6º CAPÍTULO DA 3ª PARTE – POBREZA
“Jesus viveu pobre, amou os pobres e proclamou-os bem-aventurados. O Pe. De Foucauld amou e desejou a pobreza apaixonadamente. Todos os santos amaram a pobreza, e nela encontraram uma libertação, uma alegria e uma possibilidade de dom de si mesmos a Deus, na humildade, q somente poderão compreendê-la aqueles que tiveram tal experiência.”
“Queremos também, seguindo o exemplo do Pe. De Foucauld, e como ele, viver como pobre: por imitação de Jesus e por amor aos pobres.” O problema, porém, é complexo. “ Há pobreza e pobreza.” Uma delas “ é simples despojamento, privação, ausência de bens materiais, ausência forçada mas sem que seja por amor”. A outra é a pobreza cristã: “pobres em espírito”. “Há na pobreza um elemento espiritual e um material: a pobreza tem um corpo e uma alma. Se não se compreender bem isso a gente irá por um caminho errado e se exporá a muitas dificuldades de realização ou mesmo a desvios.”
Fatos:
-a dificuldade de vida dos que ganham muito pouco; -as restrições que isso comporta; -a insegurança do dia seguinte; -a previdência social tão parca; -a ameaça de falta de trabalho; -as dificuldades de habitação; Isso é verdadeira pobreza, quando não é lamentável miséria e privação do estritamente necessário.
“Aí está a parte material da pobreza: o espírito nem sempre está aí. Essa pobreza é suportada, mas é muito raramente desejada e amada. Recobre, frequentemente, uma avidez de desejos e de posse e que é, às vezes, tanto mais violenta quanto as riquezas, dinheiro e os prazeres que este traz, atraem ainda mais quando não foram experimentados.
Um rico que gozou até à saciedade todos os prazeres que a fortuna pode dar, percebeu muitas vezes o caráter decepcionante e limitado desta. Muitas vezes o desejo prende mais às coisas do que a própria posse”.
Há outra pobreza, a religiosa, que e situa num outro plano. “Trata-se, antes de tudo, de libertar a alma do instinto de propriedade por meio do voto religioso.
“Esse despojamento interior (...) será acompanhado de uma liberdade no uso das coisas e de um padrão de vida que escandalizam muitas vezes,porqu nem sempre refletem a pobreza interior da alma, o que faz com que tantos homens custem a acreditar que essa pobreza seja possível”.
Além disso há toda “uma segurança no fato de se pertencer a uma comunidade, a certeza do dia seguinte, a ausência total de cuidados por tudo o que diz respeito ao lado material da vida: alimentação, habitação, doença.” Esses cuidados recaem sobre os superiores, mas a maioria dos religiosos estão livres deles. Os que lutam e sofrem pela vida do dia a dia não compreendem mais a superioridade da vida religiosa e poderiam dizer que “são os religiosos que fazem o voto de pobreza e os fiéis que o praticam”.
É preciso que a renúncia seja real, “tendo em vista um dom mais absoluto de si mesmo a Deus, e não de uma evasão egoísta das responsabilidades do trabalho e dos cuidados cotidianos. Uma tal atitude seria odiosa”, negação de uma autêntica vida contemplativa.
Há, entretanto, muitos abusos que justificam o ataque à pobreza religiosa: o “nível do padrão de vida, o conforto exagerado de certos conventos”, o “caráter espaçoso e monumental das construções, a extensão e beleza dos jardins”, o “quadro agradável que somente a riqueza pode dar a uma família”.
A pobreza individual do religioso é “puramente teórica, pois a comunidade a que pertence tem a possibilidade de proporcionar-lhe um quadro de vida com que somente uma família rica poderia beneficiar-se”. Muitos jovens atuais acabam se afastando da vida religiosa justamente em busca de uma vida de pobreza mais autêntica.
“O que pensar de tudo isso? E como devemos conceber nossa pobreza, seguindo o exemplo do Irmão Carlos de Jesus”, que saiu da Trapa justamente por ter sido “devorado por essa ânsia de uma pobreza total, a exemplo do Cristo e pelo amor dos mais pequeninos?”
É preciso distinguir entre os diferentes motivos que possam levar alguém a abraçar o estado de pobreza e também distinguir entre a pobreza em espírito e a pobreza material, ou seja, entre a virtude de pobreza e o estado efetivo de pobreza.
