Nona Meditação
“Adoração do SS.mo Sacramento perenemente exposto, amor apaixonado pelo próximo, imitação da vida escondida de Nosso Senhor Jesus em Nazaré: eis as principais características dos Pequenos Irmãos do Sagrado Coração de Jesus” (Retiro a Beni-Abbés – 29.11.1904).
Fundar uma família religiosa dos Pequenos Irmãos do Sagrado Coração de Jesus, “destinada a adorar dia e noite a Santa Eucaristia, perpetuamente exposta,na solidão e na clausura, nos paises de missão, na pobreza e no trabalho” (Carta a Maria de Bondy – 28.04.1904).
“Minha vida, numa tranqüilidade incomparável, na clausura ideal, sem muros, mas real, aos pés do Santíssimo Sacramento... seria aquela solidão que sonhava, não fosse uma coisa que me entristece, a de não poder celebrar a Santa Missa que raramente: sem um cristão que assista, quem quer que seja, não posso celebrar” (Tamanrassét 18.11.1907).
“Não se aflijam em saber-me sozinho, sem amigos, sem ajuda espiritual; não sofro minimamente por esta solidão, aliás, acho-a dulcíssima; tenho comigo o Santo Sacramento, o melhor amigo, com o qual falar dia e noite” (Tamanrassét 16.12.1905).
Depois da sua conversão, Charles de Foucauld não pensa no sacerdócio, pensa em levar uma vida o mais possível parecida a do Bem-Amado Senhor Jesus. Para realizar isto entra na trapa e depois vai a Nazaré. Num segundo tempo, nasce e cresce nele o desejo de levar este tipo de vida (pobreza, solidão, trabalho como Jesus) não em Nazaré, mas entre os pobres muçulmanos do Saara e a eles levar Jesus.
Deseja então ser sacerdote, como foi o Bem Amado e sê-lo no meio dos pobres muçulmanos. Ir. Carlos torna-se um adorador, apaixonado da Eucaristia e um “missionário” da Eucaristia.
“Já que ele está sempre conosco na Santa Eucaristia fiquemos sempre com ele, em sua companhia aos pés do Sacrário, não desperdicemos por nossa culpa um só momento que passamos diante dele. Deus está aí, o que vamos procurar alhures”? O Bem Amado, o nosso tudo está aí e nos convida a ficar em sua companhia (M.S.E.174).
A espiritualidade do Ir. Carlos é incompreensível sem a Eucaristia e assim a vida de Jesus. A Eucaristia não é como a cura de um doente que poderia ter acontecido ou não. A Eucaristia é ponto de chegada de todo um caminho.
“Acima de tudo fazer o máximo de bem que se pode fazer atualmente, aos povos muçulmanos e tão abandonados, levando no meio deles Jesus no SS.mo.Sacramento, assim como a SS.ma. Virgem santificou João Batista levando a ele Jesus” (Carta a Maria de Bondy – 09.09.1901).
A adoração e a contemplação do Bem Amado na Eucaristia é fundamental e ocupa um lugar central na espiritualidade do Ir. Carlos, assim como foi central na vida de Jesus. A Eucaristia é ponto de chegada de todo o ministério apostólico de Jesus e do seu amor aos discípulos.
Lc 22,14-15 – “Chegada que foi a hora, Jesus pôs-se à mesa e com ele os apóstolos. Disse-lhes: Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa antes de sofrer”.
Jo 13,1 – “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus, que estavam no mundo, até o extremo os amou”.
Na hora da despedida gostamos de deixar aos amigos algum objeto, que mantenha viva a lembrança do amigo (um presente, um sinal). Jesus veio para ser o Emanuel, o Deus conosco, e na hora da despedida não deixa um objeto, mas deixa a si mesmo nos sinais do pão e vinho.
