O primeiro impacto de Deus como Absoluto o Irmão Carlos vivenciou em sua viagem de reconhecimento ao Marrocos: na descoberta da “grandeza austera do deserto” e na simplicidade religiosa dos muçulmanos. Escreve à Marie de Bondy:
“O que há de maravilhoso por aqui é o pôr-do-sol, o entardecer e a noite. Vendo esses belos crepúsculos, relembro o quanto eles lhe agradam, pois evocam a bonança que virá após a tormenta do nosso tempo. Os fins de tarde são tranquilos, as noites tão serenas, este céu imenso e estes vastos horizontes parcialmente iluminados pelos astros são tão tranquilos e, silenciosamente, de uma maneira tão penetrante cantam o Eterno, o Infinito, o Além, que seríamos capazes de passar noites inteiras nesta contemplação; no entanto, abrevio estas contemplações e, depois de alguns instantes, dirijo-me para o sacrário, pois há muito mais do que tudo isso no humilde sacrário. Tudo é nada comparado ao Bem-Amado”.
O deserto deixou no Irmão Carlos uma marca definitiva. Será como uma espécie de selo de família, de todos os ramos da família espiritual que tenham sua origem no carisma foucauldiano. Partindo de uma vasta tradição dos padres do deserto, escreve: “É necessário passar pelo deserto e nele permanecer para receber a graça de Deus: é no deserto que nos esvaziamos e nos desprendemos de tudo o que não seja Deus, onde esvaziamos completamente a casinha de nossa alma para deixar o espaço todo somente para Deus. Os hebreus passaram pelo deserto, Moisés viveu nele antes de receber a missão, Paulo, ao sair de Damasco, passou três anos na Arábia, São Jerônimo e São João Crisóstomo também se prepararam no deserto. É indispensável. É um tempo de graça. É um período pelo qual tem de passar necessariamente toda alma que queira dar fruto.
É necessário este silêncio, este recolhimento, este esquecimento de tudo o que foi criado para que Deus estabeleça na alma o seu Reino e forme na alma o espírito interior, a vida íntima com Deus, a conversação da alma com Deus na fé, na esperança, na caridade... É na solidão, vivendo somente com Deus, no recolhimento profundo da alma que esquece o que existe para viver só em comunhão com Deus, onde Deus se entrega totalmente a quem se abandona totalmente a Ele”.
Desde Abraão, nosso pai na fé, que no deserto é enviado por Deus a uma terra estranha para consolidar sua vocação; passando por todos os profetas, desde Moisés e Elias até João Batista, todos eles purificados por Deus no deserto e consumidos aí por seu amor em vista da missão; até o próprio Jesus, conduzido pelo Espírito ao deserto da tentação e periodicamente indo a lugares ermos para orar – a espiritualidade bíblica é incompreensível sem a dimensão do deserto.
O Absoluto de Deus, descoberto e vivido num primeiro tempo, mediante o deserto e o Islã, produziu no Irmão Carlos uma experiência muito intensa de dependência como criatura, antes de chegar à consciência de filiação. A experiência do deserto rompeu o ceticismo-agnosticismo científico de Carlos de Foucuald; no entanto teve um longo caminho a percorrer para descobrir, através do caminho místico da vida cristã, sua condição de filho de Deus e irmão amado de Jesus.
A relação do Irmão Carlos com o Pai está expressa na “Oração do Abandono”, considerada a maior característica de sua espiritualidade.
EM PRIMEIRO LUGAR,
deserto, é experiência do Absoluto de Deus e do relativo de tudo o mais, incluídas aí as pessoas e nós mesmos. No deserto estamos sós diante de Deus, e esta presença deveria bastar para plenificar e dar sentido à nossa vida. No deserto, o amar e buscar a Deus com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças, é a única alternativa possível e assim experimentamos a verdade fundamental da mística cristã: Deus nos amou primeiro e vem ao nosso encontro. “Agora sou eu mesmo que vou seduzi-la, vou leva-la ao deserto e conquistar seu coração” (Os 2,16). Vamos ao deserto sem enfeites e sem máscaras, no silêncio e na pobreza do ser, para escutar Deus falar ao coração, para deixar Deus ser Deus.
