sábado, 30 de março de 2013

RETIRO 2013 - 2ª MEDITAÇÃO

SEGUNDA MEDITAÇÃO


A “VIRADA POPULAR” DO VATICANO II

(Síntese da conferência do Pe Paulo Suess no 3º Congresso Nacional Missionário, em Palmas, TO, de 12 a 15/10/12, com alguns acréscimos)

O Vaticano II produziu 16 documentos e um espírito que procuravam romper as heranças do Império Romano e do sistema colonial, vertentes ideológicas, incompatíveis com o evangelho de Jesus Cristo.

Com a decretação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em 380, pelo imperador bizantino Teodósio I, e com a progressiva decadência desse império, insígnias, liturgias, estruturas e modos de administração imperiais foram assumidas pela nova religião de Estado.

De geração para geração, de século para século, foram transmitidas e se tornaram fetiches do cristianismo. Setores do Vaticano II estavam decididos de romper com essa herança, historicamente, caducada.

Para a ação missionária, um dos precursores da descolonização e do seguimento de Jesus histórico foi Charles de Foucauld (1858-1916).


Com seus seguidores nos mais diversos movimentos espirituais e fundações religiosas, antecipava questões posteriormente articuladas em torno do paradigma da inculturação e da inserção missionária. “A Igreja não descuidou da promoção humana dos povos aos quais levava a fé em Cristo... Basta lembrar o exemplo do Padre Charles de Foucauld, que foi considerado digno de ser chamado, pela sua caridade, “Irmão universal”, e redigiu o precioso dicionário da língua tuaregue” (Populorum Progressio, 12). 

No contexto pós-colonial da opção pelos outros, emerge a opção pelos operários do Cardeal Joseph Cardijn que, em 1924, fundou na Bélgica a Juventude Operária Cristã (JOC), inspirando a Ação Católica com o método do ver, julgar, agir. A sobriedade missionária do movimento dos padres operários e da Mission de France já apontaram para a opção pelos pobres.


No final do Concílio, no “Pacto das Catacumbas”, 40 padres conciliares renunciaram à herança do Império Romano, “à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje, nas insígnias de matéria preciosa; recusaram-se a ser chamados “com nomes e títulos que significassem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência,Monsenhor...)”. Paulo VI deu um sinal na mesma direção quando, no dia 13 de novembro de 1964, antes de viajar para Bombaim, colocou a Tiara, a tríplice coroa dos papas, no altar de S. Pedro para nunca mais usá-la.


Mas, para o conjunto da Igreja Católica, muitas das estruturas e da indumentária imperiais até hoje não foram abolidas. O Vaticano II iniciou uma “virada popular”, que ainda precisa ser completada. Seu objetivo era “continuar a obra do próprio Cristo que veio ao mundo para dar testemunho de verdade, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido” (GS 3,2). O Pe Victor Codina recorda as linhas fundamentais da virada copernicana produzida pelo Vaticano II:


- Da Igreja de Cristandade, centrada no poder e na hierarquia, para a Igreja de comunhão (primeiro milênio) que se abre aos desafios dos sinais dos tempos.


- De uma eclesiologia centrada em si mesma para uma Igreja orientada para o Reino, do qual ele é semente e início. O Reino de Deus é maior que a Igreja.

- De uma Igreja sociedade perfeita para a Igreja mistério que nasce da Trindade, multidão congregada pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.


- De uma cristologia exclusivamente cristocêntrica (“cristominismo”) para a Igreja que nasce do abraço do Pai: um dos braços é Jesus e o outro é o Espírito Santo (S. Ireneu).

- De uma Igreja centralizadora para uma Igreja corresponsável e sinodal, que respeita as Igrejas locais: nelas e por elas existe a Igreja Universal.

- De uma Igreja identificada com a hierarquia para a Igreja toda ela Povo de Deus, onde vigora a igualdade de todos os batizados, com muitos carismas e ministérios.

- De uma Igreja senhora e dominadora para uma Igreja samaritana e servidora de todos, principalmente dos pobres, nos quais reconhece o rosto de seu divino Fundador.


- De uma Igreja comprometida com o poder para uma Igreja enviada a evangelizar os pobres, com os quais se sente comprometida na construção de outro mundo possível.


- De uma Igreja arca de salvação para uma Igreja sacramento de salvação em diálogo com outras Igrejas e religiões, em pleno reconhecimento da liberdade religiosa.

