No retiro que orientou
para os bispos na 35ª Assembléia da CNBB, em 1996, Frei
Carlos Mesters lembrava:
”No Primeiro Testamento, Deus é chamado de Pai só 15 vezes. No Segundo Testamento, que é três vezes menor que o Primeiro, Deus é chamado de Pai 245 vezes! É a explosão de uma experiência nova de Deus e da vida! Deus é Pai com coração de mãe! Esta é a grande boa notícia que Jesus nos trouxe”.
”No Primeiro Testamento, Deus é chamado de Pai só 15 vezes. No Segundo Testamento, que é três vezes menor que o Primeiro, Deus é chamado de Pai 245 vezes! É a explosão de uma experiência nova de Deus e da vida! Deus é Pai com coração de mãe! Esta é a grande boa notícia que Jesus nos trouxe”.
O abismo que separa
povos desenvolvidos e subdesenvolvidos, brancos e negros, homens e
mulheres, prova que não reconhecemos a paternidade de Deus e
estamos longe de viver a fraternidade universal. A sociedade
piramidal, classista e excludente é antítese do
cristianismo. Na
fraternidade nos
esforçamos para sermos continuadores da primeira comunidade
dos discípulos e discípulas de Jesus. “Quanto a vós,
não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é
o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém
chameis de Pai sobre a terra, pois tendes um só Pai
que está no céu.
Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é
vosso guia, Cristo. Antes, o maior entre vós será
aquele que vos serve” (Mt 23,8- 10).
O novo céu e a
nova terra que sonhamos é mesa redonda com espaço igual
para todos, com pão repartido entre todos, conforme o sagrado
direito da necessidade de cada um. Se o neo-liberalismo é, em
sua própria essência, excludente, o cristianismo é
visceralmente acolhedor e includente, a partir dos últimos que
na ótica do Reino são os primeiros.
Vivendo entre os
nômades do deserto, entre os tuaregues e os muçulmanos,
Charles de Foucauld relata que um dos dias mais felizes de sua vida
foi quando estes pobres chamaram sua choupana de “fraternidade” e
a ele de “irmão universal”! Na Divina Comédia,
Dante Alighieri descreve Francisco de Assis e os seus companheiros na
glória do paraíso e diz que “eles encantaram o mundo
com a sua concórdia (fraternura: fraternidade+ternura, dizem
hoje os franciscanos) e com o seu rosto alegre”.
Os sonhos cristãos
são sociais, coletivos, envolvem homens e mulheres de todas as
classes e nações, de todas as raças e línguas,
de todas as culturas e religiões.
Nos últimos
anos, quem mais encarnou este sonho
entre nós, foi o
Betinho, o militante da utopia. Revelou o rosto de 32 milhões
de brasileiros excluídos, despertou a indignação
ética e congregou pessoas e entidades na luta por pão,
emprego e terra para todos. Um amigo que o conhecia bem, assim
concluiu o comentário sobre a sua morte: “Se houver céu,
Herbert de Souza é uma das presenças improváveis.
É do tipo que sentará na porta e só entrará
quando todos os outros chegarem”.
A fraternidade é
uma humilde experiência. A fraternidade é algo concreto
que vai se tecendo no dia a dia de nossa existência. É
uma história de criaturas carentes e frágeis, mas que
sabem repartir o riso e as lágrimas, os êxitos e os
fracassos, os sonhos e as esperanças.
Na fraternidade
aprendemos a respeitar os outros em suas diferenças. ‘Se
pensas diferente, tu me enriqueces”, diz Dom Helder Câmara.
Em todas as relações humanas (não só
entre os casais), cedo ou tarde, aparecem as diferenças. Numa
fraternidade onde não surgem confrontos, dificilmente se
cresce no amor, dificilmente se constroem sólidas amizades. É
preciso ter a coragem de interrogar-se mutuamente, com suavidade e
franqueza, sem ter medo das tensões e dos possíveis
confrontos. A falsa amizade vai minando e destruindo as relações
fraternas.
