domingo, 23 de abril de 2023

D. EDSON-O PRESBÍTERO-08



No retiro que orientou para os bispos na 35ª Assembléia da CNBB, em 1996, Frei Carlos Mesters lembrava:
”No Primeiro Testamento, Deus é chamado de Pai só 15 vezes. No Segundo Testamento, que é três vezes menor que o Primeiro, Deus é chamado de Pai 245 vezes! É a explosão de uma experiência nova de Deus e da vida! Deus é Pai com coração de mãe! Esta é a grande boa notícia que Jesus nos trouxe”.

O abismo que separa povos desenvolvidos e subdesenvolvidos, brancos e negros, homens e mulheres, prova que não reconhecemos a paternidade de Deus e estamos longe de viver a fraternidade universal. A sociedade piramidal, classista e excludente é antítese do cristianismo. Na
fraternidade nos esforçamos para sermos continuadores da primeira comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus. “Quanto a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém chameis de Pai sobre a terra, pois tendes um só Pai
que está no céu. Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é vosso guia, Cristo. Antes, o maior entre vós será aquele que vos serve” (Mt 23,8- 10).

O novo céu e a nova terra que sonhamos é mesa redonda com espaço igual para todos, com pão repartido entre todos, conforme o sagrado direito da necessidade de cada um. Se o neo-liberalismo é, em sua própria essência, excludente, o cristianismo é visceralmente acolhedor e includente, a partir dos últimos que na ótica do Reino são os primeiros.
Vivendo entre os nômades do deserto, entre os tuaregues e os muçulmanos, Charles de Foucauld relata que um dos dias mais felizes de sua vida foi quando estes pobres chamaram sua choupana de “fraternidade” e a ele de “irmão universal”! Na Divina Comédia, Dante Alighieri descreve Francisco de Assis e os seus companheiros na glória do paraíso e diz que “eles encantaram o mundo com a sua concórdia (fraternura: fraternidade+ternura, dizem hoje os franciscanos) e com o seu rosto alegre”.

Os sonhos cristãos são sociais, coletivos, envolvem homens e mulheres de todas as classes e nações, de todas as raças e línguas, de todas as culturas e religiões.

Nos últimos anos, quem mais encarnou este sonho
entre nós, foi o Betinho, o militante da utopia. Revelou o rosto de 32 milhões de brasileiros excluídos, despertou a indignação ética e congregou pessoas e entidades na luta por pão, emprego e terra para todos. Um amigo que o conhecia bem, assim concluiu o comentário sobre a sua morte: “Se houver céu, Herbert de Souza é uma das presenças improváveis. É do tipo que sentará na porta e só entrará quando todos os outros chegarem”.

A fraternidade é uma humilde experiência. A fraternidade é algo concreto que vai se tecendo no dia a dia de nossa existência. É uma história de criaturas carentes e frágeis, mas que sabem repartir o riso e as lágrimas, os êxitos e os fracassos, os sonhos e as esperanças.

Na fraternidade aprendemos a respeitar os outros em suas diferenças. ‘Se pensas diferente, tu me enriqueces”, diz Dom Helder Câmara. Em todas as relações humanas (não só entre os casais), cedo ou tarde, aparecem as diferenças. Numa fraternidade onde não surgem confrontos, dificilmente se cresce no amor, dificilmente se constroem sólidas amizades. É preciso ter a coragem de interrogar-se mutuamente, com suavidade e franqueza, sem ter medo das tensões e dos possíveis confrontos. A falsa amizade vai minando e destruindo as relações fraternas.

Não seremos humanos enquanto, de modo consciente, não nos sentirmos fracos e carentes para necessitar de ajuda, compreensão e consolo de nossos irmãos. Ser fraterno é permanecer aberto e vulnerável para criar vínculos. Transcrevo aqui o testemunho sobre um bispo, narrado por um
presbítero, meu amigo:

Certa ocasião, conhecendo D. Valter Bini, sem saber que já era a despedida (porque ele partiu, logo depois, num acidente), perguntamos, um amigo e eu, como ele vivia sua vida de bispo em Lins, quais os maiores desafios etc. Ele respondeu-nos que procurava aproximar-se muito das pessoas, ouvi-las, dialogar, participar de sua vida. Buscava reduzir ao máximo suas horas de “burocracia eclesiástica” para ir ao encontro das pessoas.

