QUARTA MEDITAÇÃO
“Se alguém quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz e me siga” ( Mc 8,34).
Em toda a sua vida, Jesus não fez outra coisa se não rebaixar-se. Escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tirar” (Charles de Foucuald). “Pensa que deves morrer mártir, despojado de tudo, estendido no chão, nu, irreconhecível, coberto de sangue e de ferimentos, violenta e dolorosamente assassinado... e deseja que seja hoje” (Foucuald). “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só um grão de trigo. Mas se morrer produzirá muito fruto” (Jo 12,24).
O hino Cristológico – Fl 2,5-11 – Coração da carta, resumo do Evangelho de Paulo, ajuda-nos a compreender “ busca do último lugar” na vida de Jesus e do Irmão Carlos.
Os filipenses estavam confusos porque havia surgido falsos pregadores: os judeus-cristãos ou judaizantes. Além de continuar exigindo a circuncisão e a pratica da lei, anunciavam uma cristologia de milagres, concepção “triunfalista” de Cristo, ressurreição sem a cruz. Essa tendência existe também hoje. Certos movimentos vivem à caça de milagres e revelações extraordinárias.
Se o apóstolo prega um evangelho falso, não é um verdadeiro apóstolo, mas um “cão” (insulto dos judeus aos pagãos, portanto, devolve o insulto aos próprios judeus), “um mau operário” e “falso circunciso” (3,2-3) pois confiam na carne-lei.
Para Paulo o que permite fazer o discernimento, a distinção entre falso e verdadeiro evangelho é a cruz. O Evangelho de Cristo está centrado na cruz. “Stat crux dum volvitur orbis” (Cruz permanece enquanto o mundo gira) é o lema dos monges cartuxos. O Evangelho que não coloca a cruz no centro, não é o evangelho de Jesus Cristo. “Entre vós não quis saber de outra coisa a não ser de Jesus Cristo, e Jesus Cristo Crucificado” (1 Cor 2,2) A cruz é loucura para os judeus, escândalo para os pagãos, mas salvação para os que crêem ( 1Cor 1, 17-31). O que faz a autenticidade da pregação de Paulo é o seguinte:
Paulo afirma com toda a radicalidade que há somente um meio de libertação: a cruz de Cristo. Opõe-se a todos os que buscam apoio nas suas tradições religiosas, em ritos, manifestações de poder. Por exemplo, anunciar a cruz de Cristo é excluir a necessidade da lei dos judeus ou da circuncisão.
A cruz é o caminho seguido por Jesus, que renunciou a todos os privilégios e a todos os poderes que lhe davam superioridade. Renunciou aos direitos de Deus (onisciência, onipresença, onipotência) e também aos diretos de um homem livre. A cruz é esvaziamento de todo o poder.
Significa a condição de escravo condenado injustamente e expulso do seu povo para morrer como um reprovado, visivelmente rejeitado até por Deus. Paulo segue Jesus no seu aniquilamento. Renunciou a tudo o que ele era, a qualquer forma de privilégio ou poder. Tudo espera de Cristo.
“Para mim o viver é Cristo” (1,20). “Perdi tudo a fim de ganhar Cristo e estar com ele” (3,8).
O Evangelho da cruz é o esvaziamento que se manifesta na perseguição, na prisão, no opróbrio da morte crucificada, que é a morte de um excomungado-herege. Paulo prega a cruz de Cristo porque pessoalmente está sendo perseguido, preso, sob a ameaça de morte, mas está disposto a aceitar esta morte por Cristo, com Cristo. Quem prega um evangelho que não inclui o perigo de prisão, perseguição, e morte, não prega o evangelho da cruz.
Por fim o evangelho da cruz significa o serviço a todos. Jesus escolheu a condição de escravo, isto é, homem obediente que serve aos outros, escravo voluntário pelo bem dos outros. Por isso, Paulo nada quer para si mesmo, somente o bem da comunidade. Em virtude deste caminho da cruz Paulo quer subsistir pelo próprio trabalho para que ninguém viesse a cogitar que ele evangelizava em função do salário ou outras regalias.
