sábado, 8 de abril de 2023

Sofrimento Psíquico dos Presbíteros


Sofrimento psíquico dos presbíteros.

Dor institucional.

William Cesar Castilho, doutor em psicologia, psicanalista, analista institucional, é professor de psicologia na PUC-Minas; tornou-se conhecido por suas obras, artigos e conferências, sobretudo na área da psicologia da vida religiosa e presbiteral, à qual dedicou seus últimos trabalhos. Seu livro sobre a formação para a vida religiosa: “A formação religiosa em questão”, publicado pela Editoria Vozes, obteve grande aceitação e está na segunda edição. O livro sobre o sofrimento psíquico dos presbíteros nasceu de um longo trabalho com presbíteros de todo o Brasil. Para além de seu trabalho junto aos padres, o livro é fruto, também, como se constata por sua leitura, de longos anos de cuidadosa pesquisa sobre esse delicado assunto: o sofrimento psíquico dos presbíteros.


No primeiro capítulo, o autor apresenta detalhadamente o referencial teórico de sua análise do sofrimento do presbítero: a “síndrome de burnout”. O termo burnout designa a síndrome que extrai as forças, o envolvimento pessoal e a satisfação no exercício da profissão. A síndrome foi estudada preferencialmente nas categorias de profissionais que desenvolvem uma tarefa de ajuda. São numerosos os sintomas da síndrome de burnout: tristeza, vazio interior, despersonalização, alterações de comportamento, depressão, esgotamento, stress, insatisfação, recalque de conflitos internos etc.


Embora haja abordagens teóricas diferentes sobre a síndrome, os autores são unânimes quanto aos seus traços característicos e sua repercussão negativa na vida profissional. O autor mostra, no entanto, que se há consenso quanto ao diagnóstico, não o há quanto à profilaxia e identifica duas propostas de tratamento.
A primeira se define como clínica disciplinar individual. Nesse caso, dá-se atenção aos sintomas e se ignora os fatores desencadeantes da síndrome, que se torna um problema do individuo, a ser tratado com medicamentos, sobretudo antidepressivos e ansiolíticos que aliviam a sensação de esgotamento. Associa-se ao tratamento medicamentoso a terapia individual, visando à elaboração pessoal dos sintomas.


Não se questiona, pois, a instituição à qual o profissional pertence e sua implicação no seu processo de adoecimento psíquico. Uma segunda proposta de tratamento se define como clínica psicossocial institucionalizada, cuja abordagem da síndrome parte de uma epistemologia interdisciplinar. Os aspectos da existência humana são diversificados. O homem se constitui como ser psíquico, biológico, social. Seus problemas se compreendem à luz de sua inserção numa realidade concreta que envolve suas relações.


Portanto, a clínica psicossocial institucionalizada, sem negar a necessidade de tratamento medicamentoso e psicoterápico para a síndrome de burnout, inclui na sua abordagem a análise das organizações e instituições, em vista de chegar à causa do problema, que nunca se encontra somente no indivíduo, mas na teia de relações estabelecidas dentro da instituição. A intervenção para solucionar a crise chega, pois, à instituição. Se também essa não for devidamente tratada, o profissional não supera satisfatoriamente a síndrome de burnout. Aqui o trabalho se torna mais exigente, porque envolve todos os membros da instituição.


No segundo capítulo, o autor faz um longo estudo da síndrome de burnout entre os presbíteros, que se define como “síndrome do bom samaritano desiludido por compaixão”. Os presbíteros relatam os mesmos sintomas da síndrome descritos por profissionais de outras áreas: cansaço, tristeza, desilusão, esgotamento, perda de motivação para o trabalho, despersonalização, mudanças de humor e comportamento, depressão, vazio existencial etc. Tais sintomas se relacionam, no entanto, com o exercício do ministério presbiteral. Concretamente, os presbíteros reclamam de uma sobrecarga de trabalho, muitas vezes burocrático e repetitivo, com pouco retorno afetivo. Denunciam frustrações graves no contato com os paroquianos e insucessos pastorais.