Quais são os impulsos do Concílio que configuram essa “virada popular” e quais os passos para fazê-la avançar, hoje?


1. Aggiornamento como orientação programática

Ainda antes de iniciar o Concílio, o papa João XXIII mostrou, simbolicamente, que a Igreja Católica precisava abrir-se ao mundo, o que ele chamou de um aggiornamento. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, em sua Carta Encíclica Ecclesiam suam (1964), menciona o “aggiornamento” como “orientação programática” do Concílio (ES 27).

A “orientação programática” do Vaticano II, portanto, era abertura, deixar a realidade do mundo entrar na Igreja e fazer essa Igreja entrar na realidade do mundo. Aggiornamento expressa a vontade de construir pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas da modernidade e do mundo secular, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, a vida cotidiana onde o povo vive, luta sofre e espera.


O Concílio nomeou essas tentativas de aproximação aos povos e ao mundo com algumas palavras balbuciantes, como “aggiornamento” e “adaptação” (SC 37s; GS 514), “autonomia da realidade terrestre” (GS 36; 56) “sinais dos tempos” (GS 4; 11), e “diálogo” (CD 13; UR 4), “encarnação” e “solidariedade” (GS 32). Em nossa caminhada teológicopastoral latino-americana traduzimos essas palavras como “opção pelos obres” e “libertação”, em Medellín (1968), “participação”, e “comunidades de base”, em Puebla (1979), como “inserção” e “inculturação”, em Santo Domingo (1992) e como “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres, em Aparecida (2007). Nenhuma dessas palavras descreve a totalidade do projeto pastoral do Vaticano II, mas seu conjunto representa uma síntese daquilo que o Vaticano II queria ser: um farol da luz de Cristo no meio do povo e do mundo.

2. Ser farol da luz de Cristo


As primeiras palavras das duas Constituições sobre a Igreja, a Lumen gentium e a Gaudium et spes, já apontam para o programa da“virada popular”. Ser farol da luz de Cristo para os povos e acompanhá-los, sobretudo os pobres, em suas alegrias e tristezas, e ser, como povo de Deus, instrumento de salvação de Jesus encarnado - eis a origem,identidade e meta dos discípulos. No ser transparente para o mundo e no estar próximo aos crucificados na história temos o núcleo da “virada popular” do discipulado missionário.


Quando Paulo, em Damasco, ouviu a voz do Mestre, por ele perseguido, Jesus lhe deu razões para uma vida nova: foste chamado para voltar das trevas à luz e constituído “servo e testemunha” (At 26,16).

No início da vida do discípulo missionário há sempre uma iluminação e uma conversão. “Voltar das trevas à luz” significa conversão, dar foco à vida, sair da alienação, fazer discernimentos, estabelecer prioridades para que Deus possa resplandecer na face das testemunhas e nas mãos dos servos enviados.


Para ser luz do mundo e dos povos (Lumen gentium), Jesus submeteu-se às águas do Jordão; despojado de tudo recebeu o batismo de João e o Espírito Santo tomou conta dele. Nesse despojamento, como na pequenez do presépio, da cruz da Eucaristia, se revela o amor trinitário de Deus e a missão de Jesus. O Filho amado é o Filho iluminado, despojado e enviado.

No batismo, a iluminação torna-se recriação do mundo, como mostra o episódio da cura do cego de nascença, que era mendigo, e representa os discípulos missionários. Na Conclusão do Decreto Ad gentes, os padres conciliares fazem votos que “a claridade de Deus, que resplandece a face de Cristo Jesus, pelo Espírito Santo a todos ilumine” (AG 42,2). Quem recupera a vista ganha mobilidade e autonomia para “iluminar todas as pessoas com a claridade de Cristo” (LG 1) pelo anúncio e testemunho do “Evangelho do Reino da vida” (DAp 143).

3. “Virada popular” com audácia e fidelidade

A “virada popular” do Vaticano II, essa tentativa de definir o povo, adulto e autônomo, como sujeito da Igreja, sacudiu a instituição e a pastoral da Igreja Católica. Uma Igreja que celebrava a Missa de costas para o povo e falava em latim, com a teologia e a pastoral amarrada a padrões culturais da Europa, essa Igreja deu no Concílio uma meia volta versus populum, realizou uma “virada popular”. Ela exigiu a passagem de um mundo pré-moderno e fundamentalista à assunção crítica da modernidade e a passagem do monólogo salvífico ao diálogo com outras religiões, credos e visões do mundo.