Outras motivações que levaram Paulo a optou pela sobrevivência através do trabalho de fabricante de tendas e sapatos: não ser pesado a ninguém, dispor de recursos para partilhar com os mais pobres, identificação com Jesus, “o filho do carpinteiro”. Por fim, o trabalho é a porta de entrada para a vida, cultura, sofrimentos e esperanças dos pobres. O trabalho para Paulo foi um jeito de assumir e testemunhar o Evangelho da cruz.
Evangelizar a partir do lugar dos pobres. Fiz esta experiência trabalhando um ano como varredor de rua em Salvador-BA, em 1981.
A ajuda que aceitou dos filipenses foi uma exceção motivada pelo serviço dos próprios filipenses. Timóteo, fiel discípulo de Paulo, também se tornou “escravo do evangelho” (2,2; 2,19-23). Epafrodito, participa do mesmo espírito, veio servir Paulo na prisão, arriscou a vida já que no seu serviço ficou doente e quase morreu (2, 25-30). Os filipenses também estão do lado da cruz de Cristo. Solidarizam-se com Paulo na sua prisão.
São fiéis e não se deixam seduzir pelos falsos apóstolos. Colaboram na evangelização, por isso merecem amor tão grande de Paulo.
Se este é o evangelho da cruz, é evidente que o hino cristológico exprime exatamente o conteúdo do evangelho. Por isso o lugar que ocupa na carta é realmente central. Paulo achou neste hino a melhor expressão condensada do evangelho. Sem dúvida é o resumo do evangelho de Paulo e tem importância única na pregação do apóstolo. Provavelmente este hino era cantado nas comunidades cristãs. Trata-se portanto de um testemunho de primeira grandeza sobre a fé da igreja primitiva. O hino cristológico constitui o verdadeiro coração de toda a carta, mas não só, é também o ponto mais alto da cristologia das cartas de Paulo e de todo o N T, uma das revelações mais profundas do cristianismo.
O evangelho da cruz é o evangelho de Jesus porque ele mesmo seguiu o caminho da cruz: abandonou qualquer apoio, qualquer poder e até qualquer dignidade humana. Aceitou a perseguição, a morte, a rejeição total e até do aparente abandono de Deus. Dedicou ao serviço dos irmãos todas as suas forças, fez-se obediente e nada quis para si. Por isso Jesus é o missionário autêntico. Parecido com ele deverá ser todo o missionário verdadeiro. “Deus reservou para nós o último lugar” (1Cor 4,9-13). “O discípulo nunca será superior ao Mestre. Mas o discípulo autêntico será parecido com o Mestre” (Lc 6,40). “A semelhança a é a medida do amor”
(Charles de Foucauld).
O caminho de Jesus tem dois movimentos:
BAIXAR SUBIR
Humilhação Exaltação
Fez-se homem Recebe nome novo: Senhor Torna-se escravo Nova condição: Ressurreição Obediente até a morte Adoração ao nome de Jesus Morre crucificado No céu, na terra e no inferno Reduziu-se a nada Recebeu tudo.
O sujeito do primeiro movimento é o próprio Jesus que, consciente e livremente se despoja de tudo. O infinitamente grande fez-se infinitamente pequeno.
O sujeito do segundo movimento é Deus Pai que restitui tudo ao Filho e o torna Senhor. Cristo rebaixa-se. Quando alcança o ponto mais baixo da descida, o Pai o exalta e o faz subir ao ponto mais alto. A descida começa a partir do ponto mais alto. Cristo estava no nível de Deus. No fim, volta a esse mesmo nível. Mas para voltar aonde estava, ele desceu ao nível mais baixo possível nesta terra. O preço da encarnação foi a cruz. “Em toda a sua vida não fez outra coisa se não rebaixar-se. Escolheu de tal modo o último lugar que ninguém lhe poderá tirar”.