“Eis que estou com vocês todos os dias...” (Mt 28,20). A Eucaristia nos primeiros séculos foi celebrada com grande liberdade e espontaneidade: da fórmula da Consagração temos 4 formulários diversos: A fração do pão ou Ceia do Senhor era celebrada com liberdade e criatividade conforme as possibilidades do tempo e do lugar. Mas a preocupação da Igreja, legítima, mas talvez excessiva, de preservar a Eucaristia de abusos e devoções, impôs uma liturgia Eucarística idêntica, intocável, estereotipada, igual em todo tempo e lugar do Vaticano à Amazônia.
A Eucaristia foi plastificada e empobrecida, mas o problema mais grave é o da autenticidade do mistério que celebramos e este problema aparece já no começo; é prova disso a primeira Carta aos Coríntios e o Evangelho de João: é o perigo de reduzir o Mistério da Eucaristia a uma cerimônia.
Então a preocupação (cf. missa da 1ª Comunhão, crisma, etc) se limita a organizar cerimônias, esteticamente perfeitas (procissões, cantos, instrumentos, vestes litúrgicas, ornamentação, incenso) e nos esquecemos que estamos fazendo memória de um homem arrastado pelas ruas, condenado à morte, crucificado, entre tormentos e ressuscitado para ensinar-nos a viver como irmãos, filhos do mesmo Pai.
O perigo do ritualismo era presente já no Antigo Testamento. Os profetas são duríssimos em denunciá-lo. Confira em Is 1,10-20 – Am 5,21-25 – Mq 6,6-8 – Os 6,6 – Eclo 34,18,22.
Para compreender a Eucaristia é preciso ter presente o contexto remoto, próximo e imediato no qual Jesus a realizou.
1- Contexto Remoto: é a vida toda de Jesus, o dom total que Jesus fez de si, o seu imenso amor. Durante toda sua vida, Jesus encurvou-se, dobrou-se, partiu-se para fazer a Vontade do Pai.
Lc 2,49 – “Não sabíeis que devo estar nas coisas do Pai”?
Jo 4,34 – “Meu alimento é fazer a vontade do Pai”.
Hb 10,5-7 – “Não quiseste sacrifícios e holocaustos. Eis que venho para fazer a tua vontade”.
Durante toda sua vida Jesus se dobrou, se encurvou, se partiu na frente dos homens, para salvá-los, curá-los, perdoá-los, consolá-los.
Mc 3,20 – “Era tanta gente que o procurava que não tinha tempo de comer um pedaço de pão”.
Jo 10,10 – “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.
Jo 15,13 – Não tem prova de amor maior que dar a vida pelos amigos.
Mas ao mesmo tempo, quantos conflitos!
2– Contexto Próximo: são os acontecimentos dos últimos dias antes da Ceia. A Ceia de Betânia (Jo12,1-11) é significativa e revela os sentimentos de Jesus e a situação de conflito que se criara em torno de Jesus: desconfiança, inveja, traição, ódio, covardia, falsa amizade, fingimento, que toca também os discípulos.
Jesus encontra-se na casa de Lázaro. Maria percebe a atmosfera da morte, clima pesado, e quer demonstrar seu afeto, ternura, amizade sincera a Jesus e o faz com o perfume. Indignação de Judas e dos discípulos.
É neste contexto de conflito, resistência dos inimigos, e de rancor, intriga, incompreensão, ingratidão, covardia dos mesmos discípulos, que Jesus celebra a Ceia, demonstrando o maior amor, pronto a dar a vida.
- – Contexto Imediato – A ceia Pascal: Jesus age conscientemente e predispõe os mínimos detalhes (Lc 22,7-13) enviando Pedro e João para preparar tudo. Ambiente: acolhedor, aconchegante e festivo. Sentado Jesus manifesta seus sentimentos. “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer”. Nesta hora santa, sagrada, esperada, aparecem todos os conflitos e rivalidades. “Quem é o maior”? – Lc 22,24.
