sábado, 7 de janeiro de 2012

FR. HENRIQUE-C. FOUC.-09




Ao que tudo indica, Charles de Foucauld não era um homem de fácil convivência.
Por temperamento é impulsivo e frequentemente imprevisível. Faz planos ousados que depois, bruscamente, abandona ou modifica substancialmente. Sua vida apresenta numerosas rupturas e reviravoltas. Cioso de sua independência e liberdade, deixa-se, paulatinamente, seduzir por Aquele que se torna o grande Amor de sua vida. Chega, de fato, a uma generosa entrega de si mesmo a Deus, não obstante resistências que experimenta no seu interior. 

Venceu a si mesmo e encontrou-se no mais profundo de seu ser! Tornou-se pequeno e vulnerável e nesta condição pôde ser um dócil e providencial instrumento nas mãos de Deus, sobretudo em favor dos últimos, dos pobres e abandonados.

Na evolução de sua vida espiritual vemos surgir lentamente uma nova síntese entre contemplação e ação, entre o estar-com-Deus e a inserção fraterna nas realidades 
humanas mais comuns e desafiadoras.

A preciosa herança do Irmão Carlos de Jesus pode ser compendiada nos seguintes elementos intimamente associados: autêntico e cativante testemunho evangélico; solidariedade comprometida com aqueles que se encontram à margem da sociedade; diálogo inter-religioso, particularmente com o Islã, e, por fim, um valioso ensaio de inculturação da fé cristã, numa grande abertura ao diferente.

Em suma: uma mensagem de esperança que traz no seu bojo a utopia evangélica da fraternidade universal, capaz de superar as diferenças e as oposições étnicas, culturais e religiosas.

Existe um paralelismo surpreendente entre Teresa de Lisieux — nossa Santa Teresinha do Menino Jesus (1873- 1897) — e Charles de Foucauld (1858-1916). Ambos trilham a pequena via ou o caminho da infância espiritual, marcada pela simplicidade, a confiante entrega à misericórdia divina e o zelo apostólico. Interessante notar que Irmão Carlos de Jesus começa a sua vida de Nazaré no mesmo ano (1897) em que Teresa termina seu caminho terrestre. 


A mensagem espiritual de Foucauld prolonga e completa a de sua irmã na fé — nascida 15 anos depois dele — quando esta morre com apenas 24 anos de idade38 . Yves Congar OP (1904-1995) chamou Charles e Thérèse “os dois grandes luminares místicos da nossa época sombria” (“deux phares mystiques à notre époque si sombre”), mas podemos acrescentar a estes dois nomes um terceiro: o de Pierre Teilhard de Chardin SJ (1881-1955). 

Se Carlos e Teresinha vivenciam particularmente o mistério da encarnação divina, Teilhard aponta para o mistério da ressurreição de Cristo, verdade da fé igualmente central no cristianismo.

“Com a encarnação, Deus se faz pequeno, da medida de nossas dores e as dores de todos os que sofrem. Mas, faz-se pequeno e pobre, não para nos consolar nessa condição, mas, para nos revelar a nossa verdadeira grandeza. Esta grandeza é nossa vocação trinitária, que se manifesta com a Ressurreição do Filho de Deus e o seu retorno ao seio da Comunidade Trinitária. A Trindade é, ela mesma, relação dinâmica e amorosa, fonte do relacionamento que une tudo e todos no Universo.

O Irmãozinho Charles de Foucauld é o testemunho mais visível [junto com Teresinha do Menino Jesus, acrescentaríamos] no meio de nós, desse cristianismo dos pequenos, da encarnação de Jesus nas realidades terrenas.

Por sua vez, a clarividência do Padre Teilhard de Chardin faz o nosso olhar descentrar-se da nossa pequenez para nos
descobrirmos irmanados com todas as forças que regem o Universo. 