“O silêncio é a medida do amor. Só quem ama sabe curtir o silêncio a dois. É ruidoso o mundo em que vivemos. Há demasiadas máquinas de fazer barulho: telefone, fax, rádio, TV, veículos, campainhas. Nosso cérebro habitua-se tanto à sonoridade excessiva que custamos a desligá-lo. Uns preferem remédios que façam dormir. Outros, a bebida. Assusta-nos a hipótese de manter a casa em silêncio. Decretar o jejum de ruídos; desligar rádio, TV e telefone. Isso pode levar ao pânico. A “louca da casa”, a imaginação, entra em rebuliço, supondo que há uma notícia importante a ser ouvida ou um telefonema de urgência a ser recebido. Ou experimenta-se o medo de si mesmo. Sentir-se ameaçado por si mesmo é uma forma de loucura freqüente em quem, súbito, vê-se privado de sons exteriores. Como alguém preso no elevador. Não é a claustrofobia que amedronta. É o peso de suportar-se a si mesmo, entregue aos próprios ruídos interiores. É terrível o espectro de uma parcela dessa geração que se nutre de ruídos desconexos. Comunica-se por um código ilógico; balbucia letras musicais sem sentido; entope de sons os ouvidos, na ânsia de preencher o vazio do coração. São seres transcendentes, porém cegos. Trafegam por veredas perdidas, sem consciência de que procuram fora o que só pode ser encontrado dentro” (Frei Betto).
Os monges, os contemplativos inseridos no mundo como fermento na massa, nutrem-se de silêncio. No deserto aprendemos a gostar da solidão, ouvir a voz interior, estar só para sentir-nos intimamente acompanhados, tapar os ouvidos para escutar e auscultar Aquele que faz em nós Sua morada. Enfim, fechar os olhos para ver melhor.
Espiritualidade é deixar-nos encontrar, amar e conduzir por Deus. Assim o deserto salienta a dimensão da espera, da expectativa da visita de Deus que vem ao encontro de nossa impotência e aridez e se revela sempre maior que o nosso coração. Como nos testemunha o Irmão Carlos: “Assim que eu acreditei que havia um Deus, compreendi que só podia viver unicamente para ele: minha vocação religiosa data da mesma hora que minha fé. Deus é tão grande! Há uma diferença tão grande entre Deus e tudo que não é ele!”
Deus está sempre além das fórmulas teológicas, de qualquer utopia histórica e social, de qualquer acontecimento libertador ou de toda a beleza e bondade que vemos nas pessoas ou na natureza. No Evangelho, Jesus recomenda não multiplicarmos as palavras na oração. O Pai sabe de que necessitamos. Todavia, somos desatentos ao conselho. No Ocidente, falamos de Deus, a Deus, sobre Deus. Quase nunca deixamos Deus falar em nós. Agimos como aquela tia que liga para minha mãe: fala tanto, que nem se dá conta de que mamãe larga o fone, vai à cozinha mexer a panela e retorna. Quem muito se explica, muito se complica, pois teme a própria singularidade.
“O silêncio ajuda-nos a descer em nós mesmos para ir ao encontro de Deus e ao nosso encontro também, pois revela ao homem o seu próprio mistério, o cerne do seu ser como pessoa livre, indefinível e inacessível a qualquer ciência humana. Há uma qualidade de silêncio que nos põe em estado de escuta total. É um silêncio que nos leva ao fundo de nós mesmos, em comunhão com o Ser Absoluto que nos deu a existência. Tal silêncio é sagrado e precisa ser absoluto. É tudo ou nada. É descer no mistério do“eu” que nos conduz à fronteira do Mistério de Deus e constitui uma última preparação para a escuta da Palavra incriada que nos deu a vida ao pronunciar o nosso nome” (René Voillaume).