Não seremos
humanos enquanto, de modo consciente, não nos sentirmos fracos
e carentes para necessitar de ajuda, compreensão e consolo de
nossos irmãos. Ser fraterno é permanecer aberto e
vulnerável para criar vínculos. Transcrevo aqui o
testemunho sobre um bispo, narrado por um
presbítero, meu
amigo:
“Certa ocasião,
conhecendo D. Valter Bini, sem saber que já era a despedida
(porque ele partiu, logo depois, num acidente), perguntamos, um amigo
e eu, como ele vivia sua vida de bispo em Lins, quais os maiores
desafios etc. Ele respondeu-nos que procurava aproximar-se muito das
pessoas, ouvi-las, dialogar, participar de sua vida. Buscava reduzir
ao máximo suas horas de “burocracia eclesiástica”
para ir ao encontro das pessoas.
Neste quadro, o maior
desafio, o maior sofrimento, disse-nos ele, era o de não
conseguir muitas vezes, por diversos fatores, ser bem achegado,
colocando-se bem perto mesmo. E então contou-nos um fato que
agora, na luz do Ressuscitado, não deve mais provocar-lhe a
tristeza que vimos no seu rosto, porque ali toda a lágrima
será enxugada...Tratava-se de uma jovem, colaboradora na Cúria
e na pastoral, muito próxima do bispo no cotidiano, que um dia
viajou inesperadamente para uma cidade vizinha, e lá, no
hospital, veio a falecer. Causa mortis: complicação no
parto de uma criança não-desejada. Ambas morreram. D.
Valter, ao falar, transmite toda a dor sincera que o invadia: ‘Como
é possível que uma pessoa que está sofrendo ao
nosso lado não tenha a coragem de abrir o coração?’
Sua interrogação se desdobrava em lamento ante o
irremediável” (Pe Antonio Reges Brasil, Cadernos Vocacionais
26, Loyola, 1991, p 66).
“Todos nós
precisamos de um ombro para chorar, para partilhar nossos fracassos,
crises e sofrimentos”, costuma afirmar o Pe Dalton Barros.
E quem é que
compreende melhor o padre se não o outro padre? Dom Eduardo
Koaik disse-nos nesta assembléia que “formadores dos
presbíteros são os próprios presbíteros,
pois se conhecem mutuamente e conhecem também suas
potencialidades e fragilidades”.
Aprendemos a ser
presbíteros uns com os outros. Aprendemos a ser presbíteros
olhando também para o testemunho de nossos bispos, nossos
irmãos mais velhos, mais experientes, com a plenitude do
sacramento da Ordem para serem modelos no amor e no serviço.
Sob este aspecto considero-me privilegiado, pois tive a graça
de viver perto e aprender de três bispos que amo e admiro
muito: Dom Ivo Lorcheiter, Dom Jayme Chemello e Dom Paulo Moretto.
Bom presbítero,
não é aquele que se julga sempre forte, vencedor, bem
sucedido em tudo o que faz. Pelo contrário, tem melhores
condições de crescer aquele que faz a experiência
de suas carências e fragilidades e se deixa amar, ajudar e
conduzir por Deus e pelos irmãos. “Quando eras jovem, tu
mesmo te cingias e andavas por onde querias; quando fores velho,
estenderás as mãos e outro te cingirá e te
conduzirá aonde não queres” (Jo 21,18).
Fraternidade é
um intercâmbio de vida para continuar peregrinando, pois também
o amor se cansa. E quantos presbíteros caminham feridos,
amargurados, cansados, quase mortos! A fraternidade possibilita uma
humilde experiência que nos ajuda a caminhar com alegria e
esperança, apesar das dificuldades e crises. Constitui, em
última instância, uma comunidade de Igreja, espaço
que viabiliza “as intimas relações interpessoais na
fé” (cf. Puebla 641) e a experiência do encontro com
Jesus.
Como os discípulos
de Emaús, através da partilha das preocupações,
da Palavra e da Eucaristia, descobrimos a presença de Jesus, o
Bom Pastor Ressuscitado que caminha à nossa frente.
A fraternidade é
um precioso dom do Senhor A fraternidade é difícil.
Exige mansidão, humildade, paciência, perseverança.
Podemos completar a lista lendo 1Cor 13. Só o amor de Deus,
derramado em nossos corações pelo seu Espírito,
pode nos revestir da graça da fraternidade e do dom da
amizade.
Francisco e Clara de
Assis, Carlos de Foucauld, Mahatma Gandhi, João XXIII, Martin
Luther King, Teresa de Calcutá, Oscar Romero, Helder Camara,
santos e santas de ontem e de hoje, tinham uma idéia fixa:
chegar a ser irmãos universais de cada pessoa, acima de
qualquer cor, idade, raça, sexo, cultura, religião.