Pela ressurreição de Jesus, o Universo inteiro torna-se transparente e essa presença do Sagrado que se manifesta — mas não se confunde — em cada partícula subatômica ou estrela, verme ou animal, vinho e festa, pão e refeição. O Universo inteiro se converte, assim, em sacramento da presença da Trindade e permanece à espera de que eduquemos nosso olhar para enxergarmos essa presença”.

Charles de Foucauld não teve companheiros permanentes durante sua vida e não conseguiu nenhuma conversão entre os muçulmanos do Saara. Somente depois de sua morte vêm à luz famílias religiosas que retomam seu carisma, junto com grupos de leigos e movimentos de sacerdotes que se inspiram nele.

Os Irmãozinhos de Jesus surgem em 1933, sob a dinâmica orientação do Padre René Voillaume (1905-2003).


Seis anos depois, Magdeleine Hutin dá origem às Irmãzinhas de Jesus. 


A Família foucauldiana consta hoje de aproximadamente onze Congregações Religiosas, sete Associações de Leigos (entre os quais Institutos Seculares) e uma Espiritualidade Presbiteral. Além desses grupos, existem numerosos outros que encontram na pessoa e na espiritualidade do Irmão Carlos de Jesus uma fonte de inspiração para seguir o Cristo, hoje, antes de tudo na sua vida nazarena.

“Tende muita concórdia entre vós — exorta São Paulo na sua Carta aos Romanos (12,16); — não tenhais pretensões a grandezas, mas deixai-vos atrair pelo que é humilde”.


LITERATURA CONSULTADA: 


· ANNIE VAN JEZUS. Charles de Foucauld: in het voetspoor van Jezus van Nazareth [Charles de Foucauld: nas pegadas de Jesus de Nazaré]. Antwerpen: Halewijn, 2005. 146p. (título original: “Charles de Foucauld, sur les pas de Jésus de Nazareth”. Montrouge: Nouvelle Cité).


· BARAT, Denise e Roberto. Charles de Foucauld e a fraternidade. Rio de Janeiro: Agir, 1961. 192p. (Mestres espirituais, 7).


· BENTO XVI. Saudação aos peregrinos presentes na cerimônia de beatificação, realizada no domingo 13 de novembro. L’Osservatore Romano, Cidade do Vaticano, n.47, 19-11-2005, p.3.


· BORAU, José Luis Vásquez. Carlos de Foucauld e a espiritualidade de Nazaré. São Paulo: Loyola, 2003. 157p.


· CASSIERS, Benito et alii (Orgs.). Eu sou teu irmão: no seguimento de Jesus de Nazaré. São Paulo: Loyola, 1993. 135p.


· Charles de Foucauld, kleine broeder van Jezus. [Charles de Foucauld, irmãozinho de Jesus]. ID-Woord- em Wederwoord, Informatiedienst Centraal Missionair Beraad Religieuzen, ano 37, maio 2005, n.5, p.2-3.


· CHATELARD, Antoine. La prière d’Abandon de Charles de Foucauld. Revista Vie Consacrée, 1995, n.4, p.208-223.


· CMBR (Central Missionair Beraad Religieuzen). Op zoek naar sporen van God [Em busca de pegadas de Deus] — deel III [parte III] — Visiestuk van het CMBR over missionaire presentie en de traditie van Charles de Foucauld [uma visão sobre a presença missionária e a tradição de Charles de Jesus Cáritas 46 Foucauld]. Den Haag, maio 2007. 80p.


· FOUCAULD, Charles de. Meditações sobre o Evangelho. Lisboa: Duas Cidades, s/d. 218p.


· FOUCAULD, Charles de. Cartas e anotações. São Paulo: Paulinas, 1970. 226p. (Espiritualidade).


· FOUCAULD, Carlos de. Deus é Amor. Roma: Città Nueva, 1994. 65p.


· JOÃO PAULO II. Exortação apostólica pós-sinodal sobre a Vida Consagrada e a sua missão na Igreja e no mundo. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1996 (Magistério da Igreja, 9).