João introduz o lava-pés: “Durante a ceia quando o demônio já tinha lançado no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de traí-lo...” E conclui o lava-pés: “Vós estais puros, mas nem todos, pois sabia quem o havia de trair”. (Jo 13,2,11).
Também Paulo, narrando a ceia, anota o contexto da morte que envolve a Ceia no começo e no fim. “O Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão... todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, lembrareis a morte do Senhor até que Ele venha”.(1Cor 23,26).
A 3ª Oração Eucarística sublinha este clima de traição e morte que envolveu a ceia do Senhor. A intenção de Paulo não era tanto de narrar a instituição da Eucaristia, mas denunciar alguns abusos, contradições, aspectos negativos que se davam em Corinto durante a Celebração da Ceia do Senhor.
Estes aspectos negativos eram tão graves que a Ceia perdia sua identidade, não era mais comer a Ceia do Senhor.(1Cor 11,20).
Aquelas celebrações causavam mais prejuízo que proveito.(1Cor 11,12). Qual era o abuso? “Mal vos pondes à mesa, cada um se apressa a tomar sua própria refeição; e enquanto uns tem fome, outros se fartam” (21). Esta falta de partilha, de solidariedade e co-divisão tira a verdadeira identidade da Ceia e a reduz a um simples rito.
A mesma preocupação de Paulo será a de João, que ao narrar a Ultima Ceia (5 capítulos) omite a narração da instituição da Eucaristia e a substitui com o lava-pés. Joao deveria ter narrado a instituição da Eucaristia para eliminar a impressão negativa suscitada entre os judeus com o discurso eucarístico (Jo 6) que parecia afirmar que os discípulos deviam tornar-e canibais (comer a carne e beber o sangue de Jesus).
Por quê a substitui com o lava-pés? João tem medo que a Eucaristia se torne uma cerimônia-rito. A Eucaristia - memória de Cristo morto e ressuscitado - deve transformar as relações humanas marcadas pelo pecado, egoísmo, ganância, violência em relações amorosas, fraternas, justas e não se tornar uma cerimônia superficial, inócua, acomodante, sentimental.
Era o mesmo pecado denunciado pelos profetas, mas infinitamente mais grave, porque naquele tempo se tratava de vítimas de animais, mas agora a vitima é o Filho de Deus.
No fim da instituição da Eucaristia há uma ordem: “fazei isto em memória de mim”. (1 Cor 11,24s). No fim do lava-pés a ordem é a mesma. “Dei-vos o exemplo, para que façam o mesmo”. (Jo 13,15). “Fazei isto” não é simplesmente celebrar, adorar, recordar, comemorar, aplaudir, honrar, glorificar, cantar, mas Fazer, Realizar. Não é simplesmente repetir gestos simbólicos, litúrgicos.
Na ceia, que é a síntese de sua vida, Jesus se partiu como se parte o pão, se dobrou, se inclinou, se prostrou, lavando os pés, se entregou totalmente, se esmigalhou e deixou comer até que não sobrou mais nada, amou até o fim. No meio da incompreensão, traição e ódio.
Celebramos uma Eucaristia verdadeira quando fazemos o mesmo, mesmo no meio de traições e incompreensões. Há Eucaristias que são verdadeiros sacrilégios (como a celebrada na Igreja do Carmo no Recife para conseguir que Domingos, o Velho, destruísse o quilombo de Palmares, e a de agradecimento pela vitoria conseguida e o assassínio de Zumbì e de todos os negros do quilombo).
Mas há Eucaristias verdadeiras como a celebrada por Oscar Romero quando seu sangue foi derramado com o de Jesus sobre o altar.
Permanecer em silencio diante do sacrário, como fazia Ir. Carlos, é permitir que o projeto de Jesus se torne o nosso projeto de vida, è partilhar os seus mesmos sentimentos, è fazer nossa a práxis de Jesus, para levar a frente o Reino
de Deus e a sua justiça. Assim o sacrário se torna o prolongamento do altar.