EM SEGUNDO LUGAR,
o deserto é o lugar da autenticidade e da verdade sobre nós mesmos, sobre o que habitualmente nos rodeia, sobre nossos trabalhos, sobre sociedade. A sós diante de Deus, no despojamento do deserto, não podemos mais nos enganar, nem continuar nos iludindo e mascarando nossa vida. Prestígio, realizações, relações pessoais, sempre mescladas de ilusões e inautenticidade, já não acobertam nossas pretensões e mentiras nem nos desviam da verdade sobre nós mesmos e a realidade que nos cerca. A ambiguidade de nossas motivações e de nossas “generosidades” vem à tona e nos vemos tal qual somos, ou melhor tal qual Deus nos vê. Por isso o deserto é o lugar da conversão e de purificação do coração porque somos ambíguos na posse dos bens (pobreza), nas relações interpessoais (amor, afeto) e no uso do poder, no exercício da autoridade (obediência). O nosso amor, vivido na castidade do celibato, exige tempo de deserto para não se perder no caminho, não se tornar coração endurecido nem transviado (cf Sl 94). Na verdade, se buscamos Deus, a tomada de consciência das mentiras e cegueiras que nos envolvem leva-nos a optar pela luz que nasce do deserto e a despegar-nos das trevas das nossas motivações, trabalhos e relações com os outros; leva-nos a silenciar as vozes enganadoras dos ídolos, das ideologias, das riquezas, do prestígio e do poder, das paixões desordenadas, das compensações sutis do prazer. O deserto é o caminho da libertação interior, onde “Deus fala ao coração” e onde o espírito do mundo, que nos fascina, pode emudecer.
EM TERCEIRO LUGAR,
o deserto nos abre à verdadeira solidariedade e misericórdia para com os irmãos e nos ajuda a amar verdadeiramente. A aprendizagem do amor fraterno requer a atitude de deserto; a fraternidade e o serviço da comunidade exigem que em nosso espírito haja espaço para a solidão e silêncio.Os Santos Padres nos ensinam que, paradoxalmente, a solidão dá lugar à misericórdia “porque nos faz morrer para o próximo”, isto é, nos impede de julgá-lo, criticá-lo, avaliá-lo, morrer a toda espécie de preconceitos, antipatias, rancores, ressentimentos e hostilidades. Isto se torna possível porque o deserto nos dá um agudo sentir de nossos próprios defeitos e misérias, nos faz “ver a trave em nosso olho” e nos brandos e misericordiosos quando se faz necessário ajudar a “tirar o cisco no olho do nosso irmão.
“O silêncio nos predispõe à compreensão dos outros, pois o hábito do silêncio nos ajuda a ouvi-los atentamente e colocar-nos em seu lugar, em vez de nos impormos por atitudes ou palavras muitas vezes indiscretas e ofensivas. Esse silêncio faz-nos fugir da tagarelice inútil, permitindo-nos ultrapassar certa superficialidade das relações humanas nas quais tão facilmente nos refugiamos”(René Voillaume).
Durante o deserto vêm à tona nossas fraquezas, incoerências, ambiguidades, infidelidades e torna-se impossível escamoteá-las ou justificá-las. Os gaúchos costumam usar uma mala de garupa que colocam nos ombros para carregar coisas na frente e atrás. Há um provérbio que aconselha a virar de lado a mala, porque costumamos colocar os defeitos dos outros na frente e os nossos atrás. A solidão do deserto possibilita-nos encarar nossos defeitos e buscar os meios para superá-los. E como certos vícios e defeitos têm raízes profundas e somos impotentes para arrancá-los, precisamos da misericórdia e do perdão do Senhor. Por isso, o deserto constitui lugar privilegiado para preparar a revisão de vida e o sacramento da reconciliação.
EM QUARTO LUGAR,
o deserto é o lugar das tentações, da crise e também da superação das mesmas. É o lugar de nosso fortalecimento e amadurecimento, já que nosso espírito se torna forte mediante a coragem no enfrentamento da prova. Para os Santos Padres, o deserto é também o lugar do demônio e para lá se dirigiam para enfrentar e vencer as tentações, inspirados no testemunho de Jesus, quando esteve no deserto por quarenta dias. Como momento forte de espiritualidade, o deserto sempre gera crise. Nele encontramos Deus, mas também o demônio. Sem tentação correríamos o risco de apoderar-nos de Deus e torná-lo inofensivo e inóquo. Pela tentação experimentamos existencialmente nossa distância de Deus, percebemos a diferença entre o homem e Deus.
