SEGUNDA PARTE: NAZARÉ E O PADRE DE FOUCAULD
CAP. 1- O MISTÉRIO DE NAZARÉ
(Escrito em El Abiodh Sidi Cheikh, 06/10/1946)
Dizia o Pe. De Foucauld: “O Evangelho mostrou-me que o primeiro mandamento consiste em amar a Deus de todo o meu coração e que seria preciso englobar tudo no amor; todos sabemos que o amor tem como resultado a imitação... Eu sentia que não era feito para imitar sua vida pública na pregação: deveria, pois, imitar a vida oculta do humilde e pobre operário de Nazaré” (Carta a H. De Castries, 14;04/1901).
Essa era sua “idéia-força”, de sua espiritualidade. As Fraternidades têm, por objetivo, a exemplo desse seu pai, a imitação da vida de Jesus de Nazaré. É sobre isso que falaremos agora.
A vida de Nazaré estende-se por 30 anos, desde a volta da fuga para o Egito até a estada no deserto, onde foi tentado, em que termina sua vida oculta e se inicia sua vida pública.
A “vida oculta” implica a humildade, pobreza, obediência, amor ao recolhimento, silêncio, oração solitária, apagamento voluntário, obscuridade e, de certo modo, da “abjeção”, mas não fica só nisso. Não significa um afastamento passivo do contato dos homens, afastamento que é, aliás, o modelo da vida contemplativa. O que é, então, a vida de Nazaré?
O QUE É A VIDA DE NAZARÉ
Jesus é homem e Deus ao mesmo tempo, artesão de aldeia, inserido numa raça por sua humanidade, num “clan”, numa família, como os demais. Entretanto, possuía, como Deus que era, a consciência de sua personalidade divina, de sua missão redentora universal e a visão clara do mundo da almas. Qual seria, pois a psicologia dele como adolescente?
É um mistério inacessível, como todos os casos em que relacionamos finito com infinito, e por isso não vamos nem tentar esse tipo de análise de seu estado psicológico.
Podemos, porém, saber que gênero de existência própria quis ele adotar, tendo toda essa consciência que tinha de si mesmo, de suas origens divinas, de sua finalidade redentora, portador de uma mensagem para o mundo. Mas ele se cala e oculta a todos tudo o que é essencial de sua vida interior de Cristo, de sua Missão de Redentor. “É nesse sentido que sua vida é oculta”. Para isso, absteve-se de realizar atos exteriores que revelassem sua origem divina.
Não foi,pois, escondendo-se dos outros que Jesus ocultou-se. O afastamento, a solidão, uma vida fora do comum, atrairia a atenção de todos. Foi, pois, misturando-se o mais possível a eles, perdendo-se no meio deles, que Jesus oculta sua verdadeira personalidade. Foi agindo como todos agiam que Jesus se escondeu. É o contrário dos que se afastam da sociedade para praticar uma vida contemplativa. Jesus se sepulta na obscuridade justamente fundindo sua via a uma vida comum.
Não nos interessa aqui o dia a dia de Jesus, as particularidades: só interessa saber que ele foi como todo mundo. O Evangelho garante isso. Ninguém sequer desconfiou que Ele era diferente dos outros homens.
Em Mc 6,1-6 e João 7,5, temos provas de que os Galileus se surpreenderam e até se escandalizaram ao vê-lo pregar, e membros de sua família não compreenderam sua missão.
“É bem nessa verdade total da Encarnação, nessa adaptação ao meio humano, e na ação de viver profundamente mergulhado nele, que consiste na verdade o essencial do mistério da Vida de Nazaré”
A FAMÍLIA DE NAZARÉ
Quando escolhemos nosso estado de vida não somos completamente livres. Muitos fatores que não controlamos influem sobre ele. Não escolhemos, por exemplo, nem nossa família, nem nossa raça, nem nosso meio,nem nossa educação, nem a religião em que fomos educados. Deus é que ordena o destino definitivo de cada pessoa, pois ninguém conhece o seu próprio destino, o que lhe vai acontecer na vida.
Para Jesus é diferente, pois ele escolheu seu estado de vida, de modo soberanamente livre: sua família, mãe, raça, lugar de nascimento, na sociedade humana, modo de subsistência, trabalho.
Apesar de ter sangue nobre, nasce de família pobre numa aldeia obscura. Não vive na miséria, mas numa pobreza laboriosa. Não é da última classe social, mas pobre, ganhando seu dia a dia pelo exercício de um ofício manual. Foi operário, talvez na forma de artesanato, a única da época.
Enfrenta tudo o que estava inerente à vida escolhida: trabalho corporal, salário, exigências excessivas e às vezes injustas dos clientes, dias sem trabalho e dificuldades na vida cotidiana. “Tudo isso formou,certamente, a trama diária de sua existência durante mais de 15 anos”. Acrescente a isso as relações familiares e de vizinhança e as leis judaicas do sábado, das festas e dos costumes judeus. Nem Jesus nem sua família não se esquivavam dessas coisas. A sociedade oriental é mais exigente nessas coisas.
Em alguns traços, tudo isso nos é transmitido pelos evangelhos, como por exemplo:
visitação: Lc 1,39-56
circuncisão Lc 2,21
purificação Lc 2,22
Volta a Nazaré Lc 2,39
Peregrinação anual a Jerusalém: Lc 2,41;
Perda de Jesus no templo: Lc 2,42-45
Bodas de Caná: Jo2,1-11
Jesus sobe a Jerusalém para a Páscoa: Jo 2,14
Vai à sinagoga no sábado Lc 4,16; Mc1,21
Convidado com frequência: Lc 8,36;
Opinião de sua família sobre ele: Mc 3,21;
Espantam-se de seu conhecimento: Mc 6,13 (Não é ele o carpinteiro?”
Jesus e sua família assumiram o nível de vida do seu tempo e de seu meio: tipo de higiene, medicina, organização familiar, papel destinado à mulher israelita, as imperfeições materiais, as durezas de uma civilização tecnicamente muito primitiva. Jesus só não assumiu a imperfeição moral. Assumiu até a dependência em relação aos pais, como consta em Lucas 2,51-52.
Essa vida exterior comportava uma outra invisível, interior, em Jesus: suas relações com o Pai, sua oração, sua contemplação, consciência de ser Redentor, seu imenso e infinito amor pelos outros, enfim, sua vida de Filho de Deus Salvador, com todo o valor da Redenção, conferido por esse estado de alma à menor de suas ações humanas.
Ele exerceu essa vida interior em toda a sua vida terrestre. A diferença é que em Nazaré, ele não fez nenhum gesto revelador de sua missão. “Seu amor redentor transborda, pois unicamente no silêncio da intimidade, do Filho com o Pai, numa perpétua e ardente súplica por toda a humanidade. Aos olhos dos seus, entretanto, e aos olhos de seus compatriotas, eram os gestos e os trabalhos mais cotidianos que enchiam a sua existência tão simples e comum.