Dom Valfredo Tepe diz que Jesus veio entre nós para fazer pós-graduação em pequenez (manjedoura, cruz e Eucaristia). Redenção é dom: pobre como o presépio, eficaz como a cruz e vivificador como a Eucaristia.
Na mente de Paulo, este duplo movimento contém toda a novidade do evangelho. “Kenosis” significa esvaziamento, aniquilamento, redução a nada. Perdeu não somente o poder da divindade, mas também direitos naturais de um homem livre.
Jesus não se contentou em descer o primeiro degrau, aparecendo como homem. Desceu o segundo degrau, tomando a forma de homem pobre, oprimido, a condição de escravo humilhado pela perseguição injusta. Não foi escravo de nascença, nem de conquista, mas escravo voluntário: vida de serviço voluntário aos homens e nem se quer foi retribuído. Pelo contrário, seus serviços foram pagos com perseguições, humilhações e finalmente pela morte. Essa condição de escravo é o elemento mais visível e surpreendente do esvaziamento.
O terceiro degrau acentua, explicita ainda mais o segundo. Ser escravo é ser obediente. Esvaziar-se é humilhar-se. Aqui, porém, a condição de escravo vai até a morte e morte de cruz. Esta morte sublinha a ausência total de poder do escravo, pois a morte na cruz é uma morte maldita, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos!
A cruz na teologia de Paulo é a expressão extrema da condição de escravo e do esvaziamento de todo o poder. É o quarto degrau na descida de Jesus até a impotência total, até a eliminação de todas as forças e todas as dignidades. Reduziu-se a nada. “É maldito quem morre na cruz”. Em Jesus a obediência ao Pai e a solidariedade com os homens encontrou na cruz a sua realização extrema e paradoxal até o grito: “Meu Deus, por que me abandonaste?” Aqui acontece a suprema epifania da kénose do Filho, epifania do Amor que se doa sem nada pedir em troca.
Depois da descida vem a subida. Depois da humilhação vem a exaltação. Não se trata de uma simples sucessão, mas há um laço de causalidade entre os dois movimentos. O elo de ligação encontra-se na expressão: “Por isso Deus o exaltou”. A cruz foi a última palavra na vida terrena de Jesus, mas não foi a última palavra de Deus sobre ele. Porque entregou tudo, o Pai lhe devolveu tudo: a glorificação através da ressurreição. O que se fez o último, o baixíssimo, agora é o altíssimo.
Não há caminho de subida, não há caminho para o Reino de Deus que não seja passando pela humilhação. “Se o grão de trigo caído na terra não morrer, não produzirá fruto” (Jo 12,24). A cruz está no coração do evangelho de Marcos: “Quem quiser ser meu discípulo... Quem guardar a vida para si vai perdê-la” (Mc 8,34-35: texto “dobradiça” entre as duas partes do evangelho de Marcos). O caminho da cruz é a etapa inevitável para Jesus e para todos quantos queremos participar do seu Reino. O “por isso” já estava no Cântico do Servo de Javé (Is 52, 13 e 53,12).
Existe naturalmente uma marcante oposição entre o escravo que Jesus foi e o Senhor que começou a ser com a ressurreição. O escravo torna-se Senhor pelo poder de Deus. Aquele que os homens trataram como escravo obediente e humilhado, Deus o tratou como Senhor. Por isso, ele merece a adoração devida somente a Deus (Is 45,23). Se Jesus merece esta homenagem é porque recebeu o Nome de Deus e com o nome todos os direitos e atributos de Deus. Céu, terra e inferno expressam a totalidade do universo em adoração a Deus.
O hino culmina com a profissão de fé: “Toda a língua confesse: Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai”. Esta é a profissão de fé dos primeiros cristãos europeus evangelizados por Paulo. Ao cantar esse hino a comunidade se associa à criação inteira redimida pela Morte e Ressurreição do Kyrios. A liturgia acompanha a adoração do mundo inteiro.
