RETIRO DE 2008: TERCEIRA MEDITAÇÃO
(Carta a Maria de Bondy – 12.09.1902) “Entre as dez da manhã e as três da tarde, no verão, há um silêncio comparável ao da noite. Nestas horas vem à Fraternidade, de vez em quando, só algum viajante atrasado, algum escravo que naquele dia ainda não comeu”. O que há de maravilhoso aqui, são o pôr do sol, as tardinhas e as noites. Lembro-me, vendo o pôr de sol, que você o ama, porque lembra a grande paz que seguirá à tempestade dos nossos dias. As tardinhas são tão tranquilas, tão limpas, este grande céu e estes amplos horizontes, um pouco iluminados pelas estrelas, são tão quietos e cantam silenciosamente o Eterno, o Infinito, o além, de uma maneira tão penetrante que ficaríamos a noite inteira nesta contemplação; todavia eu encurto estas contemplações e volto, após breves instantes, diante do Sacrário, porque no humilde Sacrário há mais. Tudo é nada em comparação com o Bem-amado” (Carta a Maria de Bondy – 12.09.1902).
O DEUS A QUEM BUSCAMOS
Quem é este Deus a quem procuramos? Temos condições de encontrá-lo, conhecê-lo? Pe. Marcelo Barros, no Retiro de Goiás dizia: Nosso Deus parece como crianças que brincam de se esconder (pata cega): revela-se – esconde-se. É preciso não desistir de procurá-lo. Um velho rabino foi procurado pelo netinho, em prantos.
Brincava com o amiguinho de se esconder: ficou esperando um tempão, mas o amigo não o procurou mais e ele estava desesperado.
Sl 14,2 e Sl 3,3 – “O Senhor do alto do céu observa os filhos dos homens, para ver se, acaso, existe alguém sensato que busque a Deus, mas todos eles se extraviam eles se perverteram, não há mais ninguém que faça o bem, nem um, nem mesmo um só”. Nós buscamos a Deus no meio de tantas ambiguidades, desvios, pecados.
At 17,27 (Paulo no Areópago de Atenas) – “Homens de Atenas, em tudo vos vejo muito religiosos... encontrei um altar com esta inscrição: A um Deus desconhecido... O Deus que fez o mundo... e não habita em templos feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos de homens...
Tudo isso para que procurem o Deus e se esforcem para encontrá-lo, como que às apalpadelas, pois na verdade ele não está longe de cada um de nós”.
Procuramos às apalpadelas. Não temos fórmulas mágicas, ritos ou objetos para obrigar Deus a se revelar. Precisamos madrugar para ir ao seu encontro.
Sl 108,2 – “Desperta-te, ó minha alma, despertai-vos, harpa e cítara, quero acordar a aurora”.
É preciso sofrer as demoras de Deus, pacientes, despretensiosos. Deus cumpre as promessas, mas não quando nós queremos. Abrão tinha 75 anos quando Deus lhe prometeu um filho. Tinha 100, quando Isaac nasceu. Deus prometeu a terra de Canaã a Abrão e seus descendentes. Passaram 430 anos.
Procurar Deus mesmo que nos encontremos sozinhos nesta aventura, e todos os outros fiquem satisfeitos com seus ídolos, ou com o Deus que lhes foi apresentado.
Dn 3 – Todo mundo se prostrou diante da estátua de Nabucodonosor. Sidrac, Misac e Abdênago não. O Deus verdadeiro não aceita ser comparado a outros ídolos.O Deus desconhecido que Paulo prega em Atenas não é um ídolo a mais no Panteon dos Atenienses, mas é o único, o verdadeiro, o absoluto.
1Sm 5,1-5: Não podemos adorar ao mesmo tempo o Deus da Aliança e os idolos, servir a Deus e a Mamona: Quando os Filisteus colocaram a Arca da Aliança no templo de Dagon, o idolo apareceu destronado e quebrado.
