sábado, 7 de janeiro de 2012

FR. HENRIQUE-C. FOUC.- 06



A atualidade do carisma foucauldiano para a Igreja  e a Vida Religiosa

Qual mensagem Charles de Foucauld tem para a Igreja e a Vida Consagrada no início deste século XXI? Pensamos que seu conteúdo possa ser compendiado em três pontos: a incessante busca de Deus no quotidiano da vida, a dimensão nazarena da vida cristã, o diálogo aprofundado com o diferente.

A busca do Absoluto de Deus 

Numa época de impressionante pluralismo, em todos os segmentos da sociedade, coloca-se com força a pergunta sobre o que realmente é decisivo na vida. 

Para o cristão apresenta-se aqui a questão do absoluto de Deus, um Deus cuja revelação plena nos é dada em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado. O que significa concretamente que Deus é Pai, simultaneamente um Ser infinitamente transcendente e infinitamente imanente, um Deus absolutamente inatingível na sua grandeza e um Deus intimamente próximo a nossa realidade terrestre.

 Charles de Foucauld chegou, progressivamente, a uma experiência verdadeiramente cristã de Deus, a partir de um encontro com o Absoluto, o Senhor Criador, imensamente grande e poderoso, reverenciado com impressionante respeito pelos muçulmanos. E ficou conhecendo um Deus próximo e amigo através da pessoa de Jesus, de Jesus Nazareno.

Apaixonou-se por este Jesus histórico a quem chamava seu bem-amado Irmão e Senhor. Por meio de Jesus de Nazaré chega a abraçar incondicionalmente o Pai. 

Famosas são suas palavras referentes à sua conversão, aos 28 anos de idade (1886): “Imediatamente, ao crer que havia um Deus, compreendi que não podia deixar de viver só para Ele. Minha vocação religiosa data do mesmo instante que minha fé” (Carta a Henri de Castries, de 14-8-1901). Com incomum ardor põe-se à procura deste Deus. Não é uma busca tranquila e sem obstáculos, pelo contrário, é uma aventura de fé, que envolve toda a sua pessoa.

Particular importância Foucauld dá ao discernimento espiritual: O que é que Deus — que tanto me ama — quer de mim? Como e onde se manifesta a sua Vontade? A procura constante da vontade do Pai é a preocupação central de Jesus, e Foucauld o segue de perto nesta busca.

Uma expressão típica desta sua atitude existencial é a conhecida Oração do abandono, diariamente rezada na Família espiritual do Irmão Carlos de Jesus. Na sua atual redação foi composta depois da morte do eremita, mas os elementos básicos se encontram na sua reflexão da passagem de Lc 23,46: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. “É esta — comenta Irmão Carlos — a última prece do nosso Mestre, de nosso Bem-amado... Que seja também a nossa... Não apenas de nosso último instante, mas de todos os instantes:

‘Pai, entrego-me nas vossas mãos. Pai, abandono-me a Vós, confio em Vós. Pai, fazei de mim tudo o que for do Vosso agrado’. Seja o que for que fizerdes comigo, agradeço-Vos!

Obrigado por tudo, estou pronto para tudo. Contanto que Vossa vontade se realize em mim, meu Deus. Contanto que Vossa vontade se cumpra em todas as Vossas criaturas, em todos os Vossos filhos. Que façam Vossa vontade todos aqueles que Vosso coração ama... Nada mais desejo, meu Deus! 

Entrego minha alma em Vossas mãos. Eu vo-la dou, meu Deus, com todo o amor de meu coração, porque Vos amo e é uma necessidade de amor para mim esta doação, esta entrega entre Vossas mãos sem condições, sem limites.

Entrego-me nas Vossas mãos com infinita confiança, pois sois meu Pai...”

Foucauld coloca-se aqui na grande tradição cristã que vê na busca da Vontade de Deus — sempre uma vontade salvífica para nosso bem — o âmago de toda a vida de um cristão e a razão de sua oração. 

Interessante notar que o conteúdo da mencionada oração de Foucauld está igualmente presente no livro da Imitação de Cristo, obra atribuída a Tomás Hemerken (meados do século XV):


“Fazei de mim, Senhor, tudo o que quiserdes, contanto que permaneça em Vós, reta e firme, a minha vontade. Pois não pode deixar de ser bom tudo o que fizerdes de mim. Se quereis que esteja nas trevas, bendito sejais; e se quereis que esteja na luz, sede também bendito, e se quereis que esteja atribulado, sede igualmente para sempre bendito”

(Livro III, cap. 17, n.2; ver também Livro III, cap. 15, n.2).