Quando suplicamos; “Não nos deixeis cair em tentação” (Mt 6,13), não estamos pedindo para não sermos tentados, uma vez que isso seria até mesmo impossível, mas imploramos para não sermos devorados pela tentação ou fazermos algo que contrarie a vontade de Deus. Sem a tentação não sentiríamos o cuidado de Deus por nós, não adquiriríamos a confiança nele. Antes da tentação, poderíamos orar a Deus como a um ser longínquo, estranho. Após termos suportado a tentação por amor a Deus, Ele nos considera como alguém a quem fez um empréstimo e por isso tem o direito de receber juros, como um amigo que nos arrancou das mãos de um inimigo.
Deus se torna mais próximo e familiar. Sem a tentação podemos nos tornar desleixados, descuidados de nós mesmos e passamos pura e simplesmente a vegetar. As tentações nos forçam a viver conscientemente, a exercitar a disciplina e a ascese, a permanecer sempre vigilantes e atentos. Porque nos torna mais humanos e humildes, a tentação torna-se caminho de crescimento e amadurecimento.
A miséria de que somos feitos emerge como verdade, como desânimo e até como desespero. Somos tentados a fugir do deserto porque é difícil aguentar o vazio, a solidão, as horas intermináveis, a aparente perda de tempo. Nossas agendas estão sempre abarrotadas de compromissos. Por formação e cultura capitalista, somos naturalmente voltados para a ação, para os resultados, para extroversão. O índex do totalitarismo do consenso neoliberal decreta, hoje, o silêncio dos conceitos altruístas. Grita-se competitividade, concorrência, “performance”, disputa, privatização... Cala-se solidariedade, cooperação, doação, partilha, socialização. Edifica-se a barbárie em nome de uma civilização prometeica, na qual muitos são os excluídos e poucos os escolhidos.
Temos medo do deserto porque o caminho mais difícil é aquele que nos leva para dentro de nós mesmos. Só quem conhece a beleza do silêncio, dentro e fora de si, é capaz de viajar por seu próprio mundo interior e encontrar o Senhor que habita no mais íntimo de nós. “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora".
"Aí te procurava e lançava-me nada belo ante a beleza que tu criaste. Estavas comigo e eu não contigo. Seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam, se não existissem em ti. Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez! Brilhaste, resplandeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume e respirei. Agora anelo por ti. Provei-te, e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz” (Santo Agostinho, Confissões).
Portanto, é importante ajudar-nos em nossas fraternidades a não fugir do deserto, a realizá-lo com certa regularidade e fidelidade. Porque, ou nos entregamos a Deus, ou nos fechamos em nós mesmos, fugindo de Deus: nisto consiste a tentação. Estas duas alternativas são radicais e incompatíveis e a gravidade da crise persiste até que morramos à nossa imagem e acolhamos a presença de Deus e nos deixemos moldar e conduzir pelo seu Espírito. A graça do deserto consiste em vencer a tentação sutil que o demônio nos apresenta como um bem aparente. Deserto é o lugar de conversão e espaço vocacional. Na volta do deserto estamos mais preparados para assumir a Fraternidade (espaço eclesial), para receber o sacramento do perdão e entregar a vida ao olhar dos irmãos (revisão de vida) para buscar novos caminhos de entrega e serviço ao Senhor e aos irmãos.
Nós vamos para o deserto:
- com o Povo de Deus que “no deserto andava” em busca da Terra Prometida: somos descendentes e herdeiros de homens e mulheres do deserto.
- com os Profetas para que o fogo da paixão por Deus nos queime por dentro, e com o coração abrasado nos deixemos seduzir.
- com Maria que “guardava e meditava no seu coração" e na hora certa soube dizer: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se me mim segundo a tua palavra”
- com Jesus, nosso “único modelo”: vida toda aberta ao Pai e aos irmãos. Ele espera nossa resposta como a de Pedro: “Senhor tu conheces tudo, tu sabes que eu te amo”. Por sua vez nos dirá: “Apascenta as minhas ovelhas...Quando eras moço...Segue-me” (aqui atrás de mim); “por causa de Jesus e do Evangelho”
- com os “grandes orantes” da Igreja de ontem e de hoje
- com o testemunho fascinante e o incentivo cativante de nosso querido Ir Carlos para aprender a articular com ele a “Oração do Abandono” como Jesus no deserto e na cruz para fazer a vontade do Pai e para que venha o seu Reino.
Dom Edson Damian
Escrito quando era presbítero-missionário na Igreja de Roraima - Amazônia)