Como buscar a Deus? Como reconhecê-lo? Como ter a certeza de que é Ele mesmo e não fruto-produto da nossa fantasia, interesses, alucinações?
Buscamos às apalpadelas. Todavia, abrindo as Escrituras, descobrimos uma grande verdade que nos dá segurança, certeza. Deus se revela aos poucos, progressivamente, mas sempre da mesma maneira, como o Deus da vida. Deus que defende, promove, protege e ampara a Vida. Assim não é somente o homem que procura Deus, mas é muito mais Deus que procura o homem e o procura para dar-lhe Vida.
Esta é a identidade do Deus verdadeiro. O critério para reconhecer o Deus verdadeiro é a Vida. Temos uma primeira revelação de Deus aos Patriarcas: Deus se revela como El Shaddai.
Gn 17,1-2 – Quando Abrão completou 99 anos, Javé lhe apareceu e disse: “Eu sou El Shaddai”. Anda na minha presença e sê perfeito, Eu instituo minha aliança entre ti e mim e te multiplicarei extremamente”.
Gn 28,3 – “Isaac chamou Jacó...”Que El Shaddai te abençoe, que ele te faça frutificar e multiplicar”.
Gn 35,11 – A Jacó em Betel “Eu sou El Shaddai, sê fecundo e multiplica-te”.
Gn 43,14 – “Que El Shaddai nos faça encontrar misericórdia junto a esse homem (José)”.
Ex 6,2-4 – Deus falou a Moisés e lhe disse: “Eu sou Javé. Apareci a Abrão, Isaac e Jacó como El Shaddai, mas pelo meu nome de Javé não lhes fui conhecido”.
Quem é El Shaddai? (Os crentes dão este nome às padarias, farmácias, sorveterias...) A Bíblia de Jerusalém no comentário a Gn 17,1 diz que a tradução comum que se dá “todo poderoso” é inexata; da raiz de uma palavra “acádica” deveríamos traduzir: o Deus da montanha, ou melhor: o Deus da estepe. Isto é, o Deus dos pastores, nômades, Hebreus que viviam nas montanhas.Na planície moravam os cananeus agricultores, lá havia as cidades, água em abundância, conforto, fartura. Os cananeus tinham seus deuses protetores e os deuses da planície. Assim os hebreus têm seu Deus, o Deus da montanha. Cananeus e Hebreus estavam sempre em brigas (Caim e Abel).
El Shaddai – o Deus da montanha defende, protege, abençoa os pequenos (Hebreus), nômades e sem terra. Deus protege Abel. El Shaddai é o excelso, todo poderoso que olha para baixo. Nasce uma espiritualidade que canta El Shaddai:
Is 57,15 “Assim diz Aquele que está nas alturas em lugar excelso, que habita a eternidade e cujo nome é santo: Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto ao abatido e ao humilde”.
Sl 138,6 – “Sim excelso é o Senhor, mas olha os pequeninos”.
Sl 113,7 – “O Senhor é excelso... ele levanta do pó o indigente, e tira o pobre do monturo”.
Magnificat – Abate os poderosos de seus tronos e exalta os humildes.
Interessante ver como Deus não escolhe o primogênito (privilegiado), mas o segundo, Caim – Abel; Ismael – Isaac; Esaú – Jacó; Rubem – Judá; Manasses – Efraim; Eliab – Davi. Deus protege e fornece a Vida, defende o pequeno, fraco e pobre.
Após ter se revelado aos Patriarcas como o Deus que defende a Vida dos pequenos, Deus se revela a Moisés como Javé. É um dos momentos mais altos de toda a teologia e espiritualidade do Antigo Testamento e no momento da pior escravidão quando a vida é esmagada e humilhada.
Ex 3,6-15 – Deus revela sua identidade em três momentos sucessivos e progressivos.
1) V 6 – “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abrão, Isaac e Jacó”. Moisés não está diante de outro deus, mas de El Shaddai, o Deus de seus pais, o Deus que é presente, que acompanha os acontecimentos, o Deus da história.