· JOÃO PAULO II. Mensagem ao Bispo da Diocese de Viviers (França), no centenário da ordenação sacerdotal de Charles de Foucauld (26-5-2001).


· MARTINS, Card. José Saraiva. O beato Charles de Foucauld:profeta da fraternidade universal. L’Osservatore Romano, Cidade do Vaticano, n.48, 26-11-2005, p. 8 e 10.


· MOORMAN, Gerard (Red.). Charles de Foucauld: missionaire presentie toen, nu en in de toekomst [Charles de Foucauld: presença missionária ontem, hoje e no futuro]. Nijmegen: NIM (Nijmeegs Instituut voor Missiologie), 2006. 53p.


· NISSEN, Peter. Charles de Foucauld: aanwezigheid als getuigenis van de Levende [Charles de Foucauld: presença como testemunho do Vivente] Revista Speling, set. 2004, p.59-66.


· PALACIO, Carlos. Reinterpretar a Vida Religiosa. São Paulo: Paulinas, 1991. 185p. Parte II: Estudo de caso (A Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus. Releitura cristológica de uma vocação particular). Jesus Cáritas 47


· Revista Heiliging. Charles de Foucauld. Brugge: Sint-  Andriesabdij, v.55, n.2, abr./jun.2005. 104p.


· SANTANGELO, Enzo. Charles de Foucauld: o irmão universal. São Paulo: Loyola, 1983. 76p. (Os agitadores, 8).


· SIX, Jean-François. Carlos de Foucauld hoje. São Paulo: Paulinas, 1979. 96p.


· SIX, Jean-François. Charles de Foucauld. São Paulo: Loyola, 1983. 85p. (Grandes biografias ilustradas).


· SIX, J.-F. La posterité de Charles de Foucauld. Revista Études, n.397, p.63-73, jul./ago. 2002.


· VOILLAUME, René. Fermento na massa. Rio de Janeiro: Agir, 1958. 470p.


· ZUBIZARRETA, Ion Etxezarreta. Irmão Carlos de Foucauld: ao encontro dos mais abandonados. São Paulo: Loyola, 1999. 270p.

Frater Henrique Cristiano José Matos Matos, irmão leigo, Rua Anchieta, 646, Bairro Padre Eustáquio, 30720-370 
Belo Horizonte MG, e-mail: fraterhc@terra.com.br

NOTAS DE RODAPÉ:
Estas notas foram deletadas no artigo, mas quem quiser conferi-las, use o texto de nosso site GRITAR O EVANGELHO COM A VIDA.

1 Esse artigo foi publicado na Revista Convergência 25/08/2007, e o publicamos no Boletim das Fraternidades com a autorização do autor.


2 Denise e Roberto BARAT, Carlos de Foucauld e a fraternidade, p.27 e 167.


3 Este estudo iniciou-se com um pedido do fundador do Eremitério Nazaré da Serra (ERNAS), cujos patronos são Santa Teresinha do Menino Jesus e o Beato Charles de Foucauld. Temos a intenção de 
ampliá-lo para ser publicado oportunamente em forma de livro.


4 Mantemos no texto o nome original em francês (quando vem junto com o sobrenome), uma vez que esta versão já é bastante familiar no Brasil. Quando empregamos isoladamente o sobrenome “Foucauld”, eliminamos a preposição “de” para manter maior fluência em nosso idioma. Fazendo referência ao seu nome de consagrado “Irmão” ( frère), traduzimos o nome próprio em português:
Irmão Carlos, ou — como gostava que o chamassem — Irmão Carlos de Jesus.


5 Jean-François SIX, Charles de Foucauld, p.12. 

6 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.11.


7 José Luis Vasquez BORAU, Carlos de Foucauld e a espiritualidade de Nazaré, p.36.


8 Jean-François SIX, Carlos de Foucauld hoje, p.34.


9 Benito CASSIERS et alii, Eu sou teu irmão, p.33.


10 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.68.