Há, ainda, dificuldades de convivência entre os próprios presbíteros, marcadas por rivalidades explícitas ou camufladas, busca de prestígio e de paróquias ricas. A distribuição de cargos e funções na diocese nem sempre se baseia no princípio da justiça. Muitos relatam perda da busca da intimidade com Deus na oração, com queda no nível da espiritualidade e despersonalização. Permanece certa desconfiança da instituição. Alguns lamentam o recente retrocesso na inclusão dos leigos na vida da Igreja. A multireferencialidade atual faz o presbítero se questionar sobre sua identidade presbiteral, marcada por perda de status e privilégios numa sociedade mais secularizada e socialmente menos cristã. Tudo isso provoca baixa autoestima e enfraquecimento do sentimento de pertença ao presbitério. Muitos enfrentam sérias dificuldades para suportar a solidão, a qual se acrescentam os problemas de ordem afeito-sexual, de manejo nem sempre fácil do ponto de vista psicoespiritual.


O autor, além de mostrar, com pesquisas confiáveis, as causas do sofrimento do presbítero hoje, faz uma longa análise da situação da Igreja antes de depois do Concílio Vaticano II, enfatizando as consequências das mudanças socioculturais e históricas na vida da Igreja e na sua organização hierárquica. De fato, a Igreja ressente ainda hoje a mudança de paradigma de uma sociedade pré-moderna (cristandade) para uma sociedade moderna e pós-moderna. A passagem de uma unidade forte, centralizadora e rígida para a fragmentariedade frágil, o diálogo e a democracia fez emergir desafios de difícil solução. Do ponto de vista histórico, a síndrome de burnout desponta como consequência de profundas mudanças de paradigma na filosofia, nas ciências humanas e na cultura, com as quais a instituição nem sempre lida de modo satisfatório.


No terceiro capítulo, o mais denso do livro, o autor se debruça sobre a análise dos sintomas da síndrome de burnout entre os presbíteros e o faz a partir de um sólido referencial teórico, que leva em consideração aspectos sociais e psicológicos, sobretudo psicanalíticos. Procura mostrar os impactos da pós-modernidade sobre a vida presbiteral. Na verdade, profundas mudanças socioculturais estão na origem da síndrome do bom samaritano desiludido.


Uma vez que a vida dos presbíteros está imersa na sociedade, não se pode negar a influência que novos paradigmas sócio-históricos exercem sobre ele. O referencial do autor, no entanto, não se restringe a análises meramente teóricas, mas inclui seu longo trabalho com presbíteros de diversas dioceses. Sua abordagem une a teoria com longa escuta dos problemas dos presbíteros. A temática do capítulo se revela vasta, complexa e até polêmica. O autor trata da espiritualidade do presbítero, mostrando-a como lugar de unificação do exercício do ministério com as demandas subjetivas. Muitas vezes, a ausência do cultivo da espiritualidade desencadeia desilusão, tristeza e perda de motivação. Partindo de um estudo das motivações vocacionais, William analisa o imaginário vocacional do jovem, marcado por idealizações e fantasias que se chocam com uma realidade institucional complexa.


Normalmente, as vocações nascem nas famílias rurais, ainda bastante tradicionais, que normalmente apoiam a vocação do filho. Outros se descobrem vocacionados através da pastoral de juventude paroquial. Uma vez no Seminário, tendem a uma relação de submissão à autoridade, em vista da conquista do objetivo. No discernimento vocacional, há sempre o latente e o manifesto, como esclarece a psicanálise. O latente costuma emergir depois de o seminarista ter se tornado padre, a não ser que a formação esteja aberta para acolher a verdade conflitiva do jovem e para ajudá-lo a fazer um caminho de crescimento psicoespiritual.


Os relatos dos presbíteros revelam algumas insatisfações com a convivência no presbitério, marcada por disputas, desavenças e, às vezes, desconfiança. Nem sempre os presbíteros sentem que sua relação com o bispo e com os colegas se realiza dentro de um equilíbrio sadio. Há rivalidades, busca de paróquias mais rendosas e de maior prestígio na diocese. Por outro lado, o modelo paroquial tradicional atravessa uma crise, causada pela emergência de um modelo midiático de evangelização, que diminui o sentido de pertença a uma paróquia territorial e confunde os paroquianos. A pluralidade de movimentos, espiritualidades, estilos e modos de anunciar a evangelho deixa a sensação de certa falta de rumo.


A relação entre padres e bispos não permanece imune ao processo das transferências. A relação com a autoridade conjuga sempre amor, ódio e outros sentimentos. Muitos presbíteros falam da solidão como um desafio. Embora necessária para o processo de individuação e para a relação saudável com o outro, quando não é bem elaborada, causa muitos transtornos afetivos.
Nesse capítulo, o autor ousa abordar o tema da afetividade e da sexualidade do presbítero. Seu discurso não se prende à frieza acadêmica, mas nasce da escuta profissional e comprometida dos presbíteros.