O TER
Tendemos a nos completar com objetos exteriores a nós, o que chamamos o “ter”. O homem tende a “fixar-se nas coisas possuídas em vez de dominá-las a fim de obrigá-las a servir unicamente para o aperfeiçoamento último de seu ser espiritual de filho de Deus.”
Centraliza sua vida no TER, escraviza-se às coisas possuídas, por mais mesquinhas e materiais que sejam (cf. Lucas 12,15). Nessas condições, o ter passa a ser obstáculo e não um instrumento de aperfeiçoamento de nosso ser.
A virtude da pobreza consiste justamente em saber usar as coisas que nos são necessárias e úteis sem nunca nos deixarmos acorrentar por nenhuma delas: a liberdade espiritual completa em face de qualquer coisa que não seja o próprio Deus.
Essa pobreza se estende aos bens espirituais, como nossos conhecimentos intelectuais, das criações de nossa imaginação, da arte, até certo ponto de nossa espiritualidade e das próprias graças de oração.
“Trata-se aqui da pobreza do espírito, sem a qual é impossível entrar definitivamente no reino de Deus, sem a qual o amor de Cristo não pode reinar em nós: nenhuma exceção nem restrição pode ser acrescentada à necessidade dessa disposição, à qual a morte deve trazer seu último acabamento. Somente uma alma absolutamente pobre poderá ver a Deus face a face, depois da morte.” Sem essa pobreza, “a pobreza material perde todo sentido cristão, torna-se privação inútil ou restrição que oprime.”
O voto de pobreza visa atingir a deformação em nós do instinto de propriedade, maior obstáculo à essa pobreza de espírito. O voto, entretanto, refere-se apenas às coisas materiais e visíveis. “Como é difícil não ser possuído pelas coisas, quando se as possui e quando se pode usar delas sem discernimento!”
“O voto de pobreza diz respeito à renúncia absoluta e radical a qualquer uso do direito legítimo que possui todo homem de praticar ato de propriedade”.
Jesus fala sobre isso em Mc 10,23-26, ou seja, do perigo das riquezas. O voto de pobreza, ligado ao da obediência, “tem por finalidade fazer adquirir uma virtude interior, estabelecer o coração numa liberdade total: não define nem regula por si mesmo o uso das coisas, ou seja, o grau de pobreza material efetiva.
Mas o “espírito de pobreza e a liberdade na posse é, pois, coisa impossível às forças humanas”. “”Para os homens isto (salvar-se) é impossível, mas não para Deus, porque para Deus todas as coisas são possíveis” (Mc 10,23-26).
“É necessária a graça de Deus,como também, para praticar o despojamento de uma autêntica pobreza cristã.
As diferenças na prática da pobreza de instituto para instituto são legítimas ( o autor compara um instituto missionário com uma congregação monástica). Somente os abusos devem ser condenados. Não se deve julgar de fora para dentro. Que o Irmãozinho não julgue ninguém nem condene. A pura privação material, sem o espírito da pobreza de Cristo, não tem nenhum valor: é um corpo sem alma, uma pobreza morta.
SIMPLICIDADE DE VIDA
“Em relação a todas as coisas criadas devemos desejar ter em nosso coração as mesmas disposições de Jesus. Queremos ser pobres como Ele quis ser; é preciso, pois, aprender do Evangelho a maneira de ser pobre.”
“Jesus não despreza nenhuma das coisas simples, naturalmente boas, úteis ou necessárias ao homem. Mas só as usa na medida em que são necessárias. O que mais nos impressiona na atitude de Cristo é a sua soberana liberdade a respeito de todos os bens num nível de vida de uma grande sobriedade de posses(...) Ele quis ser pobre, simplesmente pobre, sem afetação.” Jesus não possuiu nada. Vida pública de três anos de andarilho. Não se ocupa de coisas materiais, mas também não recusa nada. Aceita o que lhe dão para comer e se abriga como pode. Dias em que não come e outros em que toma parte em refeições abundantes. Tanto passa a noite em alguma casa qualquer como ao relento. Bebe vinho e o consegue milagrosamente nas Bodas de Caná. Usa livremente tudo. Preocupa-se pelo bem-estar de seus amigos.
