aprendemos a estar na vida saboreando antecipadamente o fato de que cada uma destas realidades pode ser religada a Deus. pode ser posta em ligação com Deus, porque foi sentida por Deus. padecida por Ele e assim aberta ao Pai em puro abandono.
É isso que nos permite crer verdadeiramente que o ser humano é mais do que nos querem fazer crer. E apostar nisso é toda uma espiritualidade.
Como classificar isso? É a espiritualidade de Deus no coração do mundo. Poderíamos dizer que é essencialmente o Evangelho, a simplicidade evangélica. Tão simples assim! Parece quase impossível. Mas que significa a expressão ‘Senhor do impossível?’ É essa a simplicidade da espiritualidade; como dizia Francisco de Assis, no ‘Evangelho sem glosa’, não ao pé da letra, mas sem glosa, isto é, sem adoçá-lo, sem que o matizemos demais. Isso não é fácil, mas é o que o Irmão Carlos queria viver.
E é aí que aparece precisamente a simplicidade dessa espiritualidade evangélica e o sentido profundo do estar, da presença, do partilhar, do viver junto.
É assim que vão aparecendo todos os traços que víamos ontem. Por exemplo, é uma espiritualidade de amor oblativo, porque só se pode viver assim por amor. E, portanto, é uma espiritualidade eucarística no sentido que o Irmão Carlos lhe dá: a vida entregada, a vida oferecida. São coisas tão simples e tão enormes, que as tragamos sem pensar.
Será isso o que vivemos? Será essa a espiritualidade que transmitimos? Eu me refiro mais ao modo pelo qual a Igreja se apresenta no mundo de hoje. No fundo, poderíamos dizer que essa espiritualidade nos permite, num mundo aparentemente sem Deus. estar onde Deus está e não onde o imaginamos ou onde queremos colocá-lo.
O que dá uma força surpreendente a essa maneira de ser e de viver é que essa presença que alenta e dá sentido à vida das pessoas, aparentemente inútil, é o que revela a chamada parábola do Juízo final.
Nela se manifesta de que lado se posicionou e estava Deus neste mundo aparentemente sem sentido. Isso não tem muito de religioso, de espiritual, no sentido fácil destas palavras, mas tem tudo da espiritualidade da Encarnação.
3. Missão atual dessa espiritualidade na Igreja e no mundo Situar esta experiência ou esta espiritualidade dessa maneira é importante para aquilo que nos preocupa: Qual é a atualidade desta experiência?
Para captar isso é necessário dar-se conta do contexto no qual nos situamos e que respostas tentamos dar e que poderia dar - e certamente pode dar – a proposta do Irmão Carlos. E com isso passamos já à missão desta experiência e desta espiritualidade na Igreja e no mundo.
a) “Algo novo”...
No Irmão Carlos irrompe algo que não existia na tradição anterior. Que não existia dessa maneira, que nos faz voltar à origem,pondo entre parêntese um longo tempo de história, para voltar às origens.
Mas esse princípio tinha sido algo suavizado ao longo dos séculos na espiritualidade cristã. No Irmão Carlos há uma novidade, algo que o deixava sempre inquieto: queria algo novo, radical; não sabia como nomeá-lo, não sabia como formulá-lo, plasmá -lo, mas intuía que se tratava de algo que não existia, que não se encontrava em parte nenhuma.
Visto a partir da história da Vida Religiosa, parece-me que depois do grande peso que teve no século V a vida monástica, as ordens mendicantes a partir da idade média e no princípio da idade moderna Inácio de Loiola, com outra visão de vida religiosa apostólica, só com o aparecimento do Irmão Carlos surgiu algo verdadeiramente novo, inédito.
Santo Inácio teve que lutar muito para que sua intuição não fosse reduzida ao monástico: não queria coros, penitências nem outras coisas semelhantes, porque queria ir ao mundo, aos homens, ao que ia aparecendo durante o século XVI que era o chamado novo mundo, as grandes descobertas, as cidades grandes, etc.
É o que passou-se a chamar ‘“vida religiosa apostólica”, que depois foi se desenvolvendo de maneira muito variada até o século XX. E nesse momento surge o Irmão Carlos com outra fórmula
que não se encaixa em nada disso, porque certamente não é uma vida monástica, certamente não é uma vida contemplativa como a tradicional e certamente não é uma vida apostólica como a que nós conhecemos. Mas tem de tudo: tem fraternidade, tem contemplação e tem missão. É algo paradoxal.
Então, onde situá-lo?
Digo que não tem nada de vida monástica, embora com um elemento tão importante como a fraternidade. A vida monástica surge com toda a força do Espírito num momento em que era necessário pôr em questão a adaptação da Igreja ao Império. Mas pouco a pouco, foi se distanciando dessa realidade, criando seu mundo à parte, distante da realidade.
Não era certamente isso que buscava o Irmão Carlos. Ele buscava tateando, mas não sem saber (docta ignorantia!) . Por isso pode dizer a si mesmo: não é por aí, é ‘outra coisa’.
Isso o levou a fazer um longo caminho para explicitar o que queria. Por isso não comprometeu sua vida nesse caminho. Não era tampouco uma ‘vida apostólica’ no sentido habitual e corrente dessa expressão, na qual mais de uma vez se confunde a missão com as tarefas realizadas. Ele buscava um que fazer, mas indubitavelmente se sentia ‘enviado’, não recusava realizar uma ‘missão’.