V 7-8 – Eu vi, ouvi, conheço, desci e vi. Enquanto os deuses do Faraó são deuses mortos e que dão morte, o Deus de Moisés é vivo e dá vida.
Sl. 115,59 – Quanto a seus ídolos de ouro e prata... Têm boca, mas não falam. Olhos e não podem ver. Têm ouvidos, mas não ouvem. Nariz e não podem cheirar. Têm mãos, mas não apalpam, pés e não podem andar. Sua garganta não emite som algum. Semelhantes a ele sejam os que os fabricam e quantos neles põem sua confiança.
Os adoradores dos ídolos tornam-se como ídolos; insensíveis como os ídolos, paralisados como os ídolos, incapazes como os ídolos, frios e cruéis como os ídolos.
Incapazes de ver, ouvir e sentir. A idolatria destrói a solidariedade, acaba com a fraternidade. Os ídolos do ter, poder, prazer se alimentam de vítimas humanas. A idolatria nos torna cegos, surdos. São os ídolos instalados no coração (Ez 14 3, 4,7) o ídolo do meu EU.
V 14 – “Eu sou aquele que sou”, e ajuntou. Eis como responderás aos israelitas: Aquele que se chama “Eu sou”, envia-me junto de vós... Este é o meu nome para sempre, e é assim que me chamarão de geração em geração.
Javé é aquele que é, o único, o absoluto, o verdadeiro. Os outros deuses não são. São vaidades, inexistentes, são mortos e causa da morte para seu adorador.
2 Reis 17,15 “Os Israelitas seguiram as vaidades e tornaram-se eles mesmos vaidades. Esta revelação do Deus Libertador, que dá a vida, suscita toda uma espiritualidade que canta o Deus da Vida o Deus Libertador (Salmos).
Mas não basta que Deus seja o Deus Libertador. Porque o povo esquecendo o Deus da vida, se volta continuamente para os ídolos que dão morte. Como uma adúltera, o povo esquece e abandona Deus e a aliança. Deus, para ser o Deus da vida, precisa ser o Deus misericórdia, fiel, solidário que perdoa e conserva a vida.
Ex 32 – A idolatria, o bezerro de ouro. Deus ameaça destruir o povo. Moisés intervém em favor do povo. (Moisés parece mais misericordioso que Deus).
32,14 – “O Senhor se arrependeu das ameaças que tinha proferido contra o seu povo”. Mas, Moisés não entendeu que Deus tinha perdoado e, vinga Deus em 5 momentos.
32,19 – Moisés... sua cólera se inflamou, arremessou das suas mãos as tábuas e quebrou-as.
32, 20 – Reduziu a pó o bezerro de ouro, lançou o pó na água e o fez beber ao povo.
32, 21 – Xingou o irmão Aarão.
32, 27 – “Cada um meta a espada sobre a coxa”. (mataram 3.000 homens).
33, 7 – “Moisés foi levantar a tenda a alguma distância, fora do acampamento.”
Satisfeito de ter realizado a vingança e ter dado uma lição ao povo, Moisés espera uma recompensa:
33, 18 – “Moisés disse: mostrai-me vossa glória”.
34, 6 – “Javé, Javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e fidelidade que conserva a sua graça até mil gerações, que perdoa a
iniqüidade, a rebeldia e o pecado...”.
Deus perdoa porque é o Deus da vida. Perdão é vida, vingança é morte.
Misericórdia é vida, castigo é morte.
Ez 18,23 – “Terei prazer com a morte do malvado? Oráculo do Senhor Javé. Não desejo eu antes que ele muda de proceder a vida”?
18,32 – “Não sinto prazer com a morte de quem quer que seja, oráculo do Senhor Javé! Convertei-vos e vivereis”. Também esta revelação de Deus suscitou toda uma espiritualidade que canta o Deus fiel e misericordioso especialmente nos salmos.
Mas a grande e definitiva revelação do Deus da vida é Jesus, o Bem-amado Senhor Jesus. “Nele era a vida e a vida era a luz dos homens”