2 - Traços de um estado de espírito
a) A itinerância geográfica do Irmão Carlos não foi em vão ou inútil, não simplesmente impulso de um aventureiro - o que ele foi também quando militar. Mas quando começa seu itinerário espiritual, sua itinerância geográfica é expressão de uma itinerância espiritual, algo muito mais sério e mais profundo. Parece-me importante porque traduzi-lo em termos de itinerância significa que sua experiência, desde o princípio até o fim, é uma experiência de busca, não é uma experiência feita, acabada.
Surpreendeu-se ao ser desconcertado por Deus para fazer essa descoberta e Deus lhe pareceu sempre inalcançável, maior do que ele. Em cada momento ia captando que Deus estava sempre “ailleurs”, em outra parte e quando tentava fixá-lo, ele se lhe escapava.
Eis aí uma característica da experiência como aberta, como caminho. E por isso, desde o princípio até o fim, ele foi um buscador. Sua experiência foi vivida até o fim como algo inacabado, não porque não tivesse clareza sobre o que queria, mas como algo ao qual não se podia dar um ponto final, porque Deus pode sempre voltar a surpreender. Ou seja, nesse sentido a experiência espiritual de Carlos de Foucauld é uma experiência inacabada, aberta, em construção.
E essa forma de vivê-la é tão importante quanto os conteúdos, porque senão os conteúdos se fecham, já sabemos o que são, enquanto na realidade, vivendo abertos, os conteúdos nunca se “sabem” e isso justifica que se “busque” sempre a identidade. Não porque falte, mas porque ela não pode ser encerrada.
b) Outro traço característico dessa maneira de ser: trata-se de uma experiência interrogativa, está feita de perguntas. Desde que se pergunta: Deus existe? Até que se pergunte:
Quem é esse Deus? Como é? Onde está? Como responder- lhe? Isso o deixa inquieto até o final, nunca formulou tudo isso de maneira definitiva: foi lhe dando resposta na medida em que vivia, mais não ficava satisfeito dizendo: agora sim, agora já.
Ele não tem uma resposta feita, tem que buscá-la até o final: a busca da vontade de Deus em sua vida faz dele um itinerante, não só geograficamente, mas também em sua vida espiritual: busca a Trapa, busca ser eremita, busca o deserto, busca sem parar. Essa busca gira ao redor de uma pergunta:
Que queres de mim? Como responder? Que devo fazer?
Esse aspecto me parece fundamental. A leitura dos textos do Irmão Carlos me inspira isso. Creio que essa é uma das raízes de sua atualidade. Não é uma espiritualidade fechada, completa, feita, mas por fazer. Por isso tem todo seu sentido que vocês se perguntem:
Quais são os traços dessa identidade hoje? Não porque não saibam, estarão cansados de sabê-lo mas como mostra-los hoje para outra circunstância?
Porque Tamanrasset pode ser qualquer lugar, hoje, não necessariamente tem que ser o deserto. A descrença e o diálogo com os muçulmanos podem ser aqui, hoje. É uma maneira de dizer os acentos, os traços temos de encontrá- los na medida em que a vida nos desafia e não pensar que estão feitas. Nesse caso, bastaria vestir-se o hábito com o coraçãozinho... O que é necessário adquirir é esse olhar penetrante que ele tinha e o coração que se desfaz. E isso o importante.