Na fraternidade
pretendemos viver esta mesma aventura através da acolhida, do
encontro, do serviço, do diálogo. Hoje, muitos buscam a
felicidade apenas no acúmulo dos bens, no consumismo, no
hedonismo. Nunca irão achá-la, pois ela só
existe no encontro amoroso, respeitoso, cordial. “Abrir-se para uma
atitude de acolhida do outro, em especial de quem pertence a
tradições religiosas e culturais diferentes.
A acolhida se refere
especialmente às suas experiências espirituais mais
profundas. Esta atitude está alicerçada num espírito
de tolerância e respeito e se realiza mediante o diálogo
aberto, que valoriza a experiência do outro e o ajuda na sua
busca, sem julgar, nem condenar, nem impor” (DGAE 1995-1998,
n.346). E completa Charles de Foucauld: “Dar-se a todos para dá-los
a Jesus – tendo para com todos bondade e afeição
fraterna, prestando todos os serviços possíveis,
afetuoso nos contatos, terno irmão para todos, a fim de
conduzir pouco a pouco as almas a Jesus, praticando a sua mansidão”.
Para ser cristão
é indispensável aprender a ser amigo, tornar-se
especialista em amizade. Creio que sem trair o sentido radical de Jo
15,13, podemos traduzir “amor maior” por amizade. Jesus, Irmão
de todos, Mestre na arte de amar, nos ensina que a amizade é a
forma mais concreta, visível, universal e credível de
viver o novo mandamento. Todas as outras formas de amor, se não
forem acompanhadas pela a amizade, acabam se diluindo e morrendo.
Acerta em cheio o poeta
gaúcho Mário Quintana quando diz: “A amizade é
uma espécie de amor que não morre nunca”! Para
enfrentar a avassaladora onda de individualismo e exclusão de
nossa época, começa a crescer, em toda a parte, o
sentimento de
solidariedade e a busca
de integração e de unidade. “Outro mundo é
possível” e nós cristãos temos contribuição
imprescindível a dar! Para os presbíteros, o fundamento
teológico desta busca, além do mandamento novo, é
“a íntima fraternidade sacramental” gerada pela ordenação.
“Os presbíteros, estabelecidos na Ordem através da
Ordenação, estão ligados entre si por uma íntima
fraternidade sacramental; de modo especial formam um só
presbitério na diocese para cujo serviço estão
escalados sob a direção do Bispo. Com os demais membros
deste presbitério, cada qual está unido por laços
especiais de caridade apostólica, de ministério e
fraternidade” (PO 8).
A fraternidade,
decorrência e fruto do Sacramento da Ordem, precisa descobrir
muitas formas para ser vivida e testemunhada entre os presbíteros
e com o povo. “O ministério ordenado necessita recuperar sua
vivência colegial. O Vaticano II redescobriu a natureza
comunitária do ministério ordenado. Essa comunhão
precisa ser vivenciada afetiva e efetivamente em todos os graus do
ministério: na colegialidade episcopal e na
corresponsabilidade presbiteral no interior de cada Igreja
Particular. A forma individualista do ministério ordenado,
além de ser uma traição à sua própria
essência, é um dos principais entraves à
realização de uma Igreja toda ela responsável
pela missão” (DGEV 1995-1998, n.327).
Um cristão-presbítero
isolado não descobriu a essência do cristianismo e nem
do sacramento da Ordem. O individualismo nos isola, corta relações.
A fraternidade cria laços gerados pela graça do
encontro e da amizade. O Pe. Nildo Júnior, da Arquidiocese de
São Paulo (Região de São Miguel), morto num
acidente automobilístico com apenas dois anos de ministério,
costumava repetir aos irmãos do seu presbitério: “Somos
tão poucos, precisamos nos amar muito”!
A fraternidade é
um precioso dom que devemos suplicar ao Senhor todos os dias. Na
intimidade com o Bem Amado Irmão e Senhor Jesus e na graça
da amizade aprenderemos a olhar o mundo com os olhos de Deus e a amar
as pessoas com o coração de Deus Pai e Mãe.
Permitiremos, assim, que o Amor do Bom Pastor passe aos irmãos
e às irmãs através do nosso amor e da nossa
caridade pastoral.
Jo 15,9-17; 1 Jo
3,13–24 e 4, 7-21; Rm 12,8-18; Cl 3,12-171; Cor 13, 1-13