Ao definir-se como concílio pastoral, o Vaticano II utiliza uma metodologia indutiva – partir da realidade concreta das pessoas. À luz da fé, buscou com essa realidade estabelecer uma comunicação em linguagens contemporâneas, “porque uma coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades e outra é o modo de enunciá-las” (GS 62,2). “Não é o Evangelho que mudou. Nós é que começamos a compreendê-lo melhor”, disse João XXIII.


A proximidade do mundo, dos reais problemas da humanidade, e o reconhecimento da autonomia da realidade terrestre e da pessoa são aprendizados históricos; são buscas permanentes para escapar da conformação alienante à prosperidade material e da adaptação superficial a modas nesse mundo, e do distanciamento deste mundo em nichos de bem-estar espiritual.

A Conferência de Aparecida reconheceu a necessidade de a Igreja “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11).


Repensar a missão no contexto do cinquentenário do Concílio Vaticano II significa aprofundar origem e alcance da “natureza missionária” (cf. AG 2) de todos os batizados. “Fidelidade”, nessa reconstrução, só faz sentido se houver “audácia” na recepção, nos aggiornamentos contínuos e na projeção do Vaticano II.


4. Três ajustes importantes na “Virada Popular”

O Vaticano II produziu muitos frutos. Todavia, falta algo para concretizar a “virada popular”. Deus escuta os dois gritos de seu povo: o grito por justiça dos pobres e o grito por misericórdia dos pecadores. “A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia” (DM 13,6). Essa conversão passa por três retomadas da “virada popular”, por três ajustes:


- a opção pelos pobres há de ser com os pobres/outros como sujeitos;

- a opção pelos e com os leigos e leigas como povo de Deus;

- e a opção por inculturação, encarnação e aggiornamento, que são pressupostos de uma Igreja universalmente autóctone em diálogo com o mundo. Nestes três ajustes, O Irmão Carlos tem muito a nos ensinar.


4.1. Os pobres e os outros: sujeitos e mediadores

A “opção pelos pobres” e “pelos outros”, que se tornou linha mestra da reflexão teológica da AL, precisa hoje transfigurar-se em “opção com os pobres/outros” e “opção dos próprios pobres/outros” de uma Igreja povo pobre de Deus. Aparecida reconhece que os pobres “se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral [...] e dão vida ao peregrinar da Igreja” (DAp 398). “Quantas vezes os pobres e os que sofrem [...] evangelizam realmente” (DAp 257) a Igreja! Todas essas frases de efeito e benevolência para com os pobres nos documentos da Igreja ainda refletem certo paternalismo e um divórcio sociológico entre pobres e Igreja. A Igreja parece fazer algo para alguém que ainda não é Igreja.


Quando Aparecida afirma que “a Igreja é [...] casa dos pobres” (DAp 8) tem-se a impressão de que os pobres e os outros, nessa casa, habitam um quartinho de empregada ou são inquilinos e não proprietários. Também a “Igreja samaritana” (DAp 26) ainda é uma benfeitora dos pobres e não expressa sua subjetividade na Igreja pobre.

Aos pobres, sujeitos da evangelização integral, corresponde seu estatuto mediador da graça: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé” (DAp 257). Um comprometimento mais próximo com os pobres (cf. DAp 396), com a intenção de fazê-los realmente sujeitos na Igreja que desde seu batismo já são, aponta não só para uma conversão eclesial, mas para uma reestruturação pastoral que ainda não aconteceu (cf. DAp 396).


4.2. Os leigos: sacerdotes, profetas, apóstolos


Até a véspera do Vaticano II, o papel dos leigos na Igreja era o de um auxiliar e subordinado do clero. O Concílio rompeu com essa visão. A Igreja, antes de qualquer diferenciação em funções, carismas e ministérios, é povo de Deus, comunidade fraterna com uma igualdade constitucional (cf. LG 37). Os Leigos participam do sacerdócio comum dos fiéis (LG 34), do “múnus profético de Cristo” (LG 12; 35,1) e do apostolado. Essa visão do Vaticano II espera ainda por sua tradução pastoral: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do batismo e da confirmação. [...] Assim todo leigo, em virtude dos próprios dons que lhe foram conferidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja `na medida do dom de Cristo´” (LG 33,2). Geralmente, o estatuto laical participativo não avançou além de uma função consultativa. A escassez ministerial, que põe em risco a pastoral ordinária, ainda não conta, como deve, com a participação do povo de Deus, também na elaboração de alternativas.