11 Ibid., p.160.


12 Ibid., p.208.


13 In: Ion Etxezarreta ZUBIZARRETA, Irmão Carlos de Foucauld, p.185.


14 Benito CASSIERS et alii, Eu sou teu irmão, p.54.


15 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.128.


16 Cf. Ion Etxezarreta ZUBIZARRETA, Irmão Carlos de Foucauld, p.249.


17 Cf. CMBR, Op zoek..., p.57.


18 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.222.


19 Ibid., p.166.


20 Jean-François SIX, Charles de Foucauld, p.43.


21 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.214.


22 Denise e Roberto BARAT, Charles de Foucauld e a fraternidade, p.128.


23 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.108.


24 Charles de FOUCAULD, Meditações sobre o Evangelho, p.155.


25 JOÃO PAULO II, Exortação apostólica pós-sinodal “Vita Consecrata”, nJesus


26 Extraído de um texto do jovem frei franciscano Fabiano Aguilar Satler ( pro manuscripto), generosamente colocado à nossa disposição.
Ver também: Card. José Saraiva MARTINS, O beato Charles de Foucauld: profeta da fraternidade, p.8, c.2: “O elemento mais novo do ensinamento de Charles de Foucauld sobre o mistério de Nazaré é que a vida escondida de Nazaré não foi unicamente uma etapa na preparação de Jesus para sua missão de Salvador, por quanto preponderante cronologicamente, era já salvação que começava a agir, por meio dele... Assim, uma alma plena de Jesus pode levar a salvação”.


27 Benito CASSIERS et alii, Eu sou teu irmão, p.45: “A intuição era novidade para seu tempo, pois até aquele momento a chamada ‘vida oculta’ de Jesus tinha-se identificado com a vida monástica. O Irmão Carlos intuiu que o seguimento de Jesus no mistério de Nazaré, longe de levá-lo à vida enclausurada, impelia-o ao contrário a misturar-se com o povo e a ser como Jesus um a mais entre os pobres e desprezados. Sua vida contemplativa se desenvolveria no meio de gente humilde. Conheceria em profundidade o coração do Senhor na medida em que vivesse materialmente como ele viveu. Faria a experiência de fraternidade universal e a proporia ao mundo”.


29 René VOILLAUME, Fermento na massa, p.162.


30 Ibid., p.150. O desejo do Irmão Carlos de “imitar a vida humilde e laboriosa de seu bem-amado Irmão e Senhor está mesmo de maneira direta na origem daquilo que é verdadeiramente novo e propriamente original em sua concepção de vida religiosa. Nazaré inspirou ao Padre de Foucauld uma nova forma de vida exterior, enquanto que sua espiritualidade se alimenta na plenitude do mistério  de Jesus, ao qual se une através do evangelho” (p.165).


31 Ibid., p.203.


32 Jean-François SIX, Carlos de Foucauld hoje, p.70-71.


33 FREI BETTO, Revista Sem Fronteiras, set. de 2003, p.35.


34 Charles de FOUCAULD, Cartas e anotações, p.198.


35 Miguel MARTEL, Carlos de Foucauld. In: Benito CASSIERS et alii, Eu sou teu irmão, p. 22: “... Ele via no colonialismo que ia submetendo esses povos uma oportunidade histórica para que eles pudessem romper suas estruturas feudais e escravagistas e abrir-se a uma cultura mais moderna e mais universal”.


36 Mensagem ao Bispo da Diocese de Viviers (26-5-2001).


37 Cf. CMBR, Op zoek..., p.11.


38 A exigüidade de um artigo (que mesmo assim ficou extenso) não permite desenvolver em pormenores este tema, assunto a ser retomado no projetado livro sobre Charles de Foucauld.


39 Frei Fabiano Aguilar Satler, ofm, pro m