Os 30 anos de Nazaré marcam o nível de vida divinamente escolhido pelo Cristo: um modesto operário, nem miséria nem prosperidade. Mas atenção! Um artesão da Palestina tinha o que era necessário para viver, mas sem nenhuma necessidade fictícia para satisfazer, como um operário médio tem atualmente. A extrema simplicidade dos costumes da época não distraía o homem de seu verdadeiro destino, e o permitia ser plenamente ele mesmo em face do seu Criador. Atualmente servidões cada vez mais numerosas acorrentam nossos contemporâneos!
É preciso ver os riscos do progresso com clarividência, pois “ele prossegue numa perspectiva de mística materialista, que torna o ambiente ainda mais dissolvente para as forças do espírito”.
“Teremos que dar em silêncio o exemplo de uma pobreza que seja verdadeiramente a pobreza de Cristo”. Não podemos nos basear os bens que um operário tem, sejam quais forem! “Faz parte de nossa vocação e de nosa missão dar um testemunho de pobreza,” e que ela não se torne insípida! Devemos gritar o evangelho pela nossa vida!” O único motivo para participarmos dessas atividades de descanso que os outros têm, seria por razão de caridade ou de apostolado (coisa que para nós deve ser rara).
Se quisermos permanecer fortes e livres, o fermento de pobreza cristã de que o mundo tem necessidade para conservar o sentido do Espírito de Deus no gozo de tantas facilidades e o uso de técnicas, em si materializantes, “deveremos, com todas as nossas forças, dar o exemplo de uma grande simplicidade de vida, sem rigidez,mas sem moleza,” sem julgar os outros, eliminando o mais possível as necessidades artificiais. Amar a todos, mas estarmos no meio deles como a imagem viva do Cristo pobre.
“A pobreza de Jesus é mais do que a pobreza simplesmente operária: ela é outra coisa. Mas é verdade que no uso das coisas ordinárias, necessárias à vida cotidiana, devemos nos basear no que faria uma pobre família de trabalhadores”.
POBREZA ALEGRE
Tal deve ser a pobreza de Jesus, libertação do espírito. A alegria floresce nos santos, mesmo os mais pobres. Alegria = coração livre. Aprender com essa alegria a superar todo desejo e toda cobiça. Pertencermos apenas a Deus. Nem sempre teremos essa alegria: ela é fruto de uma vitória sobre nós mesmos, quando supõe luta. Ter alegria na privação. Preferir ter menos do que mais. “Uma privação sem alegria não é sã, não está no espírito de Cristo.
A pobreza conforme o Evangelho é um abandono de si próprio nas mãos de Deus e de sua Providência. Abandono de criança que move a solicitude paterna de Deus. Para isso é preciso tê-la experimentado. Pobreza como uma renúncia deliberada e efetiva de todas as garantias humanas e de toda a avareza. Confiança ilimitada em Deus (Lc 12,29-30; Mt 6,26).Que os apoios que temos não a enfraqueçam!
Tirar de nossa vida a avareza e a preocupação pelo futuro. Quanta falta de caridade é encoberta sob a desculpa da pobreza religiosa! Não fazer mais reservas do que convém! O que chamamos economizar é, muitas vezes, mesquinharias e avareza disfarçada! E cuidado com o instinto da velhice em fazer mais reservas, mesmo de remédios, do que mais nos convém. Dar e emprestar a quem pede (Mt 5,42).
POBREZA AUTÊNTICA
“Uma pobreza que se tornar dureza de alma para com os outros, descuido para com os fracos ou doentes, austeridade sem alegria, não é pobreza que procede do Amor, não é pobreza de Cristo” Mt 26,10-14; Mc14,6-10; Jo 12,7-8- os 300 dinheiros de perfume espalhados sobre os pés e a cabeça de Jesus - nos ensinam que “há circunstâncias em que uma autêntica pobreza cristã não deve saber calcular, nem somar, pois procura, como no Cristo, tomar a forma de um uso soberanamente livre das coisas e do dinheiro, ao serviço do amor.”
POBREZA IMITAÇÃO DE JESUS
Amor pelos pobres, sim, mas antes e em primeiro lugar, pobreza como imitação de Jesus. Conventos externamente ricos podem abrigar religiosos generosamente pobres, que não se incomodam com o quadro exterior, mas podem dar uma falsa concepção de pobreza evangélica ao povo, que não pode julgar senão no aspecto externo e com parâmetros próprios.
Por outro lado, um estado de privações e de preocupações que levam a um estado próximo da miséria, perda da liberdade da alma, do sentido da oração e da alegria do espírito, não pode ser desejado nem abraçado voluntariamente; quando for imposto, só pode ser suportado por amor. Ex.: num cárcere ou num campo de concentração; nunca devem ser buscados, nem por amor.
