sábado, 24 de março de 2012

ATUALIDADE... 6ª PARTE



6ª PARTE

b) Uma linguagem humana

Por que eu creio que essa experiência tão nova é uma experiência para o futuro?
Porque me parece que ela está traduzida na linguagem mais universal possível e se querem - entendam-me bem - menos “religiosa”: a linguagem “humana”. Essa linguagem, todos a entendem. Pode ser que uma pessoa se assuste quando lhe propomos preceitos de moral, ou na necessidade de crer na união hipostática de Jesus Cristo. Mas se vocês lhes disserem: ‘eu estou com você’, o entenderão.

Essa linguagem universal que todos entendem, que significa ela na espiritualidade do Irmão Carlos? Eu creio que é uma forma de transmitir, de fazer compreender que a experiência do Deus de Jesus anima nossa vida, que essa espiritualidade humaniza. E esse humanizar é um passo prévio ao de “cristianizar”. 

A Irmãzinha Madalena o plasmou de modo perfeito numa frase às Irmãzinhas de Jesus: “Sejam humanas antes de ser religiosas”. Isso também é profundamente do Irmão Carlos.

A linguagem humana tem um valor anterior à explicitação da fé. Por que se pode dizer que essa experiência do Deus de Jesus, essa experiência da encarnação humaniza? Porque em sua vida vocês vão manifestando que, de verdade, Deus e o ser humano não são rivais, que não lutam um contra o outro, isto é, que para ter espaço um não tem que esmagar o outro. E vice versa, Deus não cresce pisando o homem e o homem não precisa renegar a Deus para ser ele mesmo. 

Isso seria crescer de maneira inversamente proporcional. Mas não é cristão. O que a Encarnação nos diz é o contrário. Deus, ao assumir por dentro nossa vida, nos faz divinos, eleva ao máximo nossas potencialidades. E o que a filosofia tantas vezes e de diversas formas anunciou: o homem é mais do que ele mesmo, mais do que acredita ser, supera-se a si mesmo, como dizia Pascal. Estou seguro que isso não assusta vocês, mas se eu o dissesse em outros  auditórios, não faltaria quem dissesse: que barbaridade!

Ele perdeu completamente a fé! O que acontece é que entender o humano dessa maneira é levá-lo até seus limites, é entendê-lo de uma maneira à qual não estamos acostumados. Mergulhar dessa maneira no humano, descer até as profundidades do humano, para aí encontrar Deus é inverter nossa maneira de entender a Deus: não a partir da glória e do triunfo, mas a partir do pequeno. Uma amigo meu, jesuíta, tem um livro que se intitula: “Descer ao encontro de Deus”. 

Nosso imaginário nos leva a pensar que é preciso “subir ao encontro de Deus”, como se fosse necessário deixar o humano para alcançar a Deus, mas a Encarnação nos diz o contrário, é preciso descer ao encontro de Deus, porque Deus con-descendeu a descer ao nosso encontro. Não se trata de uma teologia inventada pela modernidade; é a carta aos Filipenses que nos diz isso, o hino tão conhecido (Fil 2, 6-11): Jesus, sendo de condição divina, não se agarrou desesperadamente a esse modo de ser, mas aceitou viver essa condição divina de outra forma, esvaziando-se, despojando-se, descendo, identificando-se com o humano, com o mais baixo do humano, como servo até a morte, a ponto de não ser reconhecida sua aparência humana (Is 52, 13).

A descida ao humano, com tal radicalismo, só tem duas possíveis saídas: o desespero, ou admitir que o humano que conhecemos é o humano empobrecido, que para chegar ao humano de verdade temos que distanciar-nos dos condicionamentos que nos habitam. O humano nos chega mediatizado, filtrado pelo contexto familiar, social, cultural, etc todos de uma maneira ou de outra passamos por essa experiência. E o Irmão Carlos também, certamente.

Normalmente nós trabalhamos com uma redução do ‘humano’, empobrecido e desgastado por nossa cultura. Para compreender o ‘humano cristão’ que se revela em Jesus é preciso desprender-se e purificar-se desse humano que nos habita - o humano reduzido, tantas vezes desumano - e descobrir o humano em sua autenticidade.

Porque em Jesus se revela o humano como Deus somente o sonhou e o quis. Por isso, ao vivê-lo em plenitude, Jesus evangeliza o humano, o humaniza.

d) União de contrários?

A missão de viver imersos no mundo com esse ‘espírito’ é unir com a vida dois pólos que normalmente separamos (fé e espiritualidade por um lado, a vida por outro) porque nos parecem contraditórios ou pelo menos que se excluem. Mas à luz da encarnação não é assim. Viver e manter essa tensão fecunda é o grande desafio da paradoxal experiência cristã.

No fundo, essa missão é a missão de estar na vida com Jesus e como Jesus. Nada menos e nada mais. E vive-la nessa tensão constante que introduz a vida de Jesus, isto é, num movimento também aparentemente contraditório, que nos leva por um lado a aproximar-nos cada vez mais dos outros, a ser próximos, a estar junto a eles e, por outro lado, nos separa, nos faz ‘diferentes’ como Jesus.

É a ‘diferença cristã’ do humano. Se nós quisermos  acostumar-nos com que encontramos cada dia - o humano aplastado e desfigurado - é preciso separar-se daquilo que o mundo quer fazer-nos ver e vislumbrar para além dessa ‘desfiguração’ do cotidiano, o humano ‘trans-figurado’ que está sempre ‘mais além’. 

O que havia descoberto como se fosse o definitivo. 

Sempre ia mais longe, às fronteiras do humano, poderíamos dizer.Essa tensão é muito evangélica e característica da encarnação. Mas quando tentamos levá-la a sério, ela nos deixa como se vivêssemos na intempérie. Não há tendas sob as quais esconder-se. De onde vem essa sensação de viver na intempérie? Talvez porque o conteúdo desta “espiritualidade” é simplesmente a vida, a vida de cada dia naquilo que apresente de mais banal: é esse o conteúdo.

Podem ter a impressão, talvez, de que estou exagerando, ou secularizando demais. Não, o conteúdo da vida espiritual não é algo ‘espiritualizado’, é a vida comum vivida com espírito, com o Espírito de Jesus. Isto é. a vida de cada dia vivida de outra forma, que é a forma de Jesus.

Digam-me se essa espiritualidade não tem futuro num mundo como o nosso. E a linguagem da vida e do ‘estar com’, do testemunho. Estilo de vida que surpreende e chama a atenção, linguagem que todo mundo entende. É inevitável que as pessoas se interroguem: de que vive aquele que vive assim? Isso nos faz pensar na força das palavras que Jesus dirige aos primeiros discípulos que se aproximam timidamente dele: Aonde vive? De que vives? Venham e verão. Não há outra resposta. Porque frente a vida não pode haver respostas feitas. Ou aquilo que afirma João no início de sua primeira carta: “o que vimos, o que ouvimos, o que tocamos com nossas mãos, o que os nossos lhos penetraram, etc é o que queremos transmitir-lhes para que vivam”.