Neste quadro, o maior desafio, o maior sofrimento, disse-nos ele, era o de não conseguir muitas vezes, por diversos fatores, ser bem achegado, colocando-se bem perto mesmo. E então contou-nos um fato que agora, na luz do Ressuscitado, não deve mais provocar-lhe a tristeza que vimos no seu rosto, porque ali toda a lágrima será enxugada...Tratava-se de uma jovem, colaboradora na Cúria e na pastoral, muito próxima do bispo no cotidiano, que um dia viajou inesperadamente para uma cidade vizinha, e lá, no hospital, veio a falecer. Causa mortis: complicação no parto de uma criança não-desejada. Ambas morreram. D. Valter, ao falar, transmite toda a dor sincera que o invadia: ‘Como é possível que uma pessoa que está sofrendo ao nosso lado não tenha a coragem de abrir o coração?’ Sua interrogação se desdobrava em lamento ante o irremediável” (Pe Antonio Reges Brasil, Cadernos Vocacionais 26, Loyola, 1991, p 66).

Todos nós precisamos de um ombro para chorar, para partilhar nossos fracassos, crises e sofrimentos”, costuma afirmar o Pe Dalton Barros.

E quem é que compreende melhor o padre se não o outro padre? Dom Eduardo Koaik disse-nos nesta assembléia que “formadores dos presbíteros são os próprios presbíteros, pois se conhecem mutuamente e conhecem também suas potencialidades e fragilidades”.

Aprendemos a ser presbíteros uns com os outros. Aprendemos a ser presbíteros olhando também para o testemunho de nossos bispos, nossos irmãos mais velhos, mais experientes, com a plenitude do sacramento da Ordem para serem modelos no amor e no serviço. Sob este aspecto considero-me privilegiado, pois tive a graça de viver perto e aprender de três bispos que amo e admiro muito: Dom Ivo Lorcheiter, Dom Jayme Chemello e Dom Paulo Moretto.

Bom presbítero, não é aquele que se julga sempre forte, vencedor, bem sucedido em tudo o que faz. Pelo contrário, tem melhores condições de crescer aquele que faz a experiência de suas carências e fragilidades e se deixa amar, ajudar e conduzir por Deus e pelos irmãos. “Quando eras jovem, tu mesmo te cingias e andavas por onde querias; quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te conduzirá aonde não queres” (Jo 21,18).

Fraternidade é um intercâmbio de vida para continuar peregrinando, pois também o amor se cansa. E quantos presbíteros caminham feridos, amargurados, cansados, quase mortos! A fraternidade possibilita uma humilde experiência que nos ajuda a caminhar com alegria e esperança, apesar das dificuldades e crises. Constitui, em última instância, uma comunidade de Igreja, espaço que viabiliza “as intimas relações interpessoais na fé” (cf. Puebla 641) e a experiência do encontro com Jesus.

Como os discípulos de Emaús, através da partilha das preocupações, da Palavra e da Eucaristia, descobrimos a presença de Jesus, o Bom Pastor Ressuscitado que caminha à nossa frente.

A fraternidade é um precioso dom do Senhor A fraternidade é difícil. Exige mansidão, humildade, paciência, perseverança. Podemos completar a lista lendo 1Cor 13. Só o amor de Deus, derramado em nossos corações pelo seu Espírito, pode nos revestir da graça da fraternidade e do dom da amizade.

Francisco e Clara de Assis, Carlos de Foucauld, Mahatma Gandhi, João XXIII, Martin Luther King, Teresa de Calcutá, Oscar Romero, Helder Camara, santos e santas de ontem e de hoje, tinham uma idéia fixa: chegar a ser irmãos universais de cada pessoa, acima de qualquer cor, idade, raça, sexo, cultura, religião.