A questão dos leigos é uma causa do povo de Deus, uma causa evangélica da igualdade dos filhos e filhas de Deus. O conjunto do povo de Deus, certamente, teria mais soluções para os problemas pastorais atuais do que um pequeno grupo clerical. O Espírito sopra onde quer. Ao definir a Igreja como “mistério” e como “povo de Deus”, o Vaticano II nos deixou muitas tarefas. Houve pequenos avanços e, atualmente, retrocessos. A tarefa da “virada popular” como “virada laical” permanece desafiadora.

4.3. Igreja autóctone: inculturação e rosto próprio


O Vaticano II procurou, com espírito crítico, acolher a realidade de seus interlocutores que vivem inseridos numa cultura específica (microestrutura) e pertencem, ao mesmo tempo, à modernidade com desafios e conquistas. Na lógica do Reino, “os pequenos”, as vítimas na estrada de Jerusalém para Jericó são caminhos da verdade e porta da vida; são lugar da epifania de Deus, por excelência. A questão social está estreitamente vinculada à questão da ortodoxia. Pecado significa também indiferença diante da exploração dos pobres e do desprezo aos que sofrem.

A “virada popular” do Vaticano II clama por uma Igreja autóctone que rompe com qualquer tipo de tutela colonial. Para que na prática pastoral possa responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual do povo de Deus, ela precisa de certa autonomia para a ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios.


A preocupação pastoral com o êxodo de católicos e com a multiplicação das denominações evangélicas leva a repensar em profundidade o ministério eclesial. Implica reformulação do ministério ordenado na linha do serviço, despojado de autoritarismo e centralismo pastoral. Leva-nos a repensar a maneira como reinserir no ministério ordenado aqueles que o deixaram e estariam dispostos a retomá-lo na nova situação de vida. E, finalmente, cabe corajosa atitude inovadora diante das possibilidades ministeriais das mulheres e homens casados.


A Igreja autóctone será uma Igreja evangelicamente pobre. Por não ter cultura própria, ela não importa cultura, mas a empresta dos respectivos povos. Ela será serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal.


Ela tem rumo. Nasce e renasce ao pé da cruz, na perseguição e na fuga, no êxodo e na peregrinação. Para que servem os discursos do aggiornamento e da inculturação se não para a construção de uma Igreja autóctone, coerente com o Evangelho e relevante para o mundo?


Para nós que, às vezes, somos missionários de Fórmula 1 com pit-stop nas comunidades e aldeias indígenas, tudo anda muito devagar.


Queríamos que Lula desse o tiro de largada para a construção da “terra sem males” dos guarani; que Evo Morales lançasse a pedra fundamental do sumak kawsai, o bem viver, dos quechua, e que com a eleição do papa Bento XVI começasse o Reino de Deus na terra. Ledo engano. Eles deram um golpe duro à nossa mentalidade construcionista e intervencionista. Não esperemos de líderes políticos ou eclesiásticos a inauguração de um paraíso terrestre, que o próprio Jesus de Nazaré se recusou a instalar. Sumak kawsai, terra sem males e Reino de Deus são árvores pequenas, como um bonsai, às vezes, até invisíveis. Num jardim que cultivamos podem-se tornar realidade como dádiva e kairós. 

Todos nós já recorremos à sombra dessas árvores, no quintal de uma Igreja despojada, que não tem pátria nem cultura, nem é dona de verdades, mas serva, samaritana, peregrina, hóspede, sinal. Ela tem rumo. Navegar é preciso. Na urgência do amor (2Cor 5,14), a nossa pastoral encontra tempo para se deixar interromper pelos pobres e pelos índios, para interromper os programas de aceleração de uma corrida ao abismo e puxar os freios de emergência. Na luta ampliamos a margem de nossa intervenção. Mas ao mesmo tempo experimentamos os limites dessa liberdade intervencionista. Para que serve então a utopia do Reino, da terra sem males, do sumak kawsay se ela nunca estará ao nosso alcance?

Ella está em el horizonte. Me acerco dos passos y ella se aleja dos passos. Caminho diez pasos, y el horizonte se desplaza diez passos más allá. A pesar de que camine, no la alcanzaré nunca. ?Para qué sirve la utopia? Sirve para esto: caminhar. (Eduardo Galeano)


Em que aspectos Charles de Foucuald e as Fraternidades foram precursores do Vaticano II? Como as Fraternidades podem contribuir para levar a diante o espírito do Concílio?