“A pobreza do Irmãozinho deve ser a resultante desse duplo desejo de imitar Jesus e de abraçar o estado de vida dos pobres, dos mais desamparados” Olhos fixos em Jesus! Contemplação!
ESTADO DE POBREZA COMPREENSÍVEL
Não basta ter a vida de um pobre trabalhador para se um verdadeiro pobre de Jesus. Só com luta interior estabeleceremos no coração o desapego d todas as coisas, de qualquer desejo, avareza, inveja, a estarmos sempre prontos para dar e para emprestar aos outros, a nada reservar a nós mesmos, a amar o trabalho e a dar-se a ele sem perder a liberdade que é dada pelo abandono à Providência, sem medo do futuro, feliz de sofrer às vezes o despojamento. Não se deixar prender por pequenas coisas. Ser radical nas pequenas renúncias pedidas no noviciado para ensinar-nos a “capacidade de renúncia ao espírito de propriedade, capacidade que vocês consagrarão por voto e que estará na base de sua pobreza e que será sua alma”.
Surgirão depois as dificuldades mais concretas: pôr tudo em comum, fraternalmente, na união e afeição mútua. A dificuldade difere para cada um, dependendo do tipo de vida que tinha antes, mas pobre ou menos pobre. Frio e insuficiência da alimentação. Encontrar o equilíbrio (=cada Fraternidade). A vida de oração. Tamanho pequeno do local. Barulhos da vizinhança.
“Cada um terá que sacrificar um pouco sua maneira de conceber a pobreza ou a vida religiosa. Unidos na mesma procura da pobreza.” O amor fraterno e a união resultante dele são realidades mais preciosas que a pobreza material.
VIVER COMO UM TRABALHADOR ASSALARIADO
Ou como humilde artesão > insegurança, dificuldades de vida. Conciliar as condições precárias de vida com as exigências de uma Congregação que deve ter suas casas de formação e um mínimo de administração central. Resumo da organização econômica adotada pelo autor:
-é proibido a todas as Fraternidades capitalizar dinheiro ou receber rendas;
-As Fraternidades de formação e de direção constituem o primeiro grupo, separado economicamente das outras Fraternidades.
-A Casa-Matriz pode ter reservas de dinheiro para despesas gerais de formação, estudo, viagens, instalações de oratórios nas Fraternidade. Mantida pelas doações dos irmãos, donativos e esmolas que poderão ser solicitadas.
-O segundo grupo = todas as outras Fraternidades.
-viver do seu trabalho
-suportar todas as dificuldades oriundas do desemprego, doença, greves, sem nenhum auxílio exterior.
-Não receber esmolas, nunca. Exceção: organização do oratório, despesas do culto e, excepcionalmente, para auxiliar os pobres do bairro ou um companheiro de trabalho.
-Casas alugadas.
-Contribuição à Casa-Matriz sempre que possível e uma cota determinada para manutenção dos irmãos que estudam.
-Possível auxílio a um irmão obrigado a atender às necessidades de seus parentes.
-Instalação sóbria. Estritamente só o necessário;
-Guardar a menor quantia possível de dinheiro;
-Pode-se ajudar outras Fraternidades necessitadas e Irmãozinhos doentes, mas no mesmo nível que os trabalhadores pobres.
-Dar aos mais pobres o que tiver de supérfluo.
-Roupas pobres sempre limpas. Podem ser remendadas.
-Qualquer gasto só com autorização do responsável;
-Fraternidade pobre, mas alegre e acolhedora.
-Cada irmão deve conservar para si sua austeridade;
-Ajustar a alimentação conforme o estado de saúde dos irmãos.
-Não ter medo de receber as visitas e amigos, oferecer-lhes algo, mesmo que isso falte para o dia seguinte.
A POBREZA ORGULHOSA E ENDURECIDA
É uma pobreza morta que nos afasta de Jesus. A verdadeira pobreza será também um dos caminhos da oração e do silêncio interior, doçura, que seja meiga para o sofrimento, alegre, generosa, sempre disposta a emprestar ou a dar.
Pacífica. Não há nela nenhum temor, pois é antes de tudo um abandono de criança entre as mãos do Deus - Amor e Pai. ( El-Abiodh Sidi-Cheikh, 19/03/47).