança do Samba da Bênção, muito conhecido dos brasileiros. Eu diria que o ritmo e a melodia da encíclica seguem os versos de Vinicius de Moraes. O Papa cita uma frase do poeta “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Todas as passagens que o Pontífice nos presenteia têm o sabor e o perfume daquela poesia: “é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração”. Tal é o alvo perseguido pelas mais elevadas mentes da Humanidade. Basta recordar o Hino à Alegria ideado por Schiller e musicado por Beethoven.
Mas o cristianismo de Francisco não é um código de Poliana, como aliás nenhum cristianismo autêntico: ele capta a tristeza que serve de contraponto à euforia da vida. “Mas para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”. Assim é a Fratelli Tutti: o Santo Padre nos mostra a esperança no ser humano, marca de todos os seus pronunciamentos e atos, sobretudo em seu discurso célebre e recente na ONU. Mas não se exime da missão dolorosa que consiste mostrar o quanto nos afogamos num oceano sombrio de indiferença, desprezo pelos nossos irmãos e, consequentemente, por nós mesmos e, como base de toda a desgraça, o desprezo por Deus e pela natureza.
Finalizando, eu diria que Francisco empunha o báculo do bom pastor e nos adverte para princípios antropológicos e naturais estratégicos, se queremos permanecer, como gênero, num planeta habitável e no qual a vida não seja Inferno absoluto. Nós, brasileiros, temos na encíclica muito consolo e incentivo para lutar pela fraternidade, sobretudo quando observamos a massa de ódio que se avoluma sempre mais entre os cidadãos e a sistemática e louca devastação da natureza, comandada por um poder de Estado sob controle dos filhos de Caim.
Uma leitura da Fratelli Tutti
Pe. Nelito Dornelas
Nas antigas cidades construídas atrás dos muros, encontravam-se os guardas noturnos, sempre vigilantes, em suas guaridas. A cada manhã eles eram obrigados a prestar contas aos seus chefes, aos quais respondiam à seguinte pergunta: guarda, há alguma novidade nesta noite? E um relatório minucioso era apresentado.
Como um sentinela da humanidade, o Papa Francisco, na Fratelli Tutti, nos apresenta um amplo relato sobre o cenário sombrio de incertezas, dúvidas, conflitos, divisões e crises de nossa sociedade atual, mas descreve também o rosto de um estranho caído à beira do caminho, na escuridão dessa longa noite que estamos atravessando e nos convida a gastar nosso tempo no cuidado com este rosto, construindo com ele e, a partir dele, para além dos gestos de solidariedade, a cultura da fraternidade.
De leitura obrigatória para todas as pessoas de boa vontade, para além das estreitas fronteiras de qualquer instituição, seja religiosa ou social, a Fratelli Tutti deverá ser nosso vade mecum, como o foi a Rerum Novarum de Leão XIII, em 1891, a Quadragesimo Anno de Pio XI, em 1931, a Pacen in Terris de João XXIII, em 1963, a Populorum Progressio de Paulo VI, em 1967, a Solicituto Rei Sociales de João Paulo II, em 1987, a Deus Caritas Est de Bento XVI, de 2005 e a Laudato Si de Francisco, em 2015.
Todas estas encíclicas sociais nasceram dentro de um cenário nebuloso e de convulsões provocadas pelas revoluções culturais, industriais, econômicas, geopolíticas como a grande depressão de 1920, a ascensão do fascismo de Benito Mussolini, o nazismo de Adolph Hitler, a guerra fria entre Rússia e EUA, o advento da globalização neoliberal, a crise do sistema financeiro e a disseminação da pandemia do corona vírus. Fratelli Tutti é um grito de socorro lançado pelo Papa Francisco tentando oferecer uma alternativa antes que seja tarde demais.
Pio XI, em sua encíclica, fez contundentes críticas ao capitalismo de livre mercado e ao comunismo socialista, numa tentativa de desarmar a bomba antes que ela explodisse, esboçando uma terceira via, enraizada no ensino social católico e aberto às aspirações do apostolado leigo, que nascia pelas mãos da Ação Católica. Seus esforços falharam e houve uma explosão muito pior do que Pio XI poderia imaginar.
Resta-nos aprender com a história. Sabemos que a história não tem ética, ela é cruel. Nós, sim, os humanos podemos preencher de ética as durezas da história. O tempo dirá que impacto Fratelli Tutti terá na sociedade, dependendo de sua recepção ou não.
Francisco vê um desafio entre duas alternativas falhas: individualismo neoliberal e o nacionalismo populista. Ele percebe que está se desenvolvendo um verdadeiro cisma entre o indivíduo e a comunidade humana (n. 30). Um mundo que não aprendeu nada com as tragédias do século XX, sem senso da história (n. 13). Parece haver um retrocesso: os conflitos, os nacionalismos, o senso social perdido (n. 11), e o bem comum parece ser o menos comum dos bens. Nesse mundo globalizado, estamos sozinhos, e prevalece o indivíduo sobre a dimensão comunitária da existência (n. 12). As pessoas desempenham o papel de consumidores ou de espectadores, e os mais fortes são favorecidos.
O diagnóstico de Francisco sobre as contradições internas do neoliberalismo é especialmente preciso no parágrafo 168: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”.
É importante frisar que a crítica de Francisco ao hiper individualismo não é somente em matéria econômica, mas cultural, e isso não é sobre esquerda e direita, mas uma “fria, confortável e globalizada indiferença” com os outros. E denuncia um tipo de “nacionalismo míope, extremista, ressentido e agressivo” (11), que dá o tom para muitos outros que se seguem. “Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (45). “Manifestações públicas violentas, de um lado ou de outro, não ajudam a encontrar soluções" (232).
A terceira via que Francisco aponta é uma ética social da fraternidade humana e ecológica, enraizada no Evangelho, na parábola do Bom Samaritano, para além da frágil solidariedade, cuidando dos idosos, combatendo o racismo e o sexismo, tendo compaixão pelos imigrantes, estabelecendo alianças regionais, sustentando posições abolicionistas sobre guerra e pena capital, perdão da dívida para nações empobrecidas e fortalecendo a ONU.
Fratelli Tutti é inspirada em Francisco de Assis, que, em plena cruzada entre cristãos e mulçumanos, é capaz de estabelecer uma ponte de diálogo com o Sultão Islã. Seguindo este exemplo, Papa Francisco dá as mãos a Aḥmad al-Tayyeb, o grão-imã de al- Azhar, para juntos assinarem um acordo de fraternidade entre Católicos e Mulçumanos. Abre-se ao exemplo e testemunho de Martin Luther King, de tradição Batista, Desmond Tutu, Anglicano e Mahatma Gandhi, hinduísta. E encontra no Bem aventurado Charles de Foucauld o testemunho atual de um católico, que, no século XX, gastou sua vida junto aos mulçumanos, fazendo-se irmão universal, transformando sua ermida em fraternidade e gritando o evangelho com a vida.