Tiremos algumas conclusões para nossa vida e ministério.
“Kénosis”: “Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo” (2,4). Em nossa vida e ministério somos convidados a seguir o mesmo caminho de Jesus, a mesma prática de despojamento, esvaziamento de si, escravo voluntário que se coloca livre e generosamente a serviço de todos. Coração da caridade pastoral é dar a vida. Se somos seguidores do Mestre e Senhor que escolheu em tudo o último lugar, como podemos estar entre os que buscam o primeiro lugar?
“A semelhança é a medida do amor”.
Todo e qualquer triunfalismo pessoal, eclesial, pastoral é antievangélico. Clericalismo, concorrência, carreirismo, autoritarismo estão na contramão do evangelho. Ministério quer dizer “minus stare”, estar abaixo para lavar os pés de todos (Jo 13,1-17). O “minus stare” deve visibilizar-se na pobreza, austeridade, humildade. O ministério ordenado tem radical forma diaconal. O Vaticano II restaurou o diaconato permanente para questionar o presbiterado e episcopado. Não recebemos a ordenação diaconal como simples degrau para a ordenação presbiteral, mas para sermos a vida inteira presbíteros servidores.
A kénose no seguimento de Jesus nos leva a mergulhar no abismo do sofrimento e da miséria humana de milhares de brasileiros para, através da força do Ressuscitado reerguer homens e mulheres decaídos e excluídos. “Pobres sempre tereis no meio de vós” ( Mc 14,17 ). Mas, se não forem bem recebidos em nossas Igrejas e instituições, ou pior ainda, forem tão mal recebidos e maltratados como o são nas repartições públicas, em que outro lugar poderão esperar acolhida, atenção e respeito?! Quanto maior for a miséria, tanto maior deverá ser a misericórdia. “Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos, é a mim que o fazeis” (Mt 25, 40).
Opção pelos pobres é colocar-se ao lado dos crucificados e sofrer o desprezo e rejeição que recai sobre eles. Quem trabalha na Igreja de Roraima sente em sua própria pele todos os preconceitos, desprezo e rejeição que os não índios manifestam pelos índios. “Para ser missionário em Roraima é preciso ter vocação para o martírio” disse Dom Jayme Chemello na visita que nos fez quando ainda era presidente da CNBB. “É preciso tocar as chagas do Crucificado para encontrar o Ressuscitado”, dizia o texto-base da Campanha da Fraternidade de 1995, dedicada aos excluídos. Conferir “Carta aos Presbíteros”, n. 40, 41 e 45. Recomendação dos apóstolos a Paulo: “Eles pediram apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado” (Gl 2,10). “Os pobres são os nossos mestres”. “Os pobres nos evangelizam” (Puebla).
Quais são as cruzes que mais me pesam em minha vida e ministério? Como reajo diante delas? Onde encontro forças para carregá- las? Como ajudo os pobres e sofredores a carregar a cruz?
Leitura Orante: 1Cor 1, 17-31 e Gl 6,11-14.
Hino Cristológico de Filipenses
Jesus Cristo sendo Deus,\
Disso não se aproveitou. Rebaixou-se a si mesmo,\ Feito escravo se encontrou. Ser igual a um de nós\ Era pouco pra Jesus;\
Humilhou-se e obedeceu.\
Indo até morrer na cruz. Deus, por isso, o elevou,\
E um nome tal lhe deu;\
Que se curvem diante dele\
O inferno, a terra e o céu. Toda a língua então confesse\
Para a glória de Deus Pai,\
Jesus Cristo é o Senhor.\
Para a glória de Deus Pai. Ofereço este bendito\
Ao Senhor daquela Cruz; Ao seu Pai e ao Divino\ Toda a Glória! Amém, Jesus!