Rezar esta Oração da Entrega é descentrar-se de si mesmo e orientar-se inteiramente para Deus e para a causa de seu Reino. É uma oração libertadora voltada para a essência de toda atividade orante: a comunhão com Deus-


Pai, por Jesus, na unidade do Espírito.


Não obstante a oração foucauldiana deixe de mencionar explicitamente o nome de Jesus, toda prece é permeada de sua presença filial. Supérfluo dizer como é atual esta atitude de abandono, de confiante entrega a Deus, para nós, religiosos, hoje. Remete-nos ao fundamento de nossa consagração: viver para Deus, abraçando sua causa, que coincide com o anúncio e a instauração de seu Reino, com tudo que isso significa em termos de engajamento social, para que na sociedade de nossos dias haja justiça, 
paz, solidariedade e compaixão. 

Como é importante, neste momento, que a Vida Religiosa se descentre de si mesma, de sua comodidade e estruturas de segurança, para lançar-se na aventura da fé, por caminhos que o Espírito — mediante os sinais dos tempos — está abrindo para nós.


Na sua busca apaixonante por Deus, Charles de Foucauld nos mostra a riqueza de sua experiência de deserto, não tanto no que diz respeito ao lugar geográfico, mas, sim, ao seu significado espiritual. No despojamento do supérfluo, na solidão em que nos confrontamos diretamente conosco mesmo e com as nossas mais secretas motivações, é que perceberemos, com acuidade maior, o derradeiro sentido da nossa existência. “Nas profundezas descobrimos o único e mesmo rio subterrâneo que alimenta as fontes de água na superfície” (Frei Fabiano, ofm). 


Como é urgente revalorizar também o silêncio para nos situarmos novamente no nosso verdadeiro ser, numa atitude existencial diante do Absoluto. Com fina sensibilidade o percebeu o Papa Paulo VI, na sua visita a Nazaré (5-1-1964): “Ó como gostaríamos de voltar à infância e seguir essa humilde e sublime escola de Nazaré!... Primeiro, uma lição de silêncio. Que renasça em nós a estima pelo silêncio, essa admirável e indispensável condição do espírito; em nós, assediados por tantos clamores, ruídos e gritos em nossa vida moderna barulhenta e hipersensibilizada.


Ó silêncio de Nazaré, ensina-nos o  recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres.


Ensina-nos a necessidade e o valor das preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê no segredo”.

Deveríamos criar na nossa Vida Religiosa espaços para este silêncio interior e também lugares específicos onde pudéssemos reaprender a apreciá-lo e experimentar concretamente como faz bem ao corpo e ao espírito. Não seria uma nobre missão da Vida Consagrada, hoje, ajudar seus próprios membros e outras pessoas, a sentirem novamente a sede pelo deserto e pelo silêncio, numa sociedade em que literalmente tudo convida constantemente à dispersão e à superficialidade?

A espiritualidade foucauldiana pode oferecer uma fecunda inspiração na busca de caminhos concretos.

Charles de Foucauld nunca se contentou com o simplesmente instituído. Foi um homem sempre à procura daquilo que mais lhe parecia conforme a vontade divina. Era alguém aberto ao que hoje  chamamos os sinais dos tempos, e também dócil à orientação de pessoas maduras na fé. Está aqui, igualmente, um desafio para nós, religiosos e religiosas, hoje. 

Temos grande necessidade de auscultar os novos apelos do Espírito e temos urgência de nos escutarmos bem uns aos outros, na busca dos caminhos do Senhor neste momento da história.

Talvez a mensagem mais premente de Foucauld para a Vida Religiosa no nosso Continente é a radicalidade do seguimento de Jesus, numa vida cada vez mais cristiforme.


“A semelhança e a imitação são necessidades imperiosas do amor. São graus daquela unificação para que tende o amor, natural e necessariamente. A semelhança é a medida do amor”, diz o Irmão Carlos na sua reflexão sobre o texto de Lc 9,26 24 . Estão aqui o cerne e a razão de ser da Vida Consagrada, sendo ela — como comenta o Papa João Paulo II — “caminho de especial seguimento de Cristo, para se dedicar a Ele de coração ‘indiviso’ (cf. 1Cor 7,34)”, constituindo “a forma de vida praticada pessoalmente por 
Jesus e por Ele proposta aos discípulos”. 

Assim apresenta-se como “uma opção que se exprime na radicalidade do dom de si mesmo por amor ao senhor Jesus e, nele, por amor a cada membro da família humana” . Quando hoje tanto falamos de refundação ou, melhor, de refundamentação da Vida Religiosa, o primeiríssimo elemento é retomar, com vigor, a categoria eminentemente bíblica da sequela Christi.