Na fraternidade pretendemos viver esta mesma aventura através da acolhida, do encontro, do serviço, do diálogo. Hoje, muitos buscam a felicidade apenas no acúmulo dos bens, no consumismo, no hedonismo. Nunca irão achá-la, pois ela só existe no encontro amoroso, respeitoso, cordial. “Abrir-se para uma atitude de acolhida do outro, em especial de quem pertence a tradições religiosas e culturais diferentes.

A acolhida se refere especialmente às suas experiências espirituais mais profundas. Esta atitude está alicerçada num espírito de tolerância e respeito e se realiza mediante o diálogo aberto, que valoriza a experiência do outro e o ajuda na sua busca, sem julgar, nem condenar, nem impor” (DGAE 1995-1998, n.346). E completa Charles de Foucauld: “Dar-se a todos para dá-los a Jesus – tendo para com todos bondade e afeição fraterna, prestando todos os serviços possíveis, afetuoso nos contatos, terno irmão para todos, a fim de conduzir pouco a pouco as almas a Jesus, praticando a sua mansidão”.

Para ser cristão é indispensável aprender a ser amigo, tornar-se especialista em amizade. Creio que sem trair o sentido radical de Jo 15,13, podemos traduzir “amor maior” por amizade. Jesus, Irmão de todos, Mestre na arte de amar, nos ensina que a amizade é a forma mais concreta, visível, universal e credível de viver o novo mandamento. Todas as outras formas de amor, se não forem acompanhadas pela a amizade, acabam se diluindo e morrendo.

Acerta em cheio o poeta gaúcho Mário Quintana quando diz: “A amizade é uma espécie de amor que não morre nunca”! Para enfrentar a avassaladora onda de individualismo e exclusão de nossa época, começa a crescer, em toda a parte, o sentimento de
solidariedade e a busca de integração e de unidade. “Outro mundo é possível” e nós cristãos temos contribuição imprescindível a dar! Para os presbíteros, o fundamento teológico desta busca, além do mandamento novo, é “a íntima fraternidade sacramental” gerada pela ordenação. “Os presbíteros, estabelecidos na Ordem através da Ordenação, estão ligados entre si por uma íntima fraternidade sacramental; de modo especial formam um só presbitério na diocese para cujo serviço estão escalados sob a direção do Bispo. Com os demais membros deste presbitério, cada qual está unido por laços especiais de caridade apostólica, de ministério e fraternidade” (PO 8).

A fraternidade, decorrência e fruto do Sacramento da Ordem, precisa descobrir muitas formas para ser vivida e testemunhada entre os presbíteros e com o povo. “O ministério ordenado necessita recuperar sua vivência colegial. O Vaticano II redescobriu a natureza comunitária do ministério ordenado. Essa comunhão precisa ser vivenciada afetiva e efetivamente em todos os graus do ministério: na colegialidade episcopal e na corresponsabilidade presbiteral no interior de cada Igreja Particular. A forma individualista do ministério ordenado, além de ser uma traição à sua própria essência, é um dos principais entraves à realização de uma Igreja toda ela responsável pela missão” (DGEV 1995-1998, n.327).

Um cristão-presbítero isolado não descobriu a essência do cristianismo e nem do sacramento da Ordem. O individualismo nos isola, corta relações. A fraternidade cria laços gerados pela graça do encontro e da amizade. O Pe. Nildo Júnior, da Arquidiocese de São Paulo (Região de São Miguel), morto num acidente automobilístico com apenas dois anos de ministério, costumava repetir aos irmãos do seu presbitério: “Somos tão poucos, precisamos nos amar muito”!

A fraternidade é um precioso dom que devemos suplicar ao Senhor todos os dias. Na intimidade com o Bem Amado Irmão e Senhor Jesus e na graça da amizade aprenderemos a olhar o mundo com os olhos de Deus e a amar as pessoas com o coração de Deus Pai e Mãe. Permitiremos, assim, que o Amor do Bom Pastor passe aos irmãos e às irmãs através do nosso amor e da nossa caridade pastoral.
Jo 15,9-17; 1 Jo 3,13–24 e 4, 7-21; Rm 12,8-18; Cl 3,12-171; Cor 13, 1-13