De fato, a questão se revela espinhosa, a sexualidade permanece, muitas vezes, no âmbito do latente e a pressão institucional exerce certo controle dessa dimensão da vida do presbítero. No entanto, os temas da sexualidade, mormente da homossexualidade, emerge com força em conversas informais entre os presbíteros. Seus testemunhos são contundentes e alguns verbalizam, inclusive, uma divisão entre presbíteros homossexuais e heterossexuais, que disputam poder e prestígio. O autor analisa, ainda, a questão da pedofilia e da efebofilia, apresentando suas causas e possíveis tratamentos. Avalia também a questão do poder e do dinheiro na vida do presbítero.


O quarto capítulo aborda alternativas para a superação da síndrome de burnout a partir da pastoral presbiteral. O enfoque do autor se apoia nos dispositivos da clínica psicossocial, que envolve os presbíteros e a instituição Igreja na solução de conflitos. A pastoral presbiteral inclui três dimensões importantes: eclesial, espiritual e pastoral. Sua concretização supõe a criação de grupos terapêuticos onde os problemas sejam tratados de forma transparente e respeitosa. A clínica, nesse caso, não se define como lugar de pessoas doentes, mas lugar de cuidado com a saúde, em todos os seus níveis. Seu ambiente é agradável e democrático. Propõe-se a “fala” como excelente método de cura das questões pessoais, pastorais e relacionais. O que não pode ser falado, também não pode ser curado.


O autor quis fornecer, ainda, material metodológico em vista da viabilização da pastoral presbiteral nas dioceses, a ser alavancado pelos próprios presbíteros, vistos como protagonistas de seus saberes, de sua produção e capazes de criar instrumentos para solucionar conflitos e problemas pessoais e pastorais. William oferece uma série de propostas de encontros nos quais os padres verbalizam seus desafios e, juntos, organizam soluções possíveis. O objetivo final da pastoral presbiteral é dar mais qualidade à vida espiritual, psíquica e pastoral do presbítero, melhorando suas relações com o Bispo, com os outros presbíteros, com os fiéis e com ele mesmo. A pastoral seria uma forma saudável de lidar com os impactos negativos da pós-modernidade na vida do presbítero.


William nos brindou com um texto profundo e consistente sobre a síndrome de burnout entre os presbíteros. Seu trabalho se mostra pioneiro no contexto da Igreja no Brasil. Partindo da análise sociocultural, histórica e psicanalítica, apresenta ao leitor um livro maduro e equilibrado, que ousa enfrentar temas delicados, como o sofrimento psíquico do presbítero, de maneira discreta e respeitosa da instituição. Sua abordagem corajosa da questão da sexualidade, sustentada não só na teoria psicanalítica da sexualidade, mas na experiência da escuta e do trabalho com os presbíteros, reclama respeito. Hoje muito se escreve sobre a crise da instituição e do exercício do mistério presbiteral. Mas poucos autores têm a segurança, a experiência e a “neutralidade” do professor William.


Ele não faz críticas gratuitas à instituição, seu objetivo se resume no desejo de ajudar os presbíteros e a Igreja no manejo de suas delicadas crises atuais. Seu trabalho evidencia grande conhecimento da situação hodierna dos presbíteros, em suas dimensões mais cruciais. E o melhor é que William não somente aponta problemas, conflitos e desafios, mas investiga minuciosamente suas possíveis causas, evitando soluções prontas e apontando caminhos possíveis em vista de soluções reais e não ideais, a partir da pastoral presbiteral, alicerça no trabalho da clínica psicossocial.


Seu livro se destina a todos os estudiosos da análise institucional e, é claro, aos presbíteros e aos bispos abertos à discussão sobre os problemas que afligem a Igreja e a vida dos presbíteros. Sua leitura ilumina, enriquece, faz despontar horizontes novos de compreensão da realidade atual e deixa o grande desafio da pastoral presbiteral como caminho possível de cura e de prevenção de conflitos psíquicos, espirituais e pastorais.


Paulo Sérgio Carrara1
Rua tupis, 164 – Centro
Belo Horizonte – MG
30190-060
Email: pecarrara@terra.com.br



1 Doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte (FAJE). Professor de Teologia no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) e na FAJE, em Belo Horizonte.



Prezados(as)

O livro Sofrimento Psíquico dos Presbíteros: Dor Institucional, de autoria do professor William César Castilho Pereira, já esta disponível, pela editora Vozes.