quinta-feira, 28 de setembro de 2017

FM-22- O DILACERAMENTO DO AMOR



CAPÍTULO 2 DA 4ª PARTE:


O DILACERAMENTO DO AMOR (Aix, 03/08/1947).

O mundo atual está todo voltado para um mundo novo a construir, mas com horizontes puramente terrestres. A influência dos materialismos ateus torna-se cada dia mais penetrante.
Perdeu-se o sentido de Deus pessoal e vivo, transcendente a tudo o que existe, tudo o que foi criado. Deus é, muitas vezes, reduzido à evolução do mundo. “Esse clima influi sobe a mentalidade profunda da própria geração cristã, cujo cristianismo tende a consumar-se numa retomada de consciência das leis de uma fraternidade humana total.(...) Esse anseio de unidade dos homens e de sua fraternidade no amor marcará toda espiritualidade cristã do nosso século, até mesmo a espiritualidade contemplativa”.

Esse tipo de orientação no plano das realizações institucionais e sociais oferece riscos, que não foram suficientemente previstos, e já se sente desvios iminentes ou já começados. Um desses riscos é reduzir a doutrina de Cristo apenas à busca da paz, na unidade e fraternidade de uma civilização humana terrestre. “Daí a esquecer a relatividade de nosso estado e de nosso destino em face do Cristo, e de Cristo em face de Deus-Trindade, como também o caráter teocêntrico de toda religião e do próprio mundo, falta só um passo. E muitas vezes esse passo é dado inconscientemente.”

“O mundo cristão moderno está ameaçado de perder o sentido da adoração, o sentido da contemplação totalmente gratuita da Soberana Beleza e do Soberano Amor, porque perdeu, talvez, o sentido de sua profunda e total relação ao Cristo, Verbo Encarnado e Filho de Deus. Só se sentirá a necessidade da oração pra soerguer e vivificar a vida do homem. Será sentida muito menos como o ímpeto de um amor que vai direto ao Criador de todas as coisas e ao Amor encarnado, sem levar em consideração qualquer utilidade tangível. Esqueceu-se o sentido da oração pura e gratuita. Ela parece uma perda de tempo, num mundo em que a complexidade e a urgência das tarefas a realizar arrasta o homem numa verdadeira orgia de superatividade”.

Isso é decorrente da perda do sentido do silêncio e da separação do mundo por amor de Deus, exigências psicológicas de todos os que buscam a oração e a adoração. “Só se quer rezar, agindo. Só se quer dar a Deus uma ação orante”. Talvez o motivo seja a busca da eficiência tangível e terrestre em favor do homem: tendência ao “ativismo”, “primado de uma ação transitiva”, que muitas vezes é um verdadeiro culto à técnica humana, uma espécie de adoração ao que é feito pela mão do homem.

Deixa-se de falar de Jesus Cristo como Pessoa distinta , objeto pessoal de amor, vivendo atualmente junto do Pai, e falar-se-á na presença misteriosa de Cristo na humanidade. Mais se serve de Cristo do que se serve a Cristo. “Prefere-se ir a Jesus através do homem”, tendo em vista a unidade e a paz.

Sem dúvida que tudo isso é cristão, se tirarmos os exageros acima mencionados, e essa atitude marca a espiritualidade de nosso século, influindo até mesmo na oração dos contemplativos. A gravidade do assunto está em insistirmos exclusivamente sobre essa procura de Cristo através e em função do nosso irmão, mesmo que não oponhamos Deus e nossos irmãos.

O amor de que fala São João nos leva, através do silêncio e da separação da ordem criada, a Jesus Filho de Deus, na adoração e na oração gratuita que são o termo de todo amor a Deus. Não se deve opor ação e contemplação, mas há tipos de cristãos e de vocações diferentes. “Nos santos, a tensão entre as duas exigências de amor chega a tal ponto, que há, constantemente, no fundo de sua alma, o dilaceramento doloroso entre o céu e a terra, sinal certo de uma plenitude total de amor a Deus e aos homens”, reflexo do “dilaceramento infinitamente misterioso e sereno que produziu, na alma de Jesus, Filho do homem e Redentor, a absoluta claridade de amor da visão beatífica.”

Um Irmãozinho deve tender a esse dilaceramento, ao consagrar-se totalmente à missão que lhe é própria. “Trata-se do nosso dom a Jesus, tal como Ele é, na sua pessoa mesma que é principal, e se nós encontramos Jesus no Seu Corpo Místico que são os nossos irmãos, é justamente porque já encontramos Jesus vivo. Por seu amor é que o nosso coração arde de tal modo por nossos irmãos, e nós sempre compreenderemos que o mais que lhes poderemos dar é deixar-nos consumir por esse amor, em pura perda de si, diante dele”.

“Precisamos adorar, contemplar, rezar, amar, entregar-nos à imolação da cruz (...) em nosso nome e em nome de nossos irmãos”. Inserir-nos ocultamente no meio do povo com os olhos fitos em Cristo. Vocês só compreenderão sua vocação quando sentirem “nascer em si esse dilaceramento causado pela nostalgia de viver com Ele, de o encontrar, sozinho, no silêncio e na separação do que é criado.”

“Jesus amado apaixonadamente, eis o que deve primar em nossa vida e é o que devemos mostrar às pessoas pelo fato concreto, pelo que nós somos.” Nossa ação passa através de Cristo, fruto da oração e da imolação de todo o nosso ser. Não escolhemos meios humanos de amar nossos irmãos de de lhes provar o nosso amor: basta amá-los com o coração de Deus. “Para nós, não passa de uma tentação esse desejo constante de querer agir sobre o homem recorrendo a processos determinados, de querer conquistá-lo por qualquer meio humano, de querer ter uma influência, desejando, a casa instante, medi-la e calcular seus resultados tangíveis. Estes, pouco nos importam. O Padre de Foucauld não poderia registrar nenhum resultado. Nossa tarefa especial é prolongar e realizar, no seio do mundo atual e nas novas condições de vida, esta eterna missão de contemplação de Deus na Igreja.”

O mundo tem necessidade de aprender de novo a adorar e a amar Cristo por Ele mesmo, e é por isso que “nossa vida religiosa sai do claustro e pretende inserir-se no próprio seio de uma humanidade que sofre”, como definiu o Padre de Foucauld: uma vida monástica autêntica, fora do claustro e vivida no meio do trabalho cotidiano da humanidade. Nossa presença deve ser a de homens de oração, inserindo-a como um fermento na massa humana, mostrando que é possível ainda adorar e rezar nas condições de vida a que são condenados os homens de nosso século.

Redescobrir o valor do silêncio e da separação do criado, em meio do barulho dos trabalhos industriais, sem se separar dos irmãos. “Usar do mundo como se não usasse”, como diz S. Paulo, o que supõe uma completa separação e transformação interior. “Nossa vida deve provar que a oração continua possível e necessária em nosso tempo, e que Jesus pode ser amado e adorado em Si mesmo, tão apaixonadamente como há vinte séculos na Galiléia”. É uma vida bela, mas muito exigente.

Só seremos verdadeiros na vida de fé. A simplicidade de nosso relacionamento com este mundo, irradiando e testemunhando Jesus.



Tirem para si mesmos e para os irmãos todas as consequências das realidades invisíveis entre as quais vocês vivem e onde a fé lhes dá entrada. Intimidade mais viva com Jesus. Maior tomada de consciência de seus deveres de adoradores e de “consagrados” em nome dos irmãos. Exigências de silêncio e de renúncia impostas por essa ascensão na fé. “Tudo vocês devem receber de Cristo, por meio de sua Igreja: vocês receberão no silêncio do humilde e na separação do obediente (...). Como eu desejaria ver em todos essa paixão do dom completo no amor, no abandono de si, na humildade e na obediência que de um Padre de Foucauld fez um santo. Não